2004/01/17
O DEBATE DO PRINCÍPIO
Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.
JOSÉ RIBEIRO E CASTRO
Diversamente do que, por táctica retórica retórica, repetidamente sustentaram os deputados Odete Santos e Sérgio Sousa Pinto, o debate de anteontem no Parlamento não foi um debate de política criminal. O debate foi — e é — sobre uma questão exclusiva e principal de direitos fundamentais. Tem — é certo — uma tradução, aliás mitigada, ao nível da moldura penal, mas pela simples e directa razão de que, num sistema jurídico, aceite o valor — que é a vida humana — e estabelecido o direito — que é o direito à vida —, não existe outro quadro em que pudesse ser afirmado e salvaguardado. Não há outra sede jurídica em que a vida humana e o seu direito pudessem ser afirmados e tutelados. Não é uma questão civil ou comercial, não é de direito administrativo ou financeiro, não é um problema de mais coima ou menos coima, não é um incidente disciplinar. A presença no quadro penal decorre da própria natureza da questão jurídica. Também não é uma questão individual. Nem sequer individual da vítima. Muito menos individual de quem a agredisse. O problema é de tal ordem que não se pode assobiar para o lado ou para cima. Em abstracto só ou em concreto já, não pode haver indiferença. A questão não é só de princípio ou de um princípio; é mesmo a questão do princípio. E a tutela dessa vida humana que, nas circunstâncias de que se trata, não teria mais ninguém que a defendesse, é impossível conceptualmente que coubesse noutro lugar jurídico.
Saltando para a alegada “hipocrisia” da lei, já seria um debate de política criminal se a pergunta tacticamente insistente da deputada Odete Santos — “querem as mulheres na cadeia?” — tivesse tido sequência, resposta ou continuidade, porque aí se discutiria um qualquer endurecimento repressivo. Não vi ninguém defendê-lo. Está certo assim. A lei explica-se no plano preventivo, que é a primeira frente do direito e do direito penal em especial. Nem esta afirmação entra em crise pelas estatísticas declaradas de 16.000 abortos por ano, que o debate parlamentar fez inflacionar para 20.000. Tenho as mais sérias dúvidas sobre que alguém possa afiançar o rigor destes números. Mas o que seguramente ninguém pode dizer, como o deputado Sousa Pinto, é que a lei “não evitará um aborto, não salvará uma vida”. Como é que sabe? Se já é grande o atrevimento intelectual da esgrimida segurança daqueles números, que significariam em Portugal um retrato de 44 a 55 abortos por dia, o que ninguém pode afiançar é que não seria pior se não fosse a lei e a consciência social da ilicitude. Tudo leva a crer que seria. Sobretudo nos termos reais do debate e da questão.
Outra afirmação sintomática, na defesa dos projectos que não passaram, foi a de que “ninguém é a favor do aborto”, nem estaria em causa a “liberalização do aborto”. É claro que é esta que esteve, e que está, em discussão. Basta ler os projectos, seguir todas as linhas do debate ou ouvir as galerias para ver que o que se busca é a instituição do direito ao aborto livre e, nalgumas circunstân-cias, o dever de ele ser feito. A questão — que divide de raiz como poucas — é esta: quem defende e como se defende aquele que os pais enjeitem, que a sociedade rejeite e que o Estado, no fim, também expulse? Pode haver o poder. Mas qual o direito?
Se ninguém fosse a favor do aborto, na sociedade e na política, o debate pura e simplesmente não existiria. Seria, aliás, útil e verdadeiramente progressivo, pelo esclarecimento real e verdadeiro, negando armas da demagogia, da desinformação e do obscurantismo, que um dia aí se chegasse. Ainda não se chegou. O debate continua — e voltará. Ninguém venceu.
Toca ouvir citar aqueles números — como normais. E toca parecer que não se estaca, um minuto sequer, a reflectir nesses talvez 16.000 ou 20.000 seres humanos que, poucos anos depois, pela ordem natural das coisas, aí estariam como qualquer de nós — como eu, como tu — e dariam, por ano, para encher um estádio ou superar a lotação da maioria dos comícios que há por aí. Onde, como quaisquer outros, estariam de sua viva voz, com mandatários ou sem mandatários, mas sem dependência deles, a exprimir adesões ou a lutar por outros seus direitos, que esse, sim, é o sentido da história e do direito.
Para que quase no fim deste século XX ainda aí se esteja, é porque o confusionismo e o desconhecimento ainda serão grandes. Infelizmente, há quem o alimente. Não é a lei que empurra quem quer que seja para o aborto clandestino. O discurso ultrapassado, mas reiterado, do “direito ao aborto” e da sua afirmação como uma questão da sexualidade individual é que mais faz ainda por isso. O aborto não é património da sexualidade. O único sexo presente já no aborto é saber, como na pergunta comum, se “é menino ou menina”. Essa outra pessoa, sobre que se pergunta, ninguém a possui. Ninguém é seu dono. Ninguém a tem. Ela já é. De propriamente ser.
Há claramente muitos ao engano. E dói, magoa, aborrece, ver tal engano ilustremente patrocinado e conscientemente alimentado. Falou-se demasiado em embriões. A questão não é já, aliás, de embriões. O único embrião que neste debate está em causa é o embrião de uma ideia: a ideia de que a eliminação física é, por um lado, solução e, por outro lado, solução legítima para problemas pessoais ou sociais. Não é.
(Público, 22 de Fevereiro de 1997
Etiquetas: Em Defesa da Vida
2004/01/16
Aborto - Índice relacionado com o tema (actualizado)
2003/12/22 - NOTA SOBRE O ABORTAMENTO HUMANO - POSIÇÃO CIENTÍFICA E ÉTICA
2003/12/23 - ABC DO ABORTO
2003/12/29 - A MULHER E O SALMÃO
2003/12/30 - OS MÉDICOS E O ABORTO
2004/01/05 - A esquerda doutoral
2004/01/09 - DAR VOZ AOS QUE NÃO TÊM AINDA VOZ
2004/01/12 - NEM RAZÃO, NEM CORAÇÃO
2004/01/13 - NA FRONTEIRA DA VIDA
2004/01/14 - A DESORDEM
2004/01/15 - O MACHISMO CHIQUE
2004/01/16 - CONTRAPONTO
2004/01/17 - O DEBATE DO PRINCÍPIO
2004/01/20 - O REGRESSO DO ABORTO
2004/01/20 - Um grito a favor da vida
2004/01/21 - A HIPOCRISIA NO ABORTO
2004/01/22 - O ABORTO E O DESPEDIMENTO
2004/01/23 - O ABORTO E O PROGRESSO DA HUMANIDADE
2004/01/23 - POR CAUSA DELE
2004/01/26 - O DESINTERESSE DO ABORTO
2004/01/26 - MAIS VIDA MAIS FAMÍLIA
2004/01/27 - A MATANÇA DOS INOCENTES I
2004/01/28 - A MATANÇA DOS INOCENTES II
2004/01/29 - O REFERENDO
2004/01/30 - NENHUM FETO É VIÁVEL
2004/01/31 - ABORTO
2004/02/02 - O ABORTO É JURIDICAMENTE ILEGÍTIMO
2004/02/03 - O ABORTO - UMA QUESTÃO DA CONSCIÊNCIA DE CADA UM?
2004/02/04 - CLANDESTINIDADE
2004/02/05 - APELO ASSIMILADO?
2004/02/06 - O EXTERMÍNIO DAS MULHERES
2004/02/09 - A PRESSÃO DA LEGALIZAÇÃO
2004/02/10 - A SUBJUGADA
2004/02/11 - ELES SABEM
2004/02/12 - FÁTIMA, MADRE TERESA E O ABORTO
2004/02/13 - CHAMADAS À SANTIDADE
2004/02/16 - ABORTO E CONSCIÊNCIA - O PERIGO DAS VERDADES PARCELARES
2004/02/18 - A NOVA INVESTIDA ABORTISTA
2004/02/19 - DEPOIS DO “DEBATE SOBRE O ABORTO” - ONDE ESTÁ O TEU IRMÃO?
2004/02/27 - O aborto visto de cima
2004/03/23 - Quando os conhecimentos são curtos, a tendência para a asneira é enorme!
2004/07/23 - O nascituro perante o Tribunal de Haia
2004/07/28 - Homens e mulheres de segunda?
2004/07/29 - Eu abortei
2004/07/30 - Não vale a pena
2004/09/06 - O circo continua
2004/09/14 - Há guerras e guerras
2004/09/17 - Holanda e Bélgica voltam à cultura de Tiergartenstrasse
2004/09/23 - Haverá alternativas?
2004/09/24 - Sinais de Vida
2004/10/11 - Os cristãos que se ponham a pau
2004/11/24 - PSD: o elo mais fraco?
2004/12/22 - Nobel da Paz: Aborto é um erro
2005/01/06 - Eutanásia e utopias
2003/12/23 - ABC DO ABORTO
2003/12/29 - A MULHER E O SALMÃO
2003/12/30 - OS MÉDICOS E O ABORTO
2004/01/05 - A esquerda doutoral
2004/01/09 - DAR VOZ AOS QUE NÃO TÊM AINDA VOZ
2004/01/12 - NEM RAZÃO, NEM CORAÇÃO
2004/01/13 - NA FRONTEIRA DA VIDA
2004/01/14 - A DESORDEM
2004/01/15 - O MACHISMO CHIQUE
2004/01/16 - CONTRAPONTO
2004/01/17 - O DEBATE DO PRINCÍPIO
2004/01/20 - O REGRESSO DO ABORTO
2004/01/20 - Um grito a favor da vida
2004/01/21 - A HIPOCRISIA NO ABORTO
2004/01/22 - O ABORTO E O DESPEDIMENTO
2004/01/23 - O ABORTO E O PROGRESSO DA HUMANIDADE
2004/01/23 - POR CAUSA DELE
2004/01/26 - O DESINTERESSE DO ABORTO
2004/01/26 - MAIS VIDA MAIS FAMÍLIA
2004/01/27 - A MATANÇA DOS INOCENTES I
2004/01/28 - A MATANÇA DOS INOCENTES II
2004/01/29 - O REFERENDO
2004/01/30 - NENHUM FETO É VIÁVEL
2004/01/31 - ABORTO
2004/02/02 - O ABORTO É JURIDICAMENTE ILEGÍTIMO
2004/02/03 - O ABORTO - UMA QUESTÃO DA CONSCIÊNCIA DE CADA UM?
2004/02/04 - CLANDESTINIDADE
2004/02/05 - APELO ASSIMILADO?
2004/02/06 - O EXTERMÍNIO DAS MULHERES
2004/02/09 - A PRESSÃO DA LEGALIZAÇÃO
2004/02/10 - A SUBJUGADA
2004/02/11 - ELES SABEM
2004/02/12 - FÁTIMA, MADRE TERESA E O ABORTO
2004/02/13 - CHAMADAS À SANTIDADE
2004/02/16 - ABORTO E CONSCIÊNCIA - O PERIGO DAS VERDADES PARCELARES
2004/02/18 - A NOVA INVESTIDA ABORTISTA
2004/02/19 - DEPOIS DO “DEBATE SOBRE O ABORTO” - ONDE ESTÁ O TEU IRMÃO?
2004/02/27 - O aborto visto de cima
2004/03/23 - Quando os conhecimentos são curtos, a tendência para a asneira é enorme!
2004/07/23 - O nascituro perante o Tribunal de Haia
2004/07/28 - Homens e mulheres de segunda?
2004/07/29 - Eu abortei
2004/07/30 - Não vale a pena
2004/09/06 - O circo continua
2004/09/14 - Há guerras e guerras
2004/09/17 - Holanda e Bélgica voltam à cultura de Tiergartenstrasse
2004/09/23 - Haverá alternativas?
2004/09/24 - Sinais de Vida
2004/10/11 - Os cristãos que se ponham a pau
2004/11/24 - PSD: o elo mais fraco?
2004/12/22 - Nobel da Paz: Aborto é um erro
2005/01/06 - Eutanásia e utopias
Etiquetas: Em Defesa da Vida
CONTRAPONTO
Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.
JOSÉ RIBEIRO E CASTRO
O nosso dever (...) é utilizar as armas da persuasão para fazermos vingar os valores essenciais numa sociedade moderna e humana, formada por cidadãos que se querem responsáveis e conscientes. E ajudar a criar as condições sociais e económicas” — escrevia aqui, há dois dias, José Manuel Fernandes a propósito do tema do mês. Por mim, não direi diferente. É exactamente isso. E, porque se trata de valores essenciais a uma sociedade moderna e humana, formada por cidadãos responsáveis e conscientes, a conclusão é, para mim, o contrário da premissa com que o amigo e director-adjunto José Manuel Fernandes arrancava o seu texto: onde ele partia em defesa do projecto da JS de liberalização do aborto, eu creio que é preciso concluir contra ele.
Às vezes, ouve-se discutir esta questão à volta do direito à vida, como se este direito fosse o direito de decidir sobre a vida de alguém e dela dispor. Como se fosse o direito de especular e de abundar sobre se, em determinadas condições e circunstâncias da mais variada ordem, esse ser terá ou não uma qualidade de vida que passe no crivo dos critérios apertados do escrutinador — se passar no precioso exame das condições e envolvências, há consentimento para prosseguir; mas, se não passar, extrai-se o fundamento para eliminar essa vida, apresentando-se as coisas como se isso fosse no melhor interesse da vida que se elimina.
A vida e as suas questões não são assim. É mesmo difícil assistir-se a distorção tão acentuada de planos. O direito à vida não é um direito de alguém sobre quem quer que seja. O direito à vida é o direito de alguém quanto a si mesmo e oponível precisamente a toda a gente. Ponto. O direito à vida é o direito de alguém contra todos e a partir de todos — contra todos, para que ninguém o viole; e a partir de todos para que o sirvam e respeitem.
De resto, a questão não é a de discutir se o Estado pode, ou não pode, ou se lhe cabe, ou não cabe, “impor uma moral ‘pró-vida’”. Independentemente das gerais relações entre a ética e o direito, a questão aqui não se trata de governar sobre as convicções morais de quem quer que seja. Trata-se de proteger e de defender a vida dos sujeitos do direito à vida, que são eles mesmos cuja eliminação se discute. A questão é principalmente de direito e justamente de direito — ao mais elevado título, porque de direitos fundamentais se trata. E, aí, nesse plano, é evidente que o Estado não só tem o direito, mas tem mesmo o dever de impor um direito pró-vida. É isso um princípio geral de civilização, que, por exemplo, a nossa Constituição exprime assim: “A vida humana é inviolável”.
A questão é tanto de direitos fundamentais e afectando o núcleo primevo de todo o quadro de valores humanos e sociais que o direito à vida não é só um direito fundamental; mas é o mais fundamental dos direitos fundamentais, por isso mesmo é que é o fundamento primeiro de todos os outros direitos fundamentais. Sem o direito à vida, nenhum outro direito faz sentido. Até porque o direito à vida tão-pouco é uma abstracção académica de bancos de faculdade ou de tribunas da política, mas a dimensão mais absolutamente concreta e total de cada ser: de cada um de nós, de cada um dos outros.
A questão não é de religião. Nada tem que ver com uma alegada e distorcida “ortodoxia papal” (de costas largas) nem com “fundamentalistas ‘pró-vida’”. A questão não é do Papa, mas da sociedade que somos e queremos. A questão é a da sociedade civil que nós somos e dos valores por que civilmente nos organizamos. E “fundamentalismo”... uma ova! Aquilo que torna abomináveis os fundamentalismos e que os veste como um risco e uma ameaça à civilização é a subversão que, em atentados cobardes ou por outras ignomínias, fazem do Deus de cada um, travestindo-o em fundamento brutal de arremesso violento contra a vida dos diferentes. E Deus é vida.
Mas é curioso. Para uns, de fé religiosa, a vida não é mais do que uma circunstância, passageira — há uma ordem, um outro quadro, uma outra continuidade, um outro reino. Para outros, a vida física é tudo — tudo o que temos, tudo o que somos.
A questão não é de religião. Justamente do que temos de cuidar, com fé ou sem fé, é do nosso tempo e do nosso espaço, da nossa concreta história existêncial, do quadro efectivo em que socialmente vivemos. Isto é, do que temos de cuidar é daquele quadro preciso e finito em que a vida é efectivamente tudo, porque sem ela nada. E não deixa de ser extraordinário que seja justamente entre os mais militantes do laicismo ou que mais convocam o quadro absolutamente laico de decisão, isto é, entre aqueles para quem a vida concreta é apenas tudo o que cada um tem e tudo o que cada um é, que mais se avolumem e se agigantem, em paradoxo radical, as vozes sobre a licitude de liberalizar o direito de privar outro da sua vida — isto é, o direito de lhe tirar tudo, o poder de lhe negar tudo o que é.
Fora disto, é o arbítrio total. Tomemos o quadro dos prazos e das semanas, das 12, das 16 ou das 24. É como se, em claro vício processualista, quisesse criar-se uma situação de pendência processual em que um candidato aguarda o veredicto a seu respeito, um cruzamento de semáforos em amarelo intermitente, antes da luz verde ou... de cair o encarnado. A base de informação é completamente artificial e artificiosa. Por exemplo, não está certo dizer-se, a fim de sustentar as 12 semanas, que, “se se utiliza o critério da morte cerebral para determinar a morte física, o início da vida cerebral pode ser considerado o momento limite a partir do qual o novo ser ganha uma individualidade tal que a sua vida deve ser considerada irreversível”. A razão da “morte cerebral” é outra. Não tem nada a ver com um qualquer novo “fétichismo” à volta do cérebro. É que, diversamente do que era convicção ancestral e é ainda o ideário popular, nós não morremos quando o coração pára; o cérebro mantém-se em actividade por mais alguns minutos e é aí que o último sinal de vida se apaga, de resto por efeito arrastado da falta de irrigação.
Mas, se é aí que a vida se apaga, não quer dizer que seja aí que se acende. Cito, por exemplo, de um livro nada militante: “O coração (...) começa normalmente a bater ao vigésimo quinto dia, embora se trate apenas de um coração primitivo, de um tubo em forma de U com dois milímetros de comprimento. (...) Após alguns dias de experiência, bate 65 vezes por minuto, para fazer circular o sangue recém-formado indispensável à alimentação dos tecidos embrionários”. A vida — absolutamente própria — já existe mesmo antes desse 25º dia, já reveste individualidade plena, já é desse e de mais ninguém, já define especificamente um e nenhum outro, já é efectivamente irreversível e determinada sobre si mesma, salvo causa natural ou provocada de morte, dita aborto — espontâneo ou provocado.
Tão irreversível é essa vida que o que se discute é justamente o acto e o poder de a interromper. Por mim, não tenho certamente esse poder. E penso que ninguém tem.
(Público, 15 de Fevereiro de 1997)
Etiquetas: Em Defesa da Vida
2004/01/15
O MACHISMO CHIQUE
Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.
JOSÉ RIBEIRO E CASTRO
Que mulheres intervenham no debate sobre o aborto, está muito certo. É assim, aliás, sobre qualquer questão social e política. Não tem novidade. Mas que só as mulheres ou sobretudo as mulheres devessem participar no debate sobre o aborto, está completamente errado. Esta distorção de pensamento, porém, ataca até gente inteligente; curiosamente ataca sobretudo gente inteligente. No princípio da semana, Eduardo Lourenço desabafava assim na Antena 1: “É estranho que a voz que mais devia ser ouvida na questão do aborto, que é a voz das mulheres, seja aquela que nós menos ouvimos”. Não tenho sequer a ideia de que isto seja verdade. Antes a bizarra e absurda concepção ideológica de que o feto, o filho, pertence ao corpo da mãe e de que o aborto é uma concretização do “direito da mulher ao seu corpo” tem feito com que, em coerência, o movimento abortista use porta-vozes predominantemente femininas. Procura assim, de algum modo, situar-se na linha de outros dois movimentos sociais deste século — o Women’s Lib e a revolução sexual dos anos 60 —, ao mesmo tempo que se procura constranger a intervenção masculina a respeito de um tema que seria “da mulher”.
Esta concepção conjuga dois erros. O primeiro, a obstinada ideia obscurantista de que o filho gerado ainda não é filho, porque não nascido, e de que o feto não é mais do que uma parte do corpo da mãe, livremente amovível e eliminável. Como se de um mioma se tratasse ou de um qualquer “nascido”, na linguagem popular. Toda a gente sabe que isto é mentira — bem pelo contrário, cada vez sabemos mais da vida ao longo da gestação e da individualidade autónoma do filho enquanto feto. Mas situar o debate nesse plano, de completa negação da realidade, é condição de alívio psicológico e base indispensável para prosseguir todo o debate. O segundo erro, quando transitamos já para a ideia de “filho”, é o corolário da mesma concepção machista que entende a maternidade como um estado sem pai, que apoia todas as manifestações de paternidade irresponsável e que entende os filhos como questão privativa e como “fardo” exclusivo da mulher. Na cultura alemã do princípio do século, associava-se a mulher aos “três k”: “Kinder” (filhos), “Kirche” (igreja) e “Küche” (cozinha) — ali, é ainda a mesma ideia. Vestida de chique, trajando elegante, abundando intelectualidade — mas a mesmíssima ideia.
Na liberalização do aborto pretendida por deputados socialistas e comunistas, a única questão é a do direito à vida. Sendo certo que há ali uma vida, que essa vida é humana e que essa vida prosseguirá autonomamente o seu curso próprio, singular, individual, único e irrepetível, salvo se violentamente interrompida, a única questão é saber se essa vida, se esse ser humano, tem direito à vida ou não tem direito à vida. Se há direito de matar ou não há direito de matar. Não há.
A brutalidade da questão explica, aliás, suficientemente que se queira evitá-la. E, por todas as formas e feitios, que se procure colocá-la noutros planos. Sobretudo neste século dos direitos humanos, ninguém gosta de posicionar-se num plano em que as posições ressoariam a barbárie e a ignomínia. Por isso se foge à verdade das coisas — para liberalizar o aborto é imperioso que não se veja o aborto.
Mas existirão outras questões e outros planos? Certo que existem. Só que o aborto não é resposta nenhuma e é nada como resposta. Antes o triunfo do aborto traduz, em cada uma dessas questões e planos, a vitória de tudo o que merece recriminação. O triunfo do aborto a pedido é a mais miserável derrota da solidariedade e a condução ao absurdo da angustiada solidão de uma mulher posta em situação crítica. Essa mulher concreta ouve porventura em seu redor um pai irresponsabilizando-se, dizendo “não tenho nada a ver com isso”; questionando-a, “como é que fizeste isso?”; bramando-lhe até talvez “não tens cuidado nenhum”; ordenando, bruto, “aborta!”; ou insinuando-se suave, “o melhor é abortares”. Essa mulher concreta, realmente ou no seu espírito acossado, vê romperem-se porventura em seu redor todas as redes de solidariedade natural que deveriam funcionar, nomeadamente as familiares. E, posta só, o que é que essa mulher ouve da sociedade por parte daqueles que recomendam a liberalização do aborto? Ouve exactamente o mesmo: solidariedade nenhuma; portas fechadas e costas voltadas; e o mesmo coro: “não tenho nada a ver com isso”; “como é que fizeste isso?”; “o melhor é abortares”. Vestindo chique e trajando elegante, o coro é igual e a mesma a mentalidade. Um machismo “betinho”, sorrindo boas maneiras.
As teses abortistas não servem o filho — cuja estatística de vítimas curiosamente se omite —, nem servem a mãe. E, neste fim de século dos direitos humanos, não deixa de ser a um tempo chocante e sintomático que praticamente pouco mais se ouça do que a voz da Igreja Católica, ou outras que nela se inserem, de leigos ou dela próximos. Não está mal que intervenham. Seria grave que o não fizessem. Antes é lastimável a abstenção de tantas vozes propriamente políticas. Os católicos são muitas vezes bombos de festa quanto a violações de direitos humanos perante as quais estejam em silêncio ou indiferentes, porque, de facto, lhes é exigível que estejam na primeira linha. A Igreja está sempre no seu papel quando é voz dos que não têm voz. Aqui, é esse justamente o caso. Não devia, nem deve, ser a única voz. Mas tem de ser uma das vozes.
(Público, 8 de Fevereiro de 1997)
Etiquetas: Em Defesa da Vida
2004/01/14
A DESORDEM
Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.
Há por aí dois movimentos de opinião que, além de tudo o mais, surpreendem pelo completo desvio de valores. Ambos mexem com a vida e com planos essenciais da cultura social.
Diz-se que é preciso combater o aborto clandestino. Logo, dizem, é preciso liberalizar o aborto, assumindo o Estado a sua prática, através do sistema de saúde pública. Diz-se que é imperioso erradicar o flagelo da droga e eliminar o seu tráfico. Logo, dizem, é preciso legalizar o consumo de drogas, assumindo o Estado o respectivo comércio.
Como atitude mental e jurídica, o contra-senso é completo. Representa o padrão da desordem completa. Em vez de combater o facto e as suas causas, em vez de reprimir quem lucra com a exploração miserável das vulnerabilidades alheias, legaliza-se, fecha-se os olhos, lava-se as mãos e pretende-se acreditar que fica tudo bem.
“Não é possível” impedir a corrupção na arbitragem, outro tema na berra? A “solução” é fácil: legaliza-se a compra dos árbitros e passa-se mesmo a organizar leilões na Praça da Alegria — com selo e imaginação, o modelo, com sucesso, poderia aliás ser importado e adaptado, depois, a serviços públicos, assegurando a publicidade da corrupção dos decisores e a adequada tutela dos princípios da transparência e da igualdade. E por aí adiante.
Mas o aborto e a droga dão-se mal com ironias. A graça não faz sentido. Ambos os movimentos de legalização têm, contudo, em comum só caminharem em territórios de cegueira.
Tomemos os projectos de lei que estão na Assembleia da República. Cirurgicamente, são ditos da “Interrupção Voluntária da Gravidez”, a IVG. O eufemismo — que é, de resto, internacional para uso semelhante — diz tudo. O G que está em causa não é, nunca foi, o da “gravidez”. O G que está em causa é o da “gestação”. Toda a gente sabe isso: o que se discute não é o corpo da mãe e um estado dele; o que está em questão e em crise fatal é o corpo do filho e a vida dele. A distorção hábil e asséptica da realidade diz tudo sobre a convicção dos promotores.
Noutro plano, abunda-se com um trecho da Declaração Universal dos Direitos da Criança — o direito de toda a criança a ser desejada. Daqui, pretende retirar-se o seguinte absurdo: se a criança não é desejada, pode ser “despejada”. Invoca-se o direito de alguém para liquidar não só esse, mas todos os seus direitos! Do postulado de que toda a criança tem o direito a ser desejada só pode, nos quadros em que isso não resulta logo da natureza das coisas, tirar-se uma consequência — a de que deve ser desejada, a de que os pais a devem desejar, têm quanto à criança e perante a sociedade o dever jurídico de a desejar. Não pode tirar-se a consequência de irresponsabilizar os pais, outros familiares e as comunidades próximas desse mesmo dever. Nem pode extrair-se o cúmulo do absurdo e do desvalimento: quando tudo falha, isentar-se o Estado desse mesmo dever subsidiário, chamando-o antes à eliminação desse filho.
A verdadeira face do movimento não tem nada de solidariedade, mas de egoísmo, solidão e irresponsabilização. É uma ruptura profundíssima com um quadro estabelecido do que a cultura e a civilização registaram como bens disponíveis e indisponíveis. É a mesma cultura do “não te rales”, do “não é da minha conta”, da convicção e da educação irreais de que tudo nos é possível sem consequências.
Na droga, é parecido, como fenómeno cultural. Diz-se: o combate ao tráfico é uma “batalha perdida”; a criminalidade associada ao tráfico ou ordenada a consumos dispendiosos é intolerável e socialmente demolidora; donde, é preciso legalizar o comércio das drogas. E acreditam que isto faria baixar os preços, controlando o Estado os circuitos de distribuição, assim se acabando com aquela criminalidade.
Pensar assim é passar ao lado de aspectos essenciais da própria doença e da dinâmica da dependência. Os consumos disparariam de imediato, como aconteceu noutros países. Há experiências várias desde o princípio do século, da China aos Estados Unidos — se hoje há problemas com dez toxicodependentes, amanhã seriam com 100 ou 1000. A doença é ainda, por sua natureza, progressiva — além de tudo o resto na disfuncionalidade crescente do “agarrado”, é erro pensar-se num quadro de estabilização de dosagens dos clientes desse sistema.
Enfim, a efectiva e inevitável ruptura de personalidade induzida pelos consumos ou a necessidade irreprimível de consumos para além das dosagens prescritas levariam na mesma à criminalidade, conduziriam ao seu agravamento sem fim, favoreceriam um “mercado negro” próspero (mais facilmente instalado) e expor-nos-iam, ainda mais indefesos, à explosão de situações de violência incontáveis. As consequências sociais de todo o tipo de um desvario desses seriam insuportáveis.
No fundo, só há uma forma de combater o que se diz indesejável. É combater isso mesmo. Informando, formando e prevenindo; e reprimindo duramente quem se aproveita e explora. Não há outro modo. Cultura que faz ao contrário é cultura que se destrói.
(Público, 1 de Fevereiro de 1997)
Editado por Nova Arrancada, S.A.
JOSÉ RIBEIRO E CASTRO
Há por aí dois movimentos de opinião que, além de tudo o mais, surpreendem pelo completo desvio de valores. Ambos mexem com a vida e com planos essenciais da cultura social.
Diz-se que é preciso combater o aborto clandestino. Logo, dizem, é preciso liberalizar o aborto, assumindo o Estado a sua prática, através do sistema de saúde pública. Diz-se que é imperioso erradicar o flagelo da droga e eliminar o seu tráfico. Logo, dizem, é preciso legalizar o consumo de drogas, assumindo o Estado o respectivo comércio.
Como atitude mental e jurídica, o contra-senso é completo. Representa o padrão da desordem completa. Em vez de combater o facto e as suas causas, em vez de reprimir quem lucra com a exploração miserável das vulnerabilidades alheias, legaliza-se, fecha-se os olhos, lava-se as mãos e pretende-se acreditar que fica tudo bem.
“Não é possível” impedir a corrupção na arbitragem, outro tema na berra? A “solução” é fácil: legaliza-se a compra dos árbitros e passa-se mesmo a organizar leilões na Praça da Alegria — com selo e imaginação, o modelo, com sucesso, poderia aliás ser importado e adaptado, depois, a serviços públicos, assegurando a publicidade da corrupção dos decisores e a adequada tutela dos princípios da transparência e da igualdade. E por aí adiante.
Mas o aborto e a droga dão-se mal com ironias. A graça não faz sentido. Ambos os movimentos de legalização têm, contudo, em comum só caminharem em territórios de cegueira.
Tomemos os projectos de lei que estão na Assembleia da República. Cirurgicamente, são ditos da “Interrupção Voluntária da Gravidez”, a IVG. O eufemismo — que é, de resto, internacional para uso semelhante — diz tudo. O G que está em causa não é, nunca foi, o da “gravidez”. O G que está em causa é o da “gestação”. Toda a gente sabe isso: o que se discute não é o corpo da mãe e um estado dele; o que está em questão e em crise fatal é o corpo do filho e a vida dele. A distorção hábil e asséptica da realidade diz tudo sobre a convicção dos promotores.
Noutro plano, abunda-se com um trecho da Declaração Universal dos Direitos da Criança — o direito de toda a criança a ser desejada. Daqui, pretende retirar-se o seguinte absurdo: se a criança não é desejada, pode ser “despejada”. Invoca-se o direito de alguém para liquidar não só esse, mas todos os seus direitos! Do postulado de que toda a criança tem o direito a ser desejada só pode, nos quadros em que isso não resulta logo da natureza das coisas, tirar-se uma consequência — a de que deve ser desejada, a de que os pais a devem desejar, têm quanto à criança e perante a sociedade o dever jurídico de a desejar. Não pode tirar-se a consequência de irresponsabilizar os pais, outros familiares e as comunidades próximas desse mesmo dever. Nem pode extrair-se o cúmulo do absurdo e do desvalimento: quando tudo falha, isentar-se o Estado desse mesmo dever subsidiário, chamando-o antes à eliminação desse filho.
A verdadeira face do movimento não tem nada de solidariedade, mas de egoísmo, solidão e irresponsabilização. É uma ruptura profundíssima com um quadro estabelecido do que a cultura e a civilização registaram como bens disponíveis e indisponíveis. É a mesma cultura do “não te rales”, do “não é da minha conta”, da convicção e da educação irreais de que tudo nos é possível sem consequências.
Na droga, é parecido, como fenómeno cultural. Diz-se: o combate ao tráfico é uma “batalha perdida”; a criminalidade associada ao tráfico ou ordenada a consumos dispendiosos é intolerável e socialmente demolidora; donde, é preciso legalizar o comércio das drogas. E acreditam que isto faria baixar os preços, controlando o Estado os circuitos de distribuição, assim se acabando com aquela criminalidade.
Pensar assim é passar ao lado de aspectos essenciais da própria doença e da dinâmica da dependência. Os consumos disparariam de imediato, como aconteceu noutros países. Há experiências várias desde o princípio do século, da China aos Estados Unidos — se hoje há problemas com dez toxicodependentes, amanhã seriam com 100 ou 1000. A doença é ainda, por sua natureza, progressiva — além de tudo o resto na disfuncionalidade crescente do “agarrado”, é erro pensar-se num quadro de estabilização de dosagens dos clientes desse sistema.
Enfim, a efectiva e inevitável ruptura de personalidade induzida pelos consumos ou a necessidade irreprimível de consumos para além das dosagens prescritas levariam na mesma à criminalidade, conduziriam ao seu agravamento sem fim, favoreceriam um “mercado negro” próspero (mais facilmente instalado) e expor-nos-iam, ainda mais indefesos, à explosão de situações de violência incontáveis. As consequências sociais de todo o tipo de um desvario desses seriam insuportáveis.
No fundo, só há uma forma de combater o que se diz indesejável. É combater isso mesmo. Informando, formando e prevenindo; e reprimindo duramente quem se aproveita e explora. Não há outro modo. Cultura que faz ao contrário é cultura que se destrói.
(Público, 1 de Fevereiro de 1997)
Etiquetas: Em Defesa da Vida
2004/01/13
NA FRONTEIRA DA VIDA
Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.
JOSÉ RIBEIRO E CASTRO
Agora, em redor do aborto, a palavra que mais se ouve é “hipocrisia”. Sintomaticamente, como em todos os confrontos culturais. Hoje como há 12 ou 14 anos, na voz dos seus promotores, a introdução do debate do aborto livre vem recheado de disparos de acusada “hipocrisia”. Os que não concordamos seríamos “hipócritas”, porque se mantém na lei uma proibição, mas não perseguimos as mulheres que recorrem aos circuitos do aborto clandestino. E seríamos também “hipócritas”, porque, sustentando-se que o aborto é um crime contra a vida, ninguém propõe “em coerência” o agravamento das penas para níveis semelhantes ao do homicídio.
Fique desde já a ideia de não haver o menor instinto persecutório. É verdade; e é bom ver reconhecido que é verdade. Mas também não há ali sombra de hipocrisia — antes justa medida. Na comunidade jurídica, para se assinalar a ilicitude de algum acto, é forçoso dizê-lo e que lhe corresponda uma sanção em abstracto. Mas não se segue daí nem que as sanções previstas houvessem de ser brutais, abstraindo de todas as outras circunstâncias e considerações que no problema do aborto se cruzam, bem como do estado da consciência social, nem que tenham que ser sempre iguais — é obviamente justo, no plano legal, que a sanção prevista seja mais severa para os que explorem aquele “negócio” e mais leve (podendo não ser nenhuma) para a mulher que dramaticamente àquele recorra. Tão-pouco se segue, enfim, que a lei se aplique em automático. Nenhuma lei se aplica em automático — há uma administração da justiça. A justiça também se administra. Nisso não existe a menor hipocrisia; antes, básica humanidade.
A maior hipocrisia é “virar o bico ao prego”. E, hipocrisia por hipocrisia, nesta batalha de argumentos, são muitas as que são assacáveis aos defensores da liberalização do aborto.
Primeira hipocrisia: misturar o alargamento do prazo do aborto eugénico com a legalização do aborto livre. A primeira questão, no estado da lei, já não é sequer tanto jurídica, como, sobretudo, uma questão técnica, no plano médico e científico. A segunda é toda a questão e o problema humanitário e jurídico essencial. A primeira é, de resto, pró-natalista; a segunda é exactamente contra.
Segunda hipocrisia: que o aborto livre é a forma de combater o aborto clandestino. É só vontade de falsear por falsear. O aborto livre não combate coisa nenhuma. A liberalização do aborto é exactamente a própria legalização do aborto clandestino. Renuncia, abdica de vez e reconhece ou favorece até o seu negócio. A experiência mostra, aliás, como são várias — e não apenas, nem sequer principalmente, jurídicos — os factores que concorrem para os circuitos não-hospitalares do aborto e, perdida a questão na cultura social, são vários os países onde aqueles circuitos floresceram de vez e prosperaram sobre a vulnerabilidade alheia.
Terceira hipocrisia: este debate agora, depois de 1982 e 1984. Quando a questão foi aberta, selectivamente sobre o aborto ético, o aborto eugénico e o aborto terapêutico, já se proclamava que era forma de “combater o flagelo do aborto clandestino”. Foi observado que não era — que uma coisa não tinha a ver com a outra; e que, quanto àqueles, a alteração do Código Penal não era necessária, pois a sua parte geral continha as salvaguardas necessárias (que se aplicam, aliás, ao recente “caso Strecht”). A razão era outra. Para lá do possível valor respeitável da segurança jurídica, a legislação específica sobre aqueles casos de dúvida cruciante serviria sobretudo para, no debate cultural e na consciência social, rasgar frestas num edifício de pensamento e para vestir de relativo uma questão absoluta: a vida. Abertas as brechas, abalado e fragilizado o edifício, então, mais tarde, se assaltaria a questão de fundo: o aborto livre, isto é, o aborto por razões económicas ou sociais. Aí estamos.
Quarta hipocrisia: que o aborto livre vai resolver os problemas. Não vai. Hoje como antes, o aborto clandestino é uma fácil alavanca de luta — mas é realmente uma desprezadíssima questão social e humana. Liberalizar o aborto é matar o “sintoma”, para poder continuar a ignorar os problemas. Se é verdade que, em cada aborto clandestino, em cada aborto por razões económicas ou sociais, existe um pedido de socorro implícito ou um desespero de solidão, na angústia de uma decisão sofrida, a resposta social do aborto livre não responde a coisa nenhuma, consagra o abandono e executa o apagamento.
Quinta hipocrisia: a repetição reiterada de que, liberalizando-o, o aborto não pode ser um instrumento de planeamento familiar e de controlo da natalidade. Estamos de acordo quanto a que “não deve ser”. Mas não é verdade que o aborto livre não seja isso. O aborto é isso. O aborto — como hoje diríamos, “por razões económicas ou sociais” — é precisamente o meio mais antigo, mais primitivo, mais bárbaro, mais violento e mais agressivo de controlo da natalidade e, se se quiser, “de planeamento familiar”. Foi sempre assim. Antes do conhecimento de quaisquer métodos naturais e muito antes de quaisquer técnicas ou medicamentos, o aborto foi praticado desde sempre — e é, aliás, contra a natalidade, 100 por cento eficaz. Por isso é que ele se pratica; e nunca foi completamente erradicado. A questão jurídica, cultural e de civilização, humanitária, é exactamente essa, só essa: o aborto ser, ou não ser, um instrumento válido de controlo da natalidade, respeitando ou ignorando a vida que lá está.
Sexta hipocrisia: a ideia de que a liberalização do aborto por razões económicas e sociais é uma medida a favor da mulher. Não é verdade. Bem ao contrário, decorre da mesma ideia de que os filhos são carga exclusiva da mulher, mãe sem pai, e sem família, e sem avós, e sem comunidade. É uma medida que agrava a sua vulnerabilidade, favorecendo, em circunstâncias difíceis, a pressão de um acto sobre ela e o seu filho, que carrega sempre consequências dolorosas para ela e o seu filho. No resto, é a história macholas de sempre — em diálogo figurado, de indignação pós-coito, entre o ainda terno e o já surpreendido, caminhando para o bruto, diz o homem para a mulher: “Então, tu não tomaste as cautelas?” Para logo concluir, macho e já embrutecido: “Eu pu-lo lá. Agora, carrega-o tu ou tira-o tu”.
Sétima hipocrisia: a campanha de que se trata de uma questão religiosa e, convocando as habituais costas largas, que são “a Igreja e os padres” a imporem um conceito privativo. Não é verdade. O aborto livre não é uma questão religiosa. É uma básica questão social e de humanidade. Fundamental e principal — porque exactamente “do princípio”. A vida é para a sociedade um bem livremente disponível, ou não — é disso que se trata.
A lista podia ser interminável. Sem nunca haver acordo quanto a ela, pois é de uma disputa de cultura social e humana que se trata. Mas a hipocrisia que sempre mais me surpreendeu nesta matéria é a do obstinado abscurantismo em que é construída. Há alguns séculos ou no princípio deste ainda, podia-se talvez disputar os fundamentos do conceito seguro sobre a vida humana desde o momento da concepção.
Já não é assim. Sabemos hoje, de ciência certa, que a vida humana é desde o momento da concepção e que é, desde esse momento, una, individual e absolutamente irrepetível. Num livro que se desfia aceleradamente, sobretudo, desde a década de 60, com os progressos da genética, da embriologia, da fetologia, da obstetrícia, sabemos já quase tudo do essencial, momento a momento, dessa vida já. São conquistas recentes do nosso tempo comum: os meus filhos mais novos já os vi antes de nascerem, a mais velha ainda não.
Nunca percebi e nunca irei entender como é que são, porque é que são exactamente aquelas gerações que são cada vez mais privilegiadas e favorecidas com o conhecimento directo, palpável, mensurável, concreto e até positivista de que a vida humana é como é desde o momento da concepção que se aprestem a querer legalizar e liberalizar o que antes, embora não tão conhecido, não era lícito. A explicação só pode ser parente da hipocrisia e do obscurantismo: não ver, não querer ver, não querer deixar ver.
Em qualquer debate sério, já não é admissível ouvir-se dizer que se trata do direito da mulher a “dispor do seu corpo”. Não é o seu corpo. Não é um quisto, nem um apêndice. É uma vida própria, singular, que, antes do parto como depois dele, precisa apenas da protecção necessária a desenvolver-se naturalmente sobre si e com os outros.
Há uma batalha de esclarecimento indispensável. É tanto e tamanho o obscurantismo em que se insiste em abafar a questão que é fácil acreditar que são muitos e muitas os que honestamente não sabem — que nunca viram, nem ouviram. Provavelmente, dentro do drama de cada decisão pessoal, são muitos e muitas os que, nessas cifras incríveis do aborto clandestino, pura e simplesmente não sabem o que estão a fazer, porque não lhes foi dito, nem explicado; antes lhes é, daquele modo, exactamente mentido, conscientemente falseado e teimosamente mistificado. Devia-se começar por aí. Informar e esclarecer. Seriamente. A ciência é aliada da moral.
(Público, 2 de Novembro de 1996)
Etiquetas: Em Defesa da Vida
2004/01/12
NEM RAZÃO, NEM CORAÇÃO
JOSÉ RIBEIRO E CASTRO
Licenciado em Direito. Foi Secretário Geral do Instituto Democracia e Liberdade, Presidente da Comissão de Fiscalização da RTP, assessor do Alto Comissariado do “Projecto Vida”, Deputado à Assembleia da República, eleito nas listas do CDS e da AD, e Secretário de Estado Adjunto do Vice-Primeiro Ministro. Administrador da TVI, desde Março de 1997. Cronista semanal no jornal “Público”.
Há alguns anos, na era de Reagan, o orgulho americano quis lavar-se na invasão de Granada, entre odes patrióticas. Humilhada e ferida nos anos 70 pelo drama e pelo desaire do Vietname, a águia americana desforrou-se numa pequena ilha das Caraíbas.
Assim é a bancada do PS blindada para o debate desta semana. Frustrados e amargos de revezes mundiais e nacionais no plano ideológico, os sectores mais duros do senhorio oficial da esquerda afogam o desencontro e o desconforto abatendo o seu poder sobre um alvo indefeso e uma legião inocente. O aborto — decretaram — tem que passar. À força, se necessário. Tem que passar.
Quando na passada sessão legislativa, a proposta da JS foi travada por um voto, o tom ficou dado para o “round” seguinte. Não se ouviu nem razão, nem coração. Mais propriamente rancor. Um simples poder, ferido na sua exuberância, cego porque desmentido na sua maioria.
Raras vezes se viu, como nessa altura, tamanha fúria por um contratempo. Ditou-se —o que é apenas tolice e falsidade — que “à esquerda” é tudo pelo aborto, tem que ser tudo pelo aborto. E daí se arrancou para um dos mais violentos condicionamentos psicológicos sobre colegas de bancada de que há memória no parlamento português. Activou-se o aparelhismo. Acenou-se uma crise geral do partido e cerraram-se fileiras, para “em nome da esquerda”, marcar, cercar e fazer refém o próprio líder e primeiro-ministro a que devem a maioria instrumental.
O “marketing”encarregou-se de vestir de herói oficial da “esquerda” o JS que empunhou a bandeira, assim ungido como uma espécie dos sub-20, ou dos sub-18, por onde se vai lavando a honra e desforrando o brio do nosso fracassado futebol internacional. Fizeram-no mesmo piloto de um opúsculo sobre como governar “à esquerda”. O único filho directo da ambiciosa obra é, afinal, este projecto do aborto.
O socialismo propriamente dito pode continuar na gaveta. Aí não se escandalizam, nem se enervam, nem se irritam os pais espirituais de tal investida. O aborto é que faz falta.
Renovou-se a iniciativa. Desenhou-se o cerco. Apertou-se o círculo. Contaram-se as cabeças como às espingardas. Intensificou-se o absoluto condicionamento das consciências. Manipulou-se politicamente o grosseiro afastamento do compromisso pelo referendo. Apartou-se o líder. Ditou-se disciplina. Exibiu-se poder de maioria prefixa. Blindou-se o voto. Está marcada a sessão.
Quanto a socialismo, estamos conversados. A regionalização continua uma trapalhada. O aborto é que é preciso.
No debate desta questão, há um problema incontornável: a vida humana que se destrói, a vida que nasce a que se põe termo.
Não é uma questão técnica. Nem é uma questão de técnica médica, como os que o baptizam pelo eufemismo pudico de IVG. Nem é uma questão técnico-jurídica como, sobre a personalidade jurídica do embrião ou do feto, pode induzir em erro e confusão a infeliz iniciativa do PP, dividindo o campo do não.
É uma questão humana. A questão humana de primeira grandeza. A vida. A vida humana. A questão do mais fundamental de todos os direitos fundamentais. A questão do mais radicalmente humano de todos os direitos humanos. A questão matricial de tudo o resto. A questão que por ela talvez tudo e sem ela absolutamente nada. A questão do começo. A questão do princípio. A questão de existir. A questão de ser, ou não ser.
Uma questão cultural. Uma atitude e uma baliza de civilização. Uma questão moral central. Não da “moral” dos moralismos. Mas da moral, da ética, sobre que se radica toda uma consciência social, humanista e solidária.
Não é uma questão técnica. Não é uma questão fria. É uma questão calorosa. A mais calorosa porventura de todas as questões.
Nenhum debate técnico pátáti-pátátá, de mais semana menos semana, permitirá alguma vez dilucidá-la ou decidi-la. Porque não é nada disso. Apenas vida. Somente a vida. A vida, nua e crua. A vida tão-só propriamente vida.
Apenas razão e coração. A razão e o coração que por aqui se apartam de vez da blindada bancada socialista.
Se em 1998, em Portugal, mercê de um voto cerrado parlamentar ditado à força, evadindo até o desafio do referendo, o aborto foi liberalizado, um tal facto só pode ficar a dever-se a um anacrónico triunfo de obscurantismo e ignorância.
Choca-me sobretudo como é que, após todos os extraordinários avanços da genética, da embriologia, da fetologia que marcam as últimas três décadas da humanidade, ainda alguém pode disputar seriamente, consistentemente, a insofismável verdade dessa vida que se desfia cada vez mais clara aos nossos olhos, em cada pormenor que a traça e em cada registo que a marca. Uma vida humana. Individual, singular, específica, única e irrepetível.
E não entendo como foi um JS a fazer-se emblema de uma tal desforra serôdia, a empunhar a bandeira de um voto retrógado. Nunca entenderei como é que pode ser um da geração mais privilegiada pela absoluta revelação da verdade, a recusá-la com estrondo. Ao modo de quem diz: não vi, não vejo, não quero ver. Não sei, não quero saber. Ainda por cima empurrando e condicionando uma decisão parlamentar forçada, que, a ser tomada, transportará sempre consigo o inapagável ferrete da ilegitimidade política.
(Janeiro de 1998)
Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.
Licenciado em Direito. Foi Secretário Geral do Instituto Democracia e Liberdade, Presidente da Comissão de Fiscalização da RTP, assessor do Alto Comissariado do “Projecto Vida”, Deputado à Assembleia da República, eleito nas listas do CDS e da AD, e Secretário de Estado Adjunto do Vice-Primeiro Ministro. Administrador da TVI, desde Março de 1997. Cronista semanal no jornal “Público”.
Há alguns anos, na era de Reagan, o orgulho americano quis lavar-se na invasão de Granada, entre odes patrióticas. Humilhada e ferida nos anos 70 pelo drama e pelo desaire do Vietname, a águia americana desforrou-se numa pequena ilha das Caraíbas.
Assim é a bancada do PS blindada para o debate desta semana. Frustrados e amargos de revezes mundiais e nacionais no plano ideológico, os sectores mais duros do senhorio oficial da esquerda afogam o desencontro e o desconforto abatendo o seu poder sobre um alvo indefeso e uma legião inocente. O aborto — decretaram — tem que passar. À força, se necessário. Tem que passar.
Quando na passada sessão legislativa, a proposta da JS foi travada por um voto, o tom ficou dado para o “round” seguinte. Não se ouviu nem razão, nem coração. Mais propriamente rancor. Um simples poder, ferido na sua exuberância, cego porque desmentido na sua maioria.
Raras vezes se viu, como nessa altura, tamanha fúria por um contratempo. Ditou-se —o que é apenas tolice e falsidade — que “à esquerda” é tudo pelo aborto, tem que ser tudo pelo aborto. E daí se arrancou para um dos mais violentos condicionamentos psicológicos sobre colegas de bancada de que há memória no parlamento português. Activou-se o aparelhismo. Acenou-se uma crise geral do partido e cerraram-se fileiras, para “em nome da esquerda”, marcar, cercar e fazer refém o próprio líder e primeiro-ministro a que devem a maioria instrumental.
O “marketing”encarregou-se de vestir de herói oficial da “esquerda” o JS que empunhou a bandeira, assim ungido como uma espécie dos sub-20, ou dos sub-18, por onde se vai lavando a honra e desforrando o brio do nosso fracassado futebol internacional. Fizeram-no mesmo piloto de um opúsculo sobre como governar “à esquerda”. O único filho directo da ambiciosa obra é, afinal, este projecto do aborto.
O socialismo propriamente dito pode continuar na gaveta. Aí não se escandalizam, nem se enervam, nem se irritam os pais espirituais de tal investida. O aborto é que faz falta.
Renovou-se a iniciativa. Desenhou-se o cerco. Apertou-se o círculo. Contaram-se as cabeças como às espingardas. Intensificou-se o absoluto condicionamento das consciências. Manipulou-se politicamente o grosseiro afastamento do compromisso pelo referendo. Apartou-se o líder. Ditou-se disciplina. Exibiu-se poder de maioria prefixa. Blindou-se o voto. Está marcada a sessão.
Quanto a socialismo, estamos conversados. A regionalização continua uma trapalhada. O aborto é que é preciso.
No debate desta questão, há um problema incontornável: a vida humana que se destrói, a vida que nasce a que se põe termo.
Não é uma questão técnica. Nem é uma questão de técnica médica, como os que o baptizam pelo eufemismo pudico de IVG. Nem é uma questão técnico-jurídica como, sobre a personalidade jurídica do embrião ou do feto, pode induzir em erro e confusão a infeliz iniciativa do PP, dividindo o campo do não.
É uma questão humana. A questão humana de primeira grandeza. A vida. A vida humana. A questão do mais fundamental de todos os direitos fundamentais. A questão do mais radicalmente humano de todos os direitos humanos. A questão matricial de tudo o resto. A questão que por ela talvez tudo e sem ela absolutamente nada. A questão do começo. A questão do princípio. A questão de existir. A questão de ser, ou não ser.
Uma questão cultural. Uma atitude e uma baliza de civilização. Uma questão moral central. Não da “moral” dos moralismos. Mas da moral, da ética, sobre que se radica toda uma consciência social, humanista e solidária.
Não é uma questão técnica. Não é uma questão fria. É uma questão calorosa. A mais calorosa porventura de todas as questões.
Nenhum debate técnico pátáti-pátátá, de mais semana menos semana, permitirá alguma vez dilucidá-la ou decidi-la. Porque não é nada disso. Apenas vida. Somente a vida. A vida, nua e crua. A vida tão-só propriamente vida.
Apenas razão e coração. A razão e o coração que por aqui se apartam de vez da blindada bancada socialista.
Se em 1998, em Portugal, mercê de um voto cerrado parlamentar ditado à força, evadindo até o desafio do referendo, o aborto foi liberalizado, um tal facto só pode ficar a dever-se a um anacrónico triunfo de obscurantismo e ignorância.
Choca-me sobretudo como é que, após todos os extraordinários avanços da genética, da embriologia, da fetologia que marcam as últimas três décadas da humanidade, ainda alguém pode disputar seriamente, consistentemente, a insofismável verdade dessa vida que se desfia cada vez mais clara aos nossos olhos, em cada pormenor que a traça e em cada registo que a marca. Uma vida humana. Individual, singular, específica, única e irrepetível.
E não entendo como foi um JS a fazer-se emblema de uma tal desforra serôdia, a empunhar a bandeira de um voto retrógado. Nunca entenderei como é que pode ser um da geração mais privilegiada pela absoluta revelação da verdade, a recusá-la com estrondo. Ao modo de quem diz: não vi, não vejo, não quero ver. Não sei, não quero saber. Ainda por cima empurrando e condicionando uma decisão parlamentar forçada, que, a ser tomada, transportará sempre consigo o inapagável ferrete da ilegitimidade política.
(Janeiro de 1998)
Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.
Etiquetas: Em Defesa da Vida, socialismo