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2004/01/13

NA FRONTEIRA DA VIDA 





Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.

JOSÉ RIBEIRO E CASTRO


Agora, em redor do aborto, a palavra que mais se ouve é “hipocrisia”. Sintomaticamente, como em todos os confrontos culturais. Hoje como há 12 ou 14 anos, na voz dos seus promotores, a introdução do debate do aborto livre vem recheado de disparos de acusada “hipocrisia”. Os que não concordamos seríamos “hipócritas”, porque se mantém na lei uma proibição, mas não perseguimos as mulheres que recorrem aos circuitos do aborto clandestino. E seríamos também “hipócritas”, porque, sustentando-se que o aborto é um crime contra a vida, ninguém propõe “em coerência” o agravamento das penas para níveis semelhantes ao do homicídio.

Fique desde já a ideia de não haver o menor instinto persecutório. É verdade; e é bom ver reconhecido que é verdade. Mas também não há ali sombra de hipocrisia — antes justa medida. Na comunidade jurídica, para se assinalar a ilicitude de algum acto, é forçoso dizê-lo e que lhe corresponda uma sanção em abstracto. Mas não se segue daí nem que as sanções previstas houvessem de ser brutais, abstraindo de todas as outras circunstâncias e considerações que no problema do aborto se cruzam, bem como do estado da consciência social, nem que tenham que ser sempre iguais — é obviamente justo, no plano legal, que a sanção prevista seja mais severa para os que explorem aquele “negócio” e mais leve (podendo não ser nenhuma) para a mulher que dramaticamente àquele recorra. Tão-pouco se segue, enfim, que a lei se aplique em automático. Nenhuma lei se aplica em automático — há uma administração da justiça. A justiça também se administra. Nisso não existe a menor hipocrisia; antes, básica humanidade.

A maior hipocrisia é “virar o bico ao prego”. E, hipocrisia por hipocrisia, nesta batalha de argumentos, são muitas as que são assacáveis aos defensores da liberalização do aborto.

Primeira hipocrisia: misturar o alargamento do prazo do aborto eugénico com a legalização do aborto livre. A primeira questão, no estado da lei, já não é sequer tanto jurídica, como, sobretudo, uma questão técnica, no plano médico e científico. A segunda é toda a questão e o problema humanitário e jurídico essencial. A primeira é, de resto, pró-natalista; a segunda é exactamente contra.

Segunda hipocrisia: que o aborto livre é a forma de combater o aborto clandestino. É só vontade de falsear por falsear. O aborto livre não combate coisa nenhuma. A liberalização do aborto é exactamente a própria legalização do aborto clandestino. Renuncia, abdica de vez e reconhece ou favorece até o seu negócio. A experiência mostra, aliás, como são várias — e não apenas, nem sequer principalmente, jurídicos — os factores que concorrem para os circuitos não-hospitalares do aborto e, perdida a questão na cultura social, são vários os países onde aqueles circuitos floresceram de vez e prosperaram sobre a vulnerabilidade alheia.

Terceira hipocrisia: este debate agora, depois de 1982 e 1984. Quando a questão foi aberta, selectivamente sobre o aborto ético, o aborto eugénico e o aborto terapêutico, já se proclamava que era forma de “combater o flagelo do aborto clandestino”. Foi observado que não era — que uma coisa não tinha a ver com a outra; e que, quanto àqueles, a alteração do Código Penal não era necessária, pois a sua parte geral continha as salvaguardas necessárias (que se aplicam, aliás, ao recente “caso Strecht”). A razão era outra. Para lá do possível valor respeitável da segurança jurídica, a legislação específica sobre aqueles casos de dúvida cruciante serviria sobretudo para, no debate cultural e na consciência social, rasgar frestas num edifício de pensamento e para vestir de relativo uma questão absoluta: a vida. Abertas as brechas, abalado e fragilizado o edifício, então, mais tarde, se assaltaria a questão de fundo: o aborto livre, isto é, o aborto por razões económicas ou sociais. Aí estamos.

Quarta hipocrisia: que o aborto livre vai resolver os problemas. Não vai. Hoje como antes, o aborto clandestino é uma fácil alavanca de luta — mas é realmente uma desprezadíssima questão social e humana. Liberalizar o aborto é matar o “sintoma”, para poder continuar a ignorar os problemas. Se é verdade que, em cada aborto clandestino, em cada aborto por razões económicas ou sociais, existe um pedido de socorro implícito ou um desespero de solidão, na angústia de uma decisão sofrida, a resposta social do aborto livre não responde a coisa nenhuma, consagra o abandono e executa o apagamento.

Quinta hipocrisia: a repetição reiterada de que, liberalizando-o, o aborto não pode ser um instrumento de planeamento familiar e de controlo da natalidade. Estamos de acordo quanto a que “não deve ser”. Mas não é verdade que o aborto livre não seja isso. O aborto é isso. O aborto — como hoje diríamos, “por razões económicas ou sociais” — é precisamente o meio mais antigo, mais primitivo, mais bárbaro, mais violento e mais agressivo de controlo da natalidade e, se se quiser, “de planeamento familiar”. Foi sempre assim. Antes do conhecimento de quaisquer métodos naturais e muito antes de quaisquer técnicas ou medicamentos, o aborto foi praticado desde sempre — e é, aliás, contra a natalidade, 100 por cento eficaz. Por isso é que ele se pratica; e nunca foi completamente erradicado. A questão jurídica, cultural e de civilização, humanitária, é exactamente essa, só essa: o aborto ser, ou não ser, um instrumento válido de controlo da natalidade, respeitando ou ignorando a vida que lá está.

Sexta hipocrisia: a ideia de que a liberalização do aborto por razões económicas e sociais é uma medida a favor da mulher. Não é verdade. Bem ao contrário, decorre da mesma ideia de que os filhos são carga exclusiva da mulher, mãe sem pai, e sem família, e sem avós, e sem comunidade. É uma medida que agrava a sua vulnerabilidade, favorecendo, em circunstâncias difíceis, a pressão de um acto sobre ela e o seu filho, que carrega sempre consequências dolorosas para ela e o seu filho. No resto, é a história macholas de sempre — em diálogo figurado, de indignação pós-coito, entre o ainda terno e o já surpreendido, caminhando para o bruto, diz o homem para a mulher: “Então, tu não tomaste as cautelas?” Para logo concluir, macho e já embrutecido: “Eu pu-lo lá. Agora, carrega-o tu ou tira-o tu”.

Sétima hipocrisia: a campanha de que se trata de uma questão religiosa e, convocando as habituais costas largas, que são “a Igreja e os padres” a imporem um conceito privativo. Não é verdade. O aborto livre não é uma questão religiosa. É uma básica questão social e de humanidade. Fundamental e principal — porque exactamente “do princípio”. A vida é para a sociedade um bem livremente disponível, ou não — é disso que se trata.

A lista podia ser interminável. Sem nunca haver acordo quanto a ela, pois é de uma disputa de cultura social e humana que se trata. Mas a hipocrisia que sempre mais me surpreendeu nesta matéria é a do obstinado abscurantismo em que é construída. Há alguns séculos ou no princípio deste ainda, podia-se talvez disputar os fundamentos do conceito seguro sobre a vida humana desde o momento da concepção.

Já não é assim. Sabemos hoje, de ciência certa, que a vida humana é desde o momento da concepção e que é, desde esse momento, una, individual e absolutamente irrepetível. Num livro que se desfia aceleradamente, sobretudo, desde a década de 60, com os progressos da genética, da embriologia, da fetologia, da obstetrícia, sabemos já quase tudo do essencial, momento a momento, dessa vida já. São conquistas recentes do nosso tempo comum: os meus filhos mais novos já os vi antes de nascerem, a mais velha ainda não.

Nunca percebi e nunca irei entender como é que são, porque é que são exactamente aquelas gerações que são cada vez mais privilegiadas e favorecidas com o conhecimento directo, palpável, mensurável, concreto e até positivista de que a vida humana é como é desde o momento da concepção que se aprestem a querer legalizar e liberalizar o que antes, embora não tão conhecido, não era lícito. A explicação só pode ser parente da hipocrisia e do obscurantismo: não ver, não querer ver, não querer deixar ver.

Em qualquer debate sério, já não é admissível ouvir-se dizer que se trata do direito da mulher a “dispor do seu corpo”. Não é o seu corpo. Não é um quisto, nem um apêndice. É uma vida própria, singular, que, antes do parto como depois dele, precisa apenas da protecção necessária a desenvolver-se naturalmente sobre si e com os outros.

Há uma batalha de esclarecimento indispensável. É tanto e tamanho o obscurantismo em que se insiste em abafar a questão que é fácil acreditar que são muitos e muitas os que honestamente não sabem — que nunca viram, nem ouviram. Provavelmente, dentro do drama de cada decisão pessoal, são muitos e muitas os que, nessas cifras incríveis do aborto clandestino, pura e simplesmente não sabem o que estão a fazer, porque não lhes foi dito, nem explicado; antes lhes é, daquele modo, exactamente mentido, conscientemente falseado e teimosamente mistificado. Devia-se começar por aí. Informar e esclarecer. Seriamente. A ciência é aliada da moral.

(Público, 2 de Novembro de 1996)

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