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2004/01/12

NEM RAZÃO, NEM CORAÇÃO 

JOSÉ RIBEIRO E CASTRO

Licenciado em Direito. Foi Secretário Geral do Instituto Democracia e Liberdade, Presidente da Comissão de Fiscalização da RTP, assessor do Alto Comissariado do “Projecto Vida”, Deputado à Assembleia da República, eleito nas listas do CDS e da AD, e Secretário de Estado Adjunto do Vice-Primeiro Ministro. Administrador da TVI, desde Março de 1997. Cronista semanal no jornal “Público”.



Há alguns anos, na era de Reagan, o orgulho americano quis lavar-se na invasão de Granada, entre odes patrióticas. Humilhada e ferida nos anos 70 pelo drama e pelo desaire do Vietname, a águia americana desforrou-se numa pequena ilha das Caraíbas.

Assim é a bancada do PS blindada para o debate desta semana. Frustrados e amargos de revezes mundiais e nacionais no plano ideológico, os sectores mais duros do senhorio oficial da esquerda afogam o desencontro e o desconforto abatendo o seu poder sobre um alvo indefeso e uma legião inocente. O aborto — decretaram — tem que passar. À força, se necessário. Tem que passar.

Quando na passada sessão legislativa, a proposta da JS foi travada por um voto, o tom ficou dado para o “round” seguinte. Não se ouviu nem razão, nem coração. Mais propriamente rancor. Um simples poder, ferido na sua exuberância, cego porque desmentido na sua maioria.

Raras vezes se viu, como nessa altura, tamanha fúria por um contratempo. Ditou-se —o que é apenas tolice e falsidade — que “à esquerda” é tudo pelo aborto, tem que ser tudo pelo aborto. E daí se arrancou para um dos mais violentos condicionamentos psicológicos sobre colegas de bancada de que há memória no parlamento português. Activou-se o aparelhismo. Acenou-se uma crise geral do partido e cerraram-se fileiras, para “em nome da esquerda”, marcar, cercar e fazer refém o próprio líder e primeiro-ministro a que devem a maioria instrumental.

O “marketing”encarregou-se de vestir de herói oficial da “esquerda” o JS que empunhou a bandeira, assim ungido como uma espécie dos sub-20, ou dos sub-18, por onde se vai lavando a honra e desforrando o brio do nosso fracassado futebol internacional. Fizeram-no mesmo piloto de um opúsculo sobre como governar “à esquerda”. O único filho directo da ambiciosa obra é, afinal, este projecto do aborto.

O socialismo propriamente dito pode continuar na gaveta. Aí não se escandalizam, nem se enervam, nem se irritam os pais espirituais de tal investida. O aborto é que faz falta.

Renovou-se a iniciativa. Desenhou-se o cerco. Apertou-se o círculo. Contaram-se as cabeças como às espingardas. Intensificou-se o absoluto condicionamento das consciências. Manipulou-se politicamente o grosseiro afastamento do compromisso pelo referendo. Apartou-se o líder. Ditou-se disciplina. Exibiu-se poder de maioria prefixa. Blindou-se o voto. Está marcada a sessão.

Quanto a socialismo, estamos conversados. A regionalização continua uma trapalhada. O aborto é que é preciso.

No debate desta questão, há um problema incontornável: a vida humana que se destrói, a vida que nasce a que se põe termo.

Não é uma questão técnica. Nem é uma questão de técnica médica, como os que o baptizam pelo eufemismo pudico de IVG. Nem é uma questão técnico-jurídica como, sobre a personalidade jurídica do embrião ou do feto, pode induzir em erro e confusão a infeliz iniciativa do PP, dividindo o campo do não.

É uma questão humana. A questão humana de primeira grandeza. A vida. A vida humana. A questão do mais fundamental de todos os direitos fundamentais. A questão do mais radicalmente humano de todos os direitos humanos. A questão matricial de tudo o resto. A questão que por ela talvez tudo e sem ela absolutamente nada. A questão do começo. A questão do princípio. A questão de existir. A questão de ser, ou não ser.

Uma questão cultural. Uma atitude e uma baliza de civilização. Uma questão moral central. Não da “moral” dos moralismos. Mas da moral, da ética, sobre que se radica toda uma consciência social, humanista e solidária.

Não é uma questão técnica. Não é uma questão fria. É uma questão calorosa. A mais calorosa porventura de todas as questões.

Nenhum debate técnico pátáti-pátátá, de mais semana menos semana, permitirá alguma vez dilucidá-la ou decidi-la. Porque não é nada disso. Apenas vida. Somente a vida. A vida, nua e crua. A vida tão-só propriamente vida.

Apenas razão e coração. A razão e o coração que por aqui se apartam de vez da blindada bancada socialista.

Se em 1998, em Portugal, mercê de um voto cerrado parlamentar ditado à força, evadindo até o desafio do referendo, o aborto foi liberalizado, um tal facto só pode ficar a dever-se a um anacrónico triunfo de obscurantismo e ignorância.

Choca-me sobretudo como é que, após todos os extraordinários avanços da genética, da embriologia, da fetologia que marcam as últimas três décadas da humanidade, ainda alguém pode disputar seriamente, consistentemente, a insofismável verdade dessa vida que se desfia cada vez mais clara aos nossos olhos, em cada pormenor que a traça e em cada registo que a marca. Uma vida humana. Individual, singular, específica, única e irrepetível.

E não entendo como foi um JS a fazer-se emblema de uma tal desforra serôdia, a empunhar a bandeira de um voto retrógado. Nunca entenderei como é que pode ser um da geração mais privilegiada pela absoluta revelação da verdade, a recusá-la com estrondo. Ao modo de quem diz: não vi, não vejo, não quero ver. Não sei, não quero saber. Ainda por cima empurrando e condicionando uma decisão parlamentar forçada, que, a ser tomada, transportará sempre consigo o inapagável ferrete da ilegitimidade política.

(Janeiro de 1998)

Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.

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