2003/12/30
OS MÉDICOS E O ABORTO
Professor Doutor DANIEL SERRÃO
Médico. Professor Catedrático da Faculdade de Medicina do Porto. Membro da Comissão Nacional de Ética e da Academia Pontifícia das Ciências da Vida. Presidente da Associação dos Médicos Católicos Portugueses.
No meio de tanta turbulência e emotividade, proponho-me um depoimento sereno, como médico, sobre o acto de abortamento.
1. Em primeiro lugar, o médico não pode nem deve proceder ao acto de matar um ser humano autónomo, que se está a desenvolver na cavidade uterina de uma mulher, apenas porque a mulher lhe solicita que o faça. Não se tratando de uma situação de doença, o médico não pode deixar-se manipular pela vontade da gestante, que apenas deseja destruir o ser humano que ela aceitou criar quando consentiu em ser fecundada.
Matar uma criança saudável que está a viver, transitoriamente, no útero de uma mulher saudável, não é um acto médico. Nenhum médico o pode ou deve praticar.
Os poucos médicos que aceitam acatar a vontade destas mulheres fazem-no apenas por dinheiro, são ambiciosos sem escrúpulos, que não merecem usar o título de médicos. Muitos deles acabam a sua vida em grande desespero, alguns suicidam-se, outros transformam-se em grandes activistas das campanhas contra o aborto. Nenhum tem paz.
Estes abortos a pedido da mulher, sem razões de saúde, e invocando vagos pretextos económicos ou sociais são e continuarão a ser sempre clandestinos e de alto risco, porque nem os médicos nem outros profissionais de saúde os podem ou devem praticar. E são a imensa maioria. A solução é económica, social e educativa; não passa pelo aborto.
2. Quando haja motivos de saúde, da mãe ou da criança em desenvolvimento, é dever do médico estudar com o maior cuidado, com o maior rigor científico e técnico, com simpatia e até com afectividade, a situação que lhe é apresentada.
Como médico, cabe-lhe defender, antes de mais, os interesses do seu doente.
Se o doente é a mãe, se há risco grave de vida, se esta vida só pode ser salva com uma acção terapêutica que, indirectamente, pode matar o produto de concepção, o médico, obtido o assentimento da mãe, vai, em último recurso e sempre com sofrimento pessoal, fazer esse tratamento de que resultará a morte do filho. Mas, a este acto médico não se deve chamar aborto. É boa prática médica.
Se o seu doente é o filho, o médico deve procurar tratá-lo e já hoje se tratam, até cirurgicamente, doenças e malformações dos fetos. A medicina e a cirurgia fetal desenvolvem-se e progridem rapidamente e o médico tudo deve fazer para curar o feto doente que está entregue aos seus cuidados. Mas se a doença é de morte, a própria mãe o expulsa já morto. Se a morte vai ocorrer, com absoluta certeza, pouco depois do nascimento, e se o que vai nascer não é um corpo humano mas um corpo ao qual faltam os órgãos que lhe permitirão que venha a ser uma pessoa humana, o médico pode terminar a gestação deste produto anormal, extraindo-o do corpo da mãe, obtido o assentimento desta. Mas a este acto médico não se deve chamar aborto. É boa prática médica.
3. Entre estes dois extremos, onde a decisão médica é fácil — sempre não, no primeiro; sempre sim, no segundo — fica a zona cinzenta, ocupada pela doença da mãe, de gravidade difícil de valorizar, em especial no foro psíquico; fica a gravidez resultante de violação agressiva que causa uma profunda rejeição pelo produto desse crime nojento; fica a malformação do feto que não ameaça a sua vida mas vai produzir um ser humano, com deficiências mais ou menos incapacitantes, a exigir muita dedicação dos pais e grande apoio da sociedade; fica o defeito genético cuja probabilidade de se manifestar como doença não pode ser garantida, etc.; nem esquecer que as técnicas invasoras de estudo do feto são, elas próprias, causa de abortamento, numa percentagem não desprezível.
Aqui, o médico actua como membro de uma equipa ao lado de outros especialistas e em apurado diálogo com a família em causa. Completado o estudo, há que ponderar em conjunto qual é a solução melhor, apresentá-la ao casal e deixar que este resolva, segundo a sua consciência ética e moral, se a aceita ou não.
Se o casal não aceita uma solução que envolva a morte do seu filho, a equipa de diagnóstico e tratamento deve aceitar esta escolha.
Se a proposta não é a de matar o filho, mas o casal não deseja correr nenhum risco e, "pelo seguro", prefere que o filho seja morto, o médico tem o direito de recorrer à objecção de consciência.
Se a proposta é a morte do filho, porque a equipa ponderou todos os aspectos e considerou que era a melhor solução para o caso clínico, tal como ele objectivamente se apresenta (por exemplo caso de violação com alto risco de suicídio da mãe), e se o casal aceita o sacrifício do filho, o médico pode proceder a este acto, sempre o considerando como um abortamento com fim terapêutico, registando-o como tal e com referência às pessoas e aos motivos que geraram esta decisão. Mesmo neste caso, um médico ou um enfermeiro podem apresentar objecção de consciência.
4. E a lei? Dada a dificuldade de consenso, resulta ambígua. Se o abortamento só é legalizada por ser legítimo, por ser uma boa solução terapêutica, então a sua legitimidade é igual às 12 semanas, às 16, às 14, ou às 32 semanas.
Porém se o legislador, o Parlamento, acham que alguns abortamentos, feitos nos termos da lei, não eram legítimos e pretendem legalizá-los, mas apenas dentro de um certo prazo (sem nenhuma razão científica válida), a fixação deste prazo é eticamente perversa e pode permitir passar, sub-liminarmente esta mensagem: não é legítimo fazer um abortamento, mas se for logo no princípio...
Em conclusão:
O médico só pode intervir na gravidez, quando há uma situação clínica que o justifique.
Algumas vezes, dessa intervenção, clinicamente justificada, pode resultar a morte do produto de concepção; mas esta morte não é intencionalmente procurada e produzida pelo médico como a finalidade única ou principal da sua intervenção.
Porque é, então, um acto médico legítimo, o momento temporal da sua realização não pode ser limitado por quaisquer disposições legais que fixem prazos.
O abortamento, a pedido da mulher grávida, sem razões médicas, não deve ser nunca praticada por médicos cuja actividade profissional se destina a tratar as doenças e aliviar o sofrimento quando não seja possível tratar ou curar.
(Agência Ecclesia, 30 de Outubro de 1996)
Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.
Médico. Professor Catedrático da Faculdade de Medicina do Porto. Membro da Comissão Nacional de Ética e da Academia Pontifícia das Ciências da Vida. Presidente da Associação dos Médicos Católicos Portugueses.
No meio de tanta turbulência e emotividade, proponho-me um depoimento sereno, como médico, sobre o acto de abortamento.
1. Em primeiro lugar, o médico não pode nem deve proceder ao acto de matar um ser humano autónomo, que se está a desenvolver na cavidade uterina de uma mulher, apenas porque a mulher lhe solicita que o faça. Não se tratando de uma situação de doença, o médico não pode deixar-se manipular pela vontade da gestante, que apenas deseja destruir o ser humano que ela aceitou criar quando consentiu em ser fecundada.
Matar uma criança saudável que está a viver, transitoriamente, no útero de uma mulher saudável, não é um acto médico. Nenhum médico o pode ou deve praticar.
Os poucos médicos que aceitam acatar a vontade destas mulheres fazem-no apenas por dinheiro, são ambiciosos sem escrúpulos, que não merecem usar o título de médicos. Muitos deles acabam a sua vida em grande desespero, alguns suicidam-se, outros transformam-se em grandes activistas das campanhas contra o aborto. Nenhum tem paz.
Estes abortos a pedido da mulher, sem razões de saúde, e invocando vagos pretextos económicos ou sociais são e continuarão a ser sempre clandestinos e de alto risco, porque nem os médicos nem outros profissionais de saúde os podem ou devem praticar. E são a imensa maioria. A solução é económica, social e educativa; não passa pelo aborto.
2. Quando haja motivos de saúde, da mãe ou da criança em desenvolvimento, é dever do médico estudar com o maior cuidado, com o maior rigor científico e técnico, com simpatia e até com afectividade, a situação que lhe é apresentada.
Como médico, cabe-lhe defender, antes de mais, os interesses do seu doente.
Se o doente é a mãe, se há risco grave de vida, se esta vida só pode ser salva com uma acção terapêutica que, indirectamente, pode matar o produto de concepção, o médico, obtido o assentimento da mãe, vai, em último recurso e sempre com sofrimento pessoal, fazer esse tratamento de que resultará a morte do filho. Mas, a este acto médico não se deve chamar aborto. É boa prática médica.
Se o seu doente é o filho, o médico deve procurar tratá-lo e já hoje se tratam, até cirurgicamente, doenças e malformações dos fetos. A medicina e a cirurgia fetal desenvolvem-se e progridem rapidamente e o médico tudo deve fazer para curar o feto doente que está entregue aos seus cuidados. Mas se a doença é de morte, a própria mãe o expulsa já morto. Se a morte vai ocorrer, com absoluta certeza, pouco depois do nascimento, e se o que vai nascer não é um corpo humano mas um corpo ao qual faltam os órgãos que lhe permitirão que venha a ser uma pessoa humana, o médico pode terminar a gestação deste produto anormal, extraindo-o do corpo da mãe, obtido o assentimento desta. Mas a este acto médico não se deve chamar aborto. É boa prática médica.
3. Entre estes dois extremos, onde a decisão médica é fácil — sempre não, no primeiro; sempre sim, no segundo — fica a zona cinzenta, ocupada pela doença da mãe, de gravidade difícil de valorizar, em especial no foro psíquico; fica a gravidez resultante de violação agressiva que causa uma profunda rejeição pelo produto desse crime nojento; fica a malformação do feto que não ameaça a sua vida mas vai produzir um ser humano, com deficiências mais ou menos incapacitantes, a exigir muita dedicação dos pais e grande apoio da sociedade; fica o defeito genético cuja probabilidade de se manifestar como doença não pode ser garantida, etc.; nem esquecer que as técnicas invasoras de estudo do feto são, elas próprias, causa de abortamento, numa percentagem não desprezível.
Aqui, o médico actua como membro de uma equipa ao lado de outros especialistas e em apurado diálogo com a família em causa. Completado o estudo, há que ponderar em conjunto qual é a solução melhor, apresentá-la ao casal e deixar que este resolva, segundo a sua consciência ética e moral, se a aceita ou não.
Se o casal não aceita uma solução que envolva a morte do seu filho, a equipa de diagnóstico e tratamento deve aceitar esta escolha.
Se a proposta não é a de matar o filho, mas o casal não deseja correr nenhum risco e, "pelo seguro", prefere que o filho seja morto, o médico tem o direito de recorrer à objecção de consciência.
Se a proposta é a morte do filho, porque a equipa ponderou todos os aspectos e considerou que era a melhor solução para o caso clínico, tal como ele objectivamente se apresenta (por exemplo caso de violação com alto risco de suicídio da mãe), e se o casal aceita o sacrifício do filho, o médico pode proceder a este acto, sempre o considerando como um abortamento com fim terapêutico, registando-o como tal e com referência às pessoas e aos motivos que geraram esta decisão. Mesmo neste caso, um médico ou um enfermeiro podem apresentar objecção de consciência.
4. E a lei? Dada a dificuldade de consenso, resulta ambígua. Se o abortamento só é legalizada por ser legítimo, por ser uma boa solução terapêutica, então a sua legitimidade é igual às 12 semanas, às 16, às 14, ou às 32 semanas.
Porém se o legislador, o Parlamento, acham que alguns abortamentos, feitos nos termos da lei, não eram legítimos e pretendem legalizá-los, mas apenas dentro de um certo prazo (sem nenhuma razão científica válida), a fixação deste prazo é eticamente perversa e pode permitir passar, sub-liminarmente esta mensagem: não é legítimo fazer um abortamento, mas se for logo no princípio...
Em conclusão:
O médico só pode intervir na gravidez, quando há uma situação clínica que o justifique.
Algumas vezes, dessa intervenção, clinicamente justificada, pode resultar a morte do produto de concepção; mas esta morte não é intencionalmente procurada e produzida pelo médico como a finalidade única ou principal da sua intervenção.
Porque é, então, um acto médico legítimo, o momento temporal da sua realização não pode ser limitado por quaisquer disposições legais que fixem prazos.
O abortamento, a pedido da mulher grávida, sem razões médicas, não deve ser nunca praticada por médicos cuja actividade profissional se destina a tratar as doenças e aliviar o sofrimento quando não seja possível tratar ou curar.
(Agência Ecclesia, 30 de Outubro de 1996)
Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.
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