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2003/12/22

NOTA SOBRE O ABORTAMENTO HUMANO - POSIÇÃO CIENTÍFICA E ÉTICA 

Professor Doutor DANIEL SERRÃO

Médico. Professor Catedrático da Faculdade de Medicina do Porto. Membro da Comissão Nacional de Ética e da Academia Pontifícia das Ciências da Vida. Presidente da Associação dos Médicos Católicos Portugueses.

A fertilidade é um processo biológico cujo objectivo é a sobrevivência da espécie. Como é um processo de baixo rendimento observam-se, em todas as espécies, múltiplas estratégias de protecção da fêmea grávida.

A fertilidade humana é muito mais do que um simples processo de sobrevivência da espécie mas não deixa de participar neste objectivo biológico fundamental.

Na fertilidade humana há um objectivo da pessoa a qual utiliza, para o realizar, o corpo humano como suporte biológico.

Uma mulher grávida, não é apenas um útero que alimenta um feto. É uma pessoa, humana claro está, que vive em todas as suas dimensões, físicas e espirituais, a grandeza da maternidade. Ao vínculo biológico útero-feto acrescenta-se o vínculo humano e pessoal mãe-filho.

Assim se explica a dor profunda de tantas mães quando perdem espontaneamente os filhos mesmo que a relação com o filho se limitasse ainda e apenas a um teste positivo de gravidez.

É para mim seguro que nenhuma mulher grávida deseja ou aceita fazer-se abortar sem um profundo sofrimento pessoal.

Algumas vezes o abortamento é proposto à mulher grávida pelo médico que acompanha a gravidez; malformações graves incompatíveis com a vida ou que não permitirão nunca o desenvolvimento de uma auto-consciência mínima que permita alguma vida de relação são indicações médicas para abortamento; não as contesto mas sublinho que quem tem o poder de decidir é a própria mulher grávida depois de informada com verdade e com rigor científico e sem qualquer pressão directa ou indirecta.

Tratando-se de uma indicação médica deve poder ser praticada em qualquer fase da gravidez; porque não é a idade do produto de concepção que legitima o abortamento mas sim o estado de necessidade.

O mesmo afirmo quando a indicação médica para o abortamento é doença grave da mãe, directa ou indirectamente relacionada com o produto de concepção e na qual o tratamento da mãe obriga à morte do filho.

Do ponto de vista científico o tempo de vida do produto de concepção não tem qualquer significado no que se refere ao abortamento.

O ovo, resultante da conjugação do espermatozóide com o óvulo, é a primeira forma de apresentação de um corpo humano autónomo; quando evolui para 2, 4, 8, 16, 32 células, em função do tempo, o que nós vemos ao microscópio são outras tantas formas de apresentação de um corpo humano; quando se instala no endométrio do útero materno, com seis a oito dias de vida autónoma, apresenta-nos outra forma corporal. E não mais deixará de mudar a sua forma corporal, durante os nove meses de vida intra-uterina e durante os oitenta a noventa anos de vida extra-uterina até à morte.

Todas estas formas corporais, do ovo ao ancião, são formas de apresentação do corpo humano; todas participam de uma qualidade intrínseca a que chamamos dignidade humana; todas têm direito a conservar a vida, que é vida humana e que em todas elas se manifesta de forma exuberante. Não há menos vida humana no ovo, no embrião, no feto, no recém-nascido, no jovem, no adulto, ou no velho. Em todas estas formas de manifestação do corpo humano há vida e é vida humana.

Do ponto de vista científico estas afirmações não sofrem contestação de ninguém.

A questão coloca-se no plano social.

A vida humana é socialmente vulnerável. Sempre, antes e depois da abolição (teórica) da escravatura e da pena de morte, a sociedade autorizou ou fomentou a morte de indivíduos humanos para protecção de valores sociais impostos pelo grupo que detenha o poder.

Quanto mais curto é o tempo de vida maior é a vulnerabilidade: o trabalho infantil (forma larvar de escravatura), a pedofilia e o elevado número de crianças maltratadas assistidas nas urgências hospitalares, mostram como as crianças sofrem e morrem às mãos cruéis dos poderosos, que podem ser os próprios pais.

Mas a criança ainda no útero da mãe é a mais vulnerável de todas as criaturas; sem estatuto jurídico que a proteja, ela é um ser humano totalmente desamparado face aos poderosos deste mundo, que podem ser os Senhores Deputados.

O seu defensor natural, por força do vínculo biológico, é a mãe; e se esta não pode ou não sabe defender a sua cria biológica dos predadores (que podem ser os legisladores) a obrigação da sociedade não é proferir uma sentença de morte mas acolher esse novo corpo humano no seu seio, no sentido próprio de estrutura humana que alimenta e torna possível o desenvolvimento.

Os dois grandes princípios éticos que devem impedir o abortamento, por decisão livre da mulher grávida, são o da vulnerabilidade e o da solidariedade. Os vulneráveis merecem maior protecção e devem ser objecto de solidariedade social.

O Artigo 2º da Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina do Conselho da Europa, que Portugal subscreveu em 4 de Abril de 97 diz: “Os interesses e o bem-estar do ser humano deverão prevalecer sobre o interesse exclusivo da sociedade ou da ciência”.

Não podendo convencer-me, como biólogo, que o ovo, o embrião ou o feto são menos corpo humano que a criança nascida ou o ancião, devo a todos o mesmo respeito ético, absoluto, pela vida humana que neles se manifesta.

Este respeito ético não tem relação com o tempo já vivido por esse corpo humano nem com o modo como eu posso vê-lo, na rua, no berço, na imagem de ecografia, ao microscópio.

Não é o modo como eu o vejo que lhe dá a dignidade humana, a dignidade de corpo humano.

Esta está conservada no genoma do ovo humano e ao iniciar a expressão desse genoma dá origem a um corpo humano e só a um corpo humano.

Por isto a UNESCO acaba de declarar o Genoma Humano, como património comum da Humanidade.

Em síntese: com base nos conhecimentos científicos mais modernos e actuais e na reflexão ética que neles se fundamenta não posso aceitar que uma mulher grávida possa dispor livremente da vida do produto de concepção que nela se albergou, seja qual for o tempo já vivido por esse corpo humano.

(Janeiro de 1998)

Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.

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