2003/12/03
Leva de ABRIL
Do livro "Leva de ABRIL"
De Gil Roseira Cardoso Dias
Editora Nova Arrancada
DESGRAÇA
A ideia nos unia,
A guerra nos sagrava.
Por amor se morria,
Por amor se matava.
Pagávamos com sangue
A honra de existir.
No peito, expectante,
A vitória a sorrir.
Alguns – falsa linhagem –
Dizendo-se fidalgos,
Sepultada a coragem,
Leiloaram-se escravos.
Babado de peçonha
O nome português,
Mataram, de vergonha,
Os mortos outra vez.
Perdidos porto e honra,
Sem paz nem domicílio,
Teu corpo gera, agora,
Os filhos do exílio.
SONETO – III
Fugiram para a corte de Castela
Alguns infantes, muitos cavaleiros,
Mas deixaram uns quantos companheiros
Minando o interior da cidadela.
Secretamente, com toda a cautela,
Tiraram de duzentos os primeiros
Quarenta – que seriam carcereiros
Da Nação e depois carrascos dela.
Tão sinistro projecto resultou,
Perante a tibieza dos esquivos
E vil temor. O povo não lutou.
Ninguém lutou! Estamos todos vivos!
Por isso a Sorte já nos destinou
Perder Aljubarrota e ser cativos.
IDOS
Como a Primavera,
Vestida e orvalhada,
Sorria quando era
A vida retomada.
O coqueiral, na tarde
De calor e silêncio,
Tinha a solenidade
Das Missas com incenso.
E era gente e terra
Tão boa e tão modesta,
Que íamos à guerra
Como se fosse festa.
E o enrubescente
Teu casto gentil corpo
Com o sabor nascente
De mel e vinho novo.
ORAÇÃO DEMOCRÁTICA
Há tantos judas vivos, que a minha ciência
não consegue explicar, de nenhuma maneira,
se os judas estão vivos por inconsciência
ou se por cada um não ter sua figueira.
Uni-vos! Proletários de herdades colectivas,
que entreteneis o ócio em meio de azinhais:
mandai a educação política às ortigas
e plantai, sem demora, cem mil figueirais.
NATAL DE PREC
Não ter ninguém como se fosse apátrida,
O grito represado na garganta
Pior que arroto de cerveja morna.
Os olhos afogados nesse mar
Que a nossa cobardia proibiu.
O gesto sem propósito ou sentido,
Apontando uma troça de infinito
Num horizonte gasto de tão visto.
E, sobretudo,
Pairando no quadro descomposto
De amargura, náusea e solidão,
Um pássaro agoirento,
grasnando que outros mais dias virão,
assim iguais
assim iguais
assim iguais
tlim tlão
tlim tlão
GRITO
I
Escrevo como quem sobe
As escadas de um altar
Cavado no tronco de roble
Multissecular,
Que povoou de ramos a vastidão do mar.
Olho no longe os ramos projectados.
Montículos de terra revolvida
No sopé de uma pedra:
- Padrão a cuja sombra o Povo prosseguia
Cristo, Pão e Paz,
Onde hoje só há fome e o medo medra.
(De gala se vestiam os coveiros.
Nenhum correu o risco de usar armas
Nem o de olhar o Sol).
II
Cumpri
Marchando todo o dia, sol a sol,
A rota de regresso povoada
De Santos e de Heróis (gente do Povo!)
Assim cheguei à praia sitiada
Donde por fé de Portugal-a-Ser
Com a bênção de Deus fui de abalada
A servir e viver.
Regressado
Ao fim de anos quinhentos de canseiras
Só me resta uma pedra onde dormir.
Nem pão nem milho a secar nas eiras:
Só o bramido das crispadas ondas
E o por-vir.
III
Antes
Que cicatrizem as chagas de mil feridas
Por todo o lado surgem capitões
De cenho e de modos arrogantes
Engalanados histriões
A parlar por dez mil altifalantes
Para os acomodados e os servis.
IV
Digo-lhes não!
Milhares de vezes não! De olhos a arder
Do Sol de Portugal que me consome.
Não há força que me dome
Partido que me comporte...
Só Portugal me pode conter.
De Gil Roseira Cardoso Dias
Editora Nova Arrancada
DESGRAÇA
A ideia nos unia,
A guerra nos sagrava.
Por amor se morria,
Por amor se matava.
Pagávamos com sangue
A honra de existir.
No peito, expectante,
A vitória a sorrir.
Alguns – falsa linhagem –
Dizendo-se fidalgos,
Sepultada a coragem,
Leiloaram-se escravos.
Babado de peçonha
O nome português,
Mataram, de vergonha,
Os mortos outra vez.
Perdidos porto e honra,
Sem paz nem domicílio,
Teu corpo gera, agora,
Os filhos do exílio.
SONETO – III
Fugiram para a corte de Castela
Alguns infantes, muitos cavaleiros,
Mas deixaram uns quantos companheiros
Minando o interior da cidadela.
Secretamente, com toda a cautela,
Tiraram de duzentos os primeiros
Quarenta – que seriam carcereiros
Da Nação e depois carrascos dela.
Tão sinistro projecto resultou,
Perante a tibieza dos esquivos
E vil temor. O povo não lutou.
Ninguém lutou! Estamos todos vivos!
Por isso a Sorte já nos destinou
Perder Aljubarrota e ser cativos.
IDOS
Como a Primavera,
Vestida e orvalhada,
Sorria quando era
A vida retomada.
O coqueiral, na tarde
De calor e silêncio,
Tinha a solenidade
Das Missas com incenso.
E era gente e terra
Tão boa e tão modesta,
Que íamos à guerra
Como se fosse festa.
E o enrubescente
Teu casto gentil corpo
Com o sabor nascente
De mel e vinho novo.
ORAÇÃO DEMOCRÁTICA
Há tantos judas vivos, que a minha ciência
não consegue explicar, de nenhuma maneira,
se os judas estão vivos por inconsciência
ou se por cada um não ter sua figueira.
Uni-vos! Proletários de herdades colectivas,
que entreteneis o ócio em meio de azinhais:
mandai a educação política às ortigas
e plantai, sem demora, cem mil figueirais.
NATAL DE PREC
Não ter ninguém como se fosse apátrida,
O grito represado na garganta
Pior que arroto de cerveja morna.
Os olhos afogados nesse mar
Que a nossa cobardia proibiu.
O gesto sem propósito ou sentido,
Apontando uma troça de infinito
Num horizonte gasto de tão visto.
E, sobretudo,
Pairando no quadro descomposto
De amargura, náusea e solidão,
Um pássaro agoirento,
grasnando que outros mais dias virão,
assim iguais
assim iguais
assim iguais
tlim tlão
tlim tlão
GRITO
I
Escrevo como quem sobe
As escadas de um altar
Cavado no tronco de roble
Multissecular,
Que povoou de ramos a vastidão do mar.
Olho no longe os ramos projectados.
Montículos de terra revolvida
No sopé de uma pedra:
- Padrão a cuja sombra o Povo prosseguia
Cristo, Pão e Paz,
Onde hoje só há fome e o medo medra.
(De gala se vestiam os coveiros.
Nenhum correu o risco de usar armas
Nem o de olhar o Sol).
II
Cumpri
Marchando todo o dia, sol a sol,
A rota de regresso povoada
De Santos e de Heróis (gente do Povo!)
Assim cheguei à praia sitiada
Donde por fé de Portugal-a-Ser
Com a bênção de Deus fui de abalada
A servir e viver.
Regressado
Ao fim de anos quinhentos de canseiras
Só me resta uma pedra onde dormir.
Nem pão nem milho a secar nas eiras:
Só o bramido das crispadas ondas
E o por-vir.
III
Antes
Que cicatrizem as chagas de mil feridas
Por todo o lado surgem capitões
De cenho e de modos arrogantes
Engalanados histriões
A parlar por dez mil altifalantes
Para os acomodados e os servis.
IV
Digo-lhes não!
Milhares de vezes não! De olhos a arder
Do Sol de Portugal que me consome.
Não há força que me dome
Partido que me comporte...
Só Portugal me pode conter.