2003/12/29
A MULHER E O SALMÃO
Professor Doutor DANIEL SERRÃO
Médico. Professor Catedrático da Faculdade de Medicina do Porto. Membro da Comissão Nacional de Ética e da Academia Pontifícia das Ciências da Vida. Presidente da Associação dos Médicos Católicos Portugueses.
Durante a audição parlamentar, em relação com os projectos de alteração da lei do aborto, fiz uma referência, “en passant”, ao comportamento da fêmea do salmão em matéria de protecção da fertilidade natural.
Apresentada fora do contexto por alguns meios de comunicação social, tem-me valido críticas contundentes e até a classificação de “boutade” por parte de um colaborador do PÚBLICO que, aliás, escreveu um artigo muito equilibrado e bem argumentado.
Mas afinal o que é que eu disse?
Que a vida, biologicamente considerada, é igual nas plantas, nos animais e no homem. É um processo com algumas centenas de milhões de anos que evoluiu de uma célula primordial pró-cariota até à biodiversidade actual.
Na biodiversidade, o homem é muito recente e não se pode garantir que não seja uma emergência passageira. Alguns ecologistas “duros” admitem até que, se for necessário para conservar o sistema bioecológico que o homem desapareça, ele tem o dever “ético” de desaparecer por uma extinção em massa natural.
O homem, porém, não será naturalmente extinto porque ele é o único ser vivo capaz de pensar o futuro e de modificar o seu comportamento segundo a sua inteligência (o chamado “Clube de Roma” fez, nesta perspectiva, um exercício exemplar).
A fertilidade de todas as espécies vivas é a estratégia fundamental de sobrevivência. Não da sobrevivência do indivíduo, claro está, mas da sobrevivência da organização (do organismo) que nele se manifesta e da população dos organismos idênticos.
É verdade que a fêmea do salmão, apesar de todo o seu cuidado e vigilância, vê os predadores destruírem parte dos seus filhos; é verdade que algumas fê-meas de mamíferos não conseguem, por vezes, amamentar os filhos quando são em número excessivo; é, também, verdade que a tartaruga marinha percorre milhares de quilómetros para depositar os ovos na areia de uma certa praia e os nativos humanos podem comê-los. Mas estes fracassos relativos da fertilidade animal não são imputáveis à etologia das espécies.
A fertilidade é, de facto, a estratégia maior da sobrevivência das espécies. Também o é na espécie humana. Só que o homem, sendo, de toda a evidência, um animal, não é apenas um animal. À ética de base biológica — à qual está, naturalmente, sujeito — acrescenta-se uma ética de fundamentação racional e, para muitos, uma ética de raiz transcendental ou religiosa.
O que eu quis propor aos deputados foi que considerassem estes três níveis de condicionamento ético do comportamento humano e que, ao votarem, votassem em consciência. Não apenas consciência moral e religiosa (naturalmente respeitável), mas consciência cognitiva e racional (autoconsciência) e ainda uma espécie de consciência residual puramente biológica, a qual, queiramos ou não, subjaz no nosso estado actual de seres orgulhosamente inteligentes, pro-prietários do mundo natural e das coisas vivas que o habitam.
Quando penso na monstruosidade que foi a Inquisição e a monstruosidade que é, ainda nos nossos dias, a escravatura, convenço-me que os que foram queimados e os que estão sujeitos a escravidão não eram nem são, para os autores do crime, seres humanos mas apenas coisas humanas ou, sabe-se lá, animais.
O embrião não é uma coisa. É, ao mesmo tempo, ele próprio e o seu desenvolvimento futuro. A corporeidade humana está toda contida na estrutura biológica do embrião e por isso este é um real ser humano que vai desenvolver-se “ex natura sua”, com os seus próprios meios.
Eu fui embrião e hoje, adulto velho, não posso dizer “tenho um corpo”, mas sim “sou um corpo”. O mesmo que diria, quando fui embrião, se pudesse falar.
Mas são as palavras que criam o real? Não é o real anterior a todas as palavras?
(Público, 20 de Fevereiro de 1997)
Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.
Médico. Professor Catedrático da Faculdade de Medicina do Porto. Membro da Comissão Nacional de Ética e da Academia Pontifícia das Ciências da Vida. Presidente da Associação dos Médicos Católicos Portugueses.
Durante a audição parlamentar, em relação com os projectos de alteração da lei do aborto, fiz uma referência, “en passant”, ao comportamento da fêmea do salmão em matéria de protecção da fertilidade natural.
Apresentada fora do contexto por alguns meios de comunicação social, tem-me valido críticas contundentes e até a classificação de “boutade” por parte de um colaborador do PÚBLICO que, aliás, escreveu um artigo muito equilibrado e bem argumentado.
Mas afinal o que é que eu disse?
Que a vida, biologicamente considerada, é igual nas plantas, nos animais e no homem. É um processo com algumas centenas de milhões de anos que evoluiu de uma célula primordial pró-cariota até à biodiversidade actual.
Na biodiversidade, o homem é muito recente e não se pode garantir que não seja uma emergência passageira. Alguns ecologistas “duros” admitem até que, se for necessário para conservar o sistema bioecológico que o homem desapareça, ele tem o dever “ético” de desaparecer por uma extinção em massa natural.
O homem, porém, não será naturalmente extinto porque ele é o único ser vivo capaz de pensar o futuro e de modificar o seu comportamento segundo a sua inteligência (o chamado “Clube de Roma” fez, nesta perspectiva, um exercício exemplar).
A fertilidade de todas as espécies vivas é a estratégia fundamental de sobrevivência. Não da sobrevivência do indivíduo, claro está, mas da sobrevivência da organização (do organismo) que nele se manifesta e da população dos organismos idênticos.
É verdade que a fêmea do salmão, apesar de todo o seu cuidado e vigilância, vê os predadores destruírem parte dos seus filhos; é verdade que algumas fê-meas de mamíferos não conseguem, por vezes, amamentar os filhos quando são em número excessivo; é, também, verdade que a tartaruga marinha percorre milhares de quilómetros para depositar os ovos na areia de uma certa praia e os nativos humanos podem comê-los. Mas estes fracassos relativos da fertilidade animal não são imputáveis à etologia das espécies.
A fertilidade é, de facto, a estratégia maior da sobrevivência das espécies. Também o é na espécie humana. Só que o homem, sendo, de toda a evidência, um animal, não é apenas um animal. À ética de base biológica — à qual está, naturalmente, sujeito — acrescenta-se uma ética de fundamentação racional e, para muitos, uma ética de raiz transcendental ou religiosa.
O que eu quis propor aos deputados foi que considerassem estes três níveis de condicionamento ético do comportamento humano e que, ao votarem, votassem em consciência. Não apenas consciência moral e religiosa (naturalmente respeitável), mas consciência cognitiva e racional (autoconsciência) e ainda uma espécie de consciência residual puramente biológica, a qual, queiramos ou não, subjaz no nosso estado actual de seres orgulhosamente inteligentes, pro-prietários do mundo natural e das coisas vivas que o habitam.
Quando penso na monstruosidade que foi a Inquisição e a monstruosidade que é, ainda nos nossos dias, a escravatura, convenço-me que os que foram queimados e os que estão sujeitos a escravidão não eram nem são, para os autores do crime, seres humanos mas apenas coisas humanas ou, sabe-se lá, animais.
O embrião não é uma coisa. É, ao mesmo tempo, ele próprio e o seu desenvolvimento futuro. A corporeidade humana está toda contida na estrutura biológica do embrião e por isso este é um real ser humano que vai desenvolver-se “ex natura sua”, com os seus próprios meios.
Eu fui embrião e hoje, adulto velho, não posso dizer “tenho um corpo”, mas sim “sou um corpo”. O mesmo que diria, quando fui embrião, se pudesse falar.
Mas são as palavras que criam o real? Não é o real anterior a todas as palavras?
(Público, 20 de Fevereiro de 1997)
Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.
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