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2004/01/31

ABORTO 




Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.

MÁRIO BIGOTTE CHORÃO

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Sócio da Sociedade Científica da mesma Universidade e do Instituto Internacional de Estudos Europeus “António Rosmini” (Bolzano). Pertence à direcção da revista “O Direito”. Tem participado em iniciativas e publicado trabalhos no domínio do Biodireito.


1. Noção.

Entende-se aqui por A. (ab-ortus: privação do nascimento) o acto intencional (A. voluntário, provocado ou procurado) mediante o qual se causa directamente (A. directo) a morte do fruto da concepção humana, por qualquer método e em qualquer momento da gravidez, com a consequente interrupção desta; esse resultado pode produzir-se no seio materno ou derivar da expulsão prematura do feto. Deste conceito ficam, pois, excluídos os casos de A. involuntário, espontâneo ou casual, e, bem assim, os de A. indirecto (proveniente, como efeito secundário, previsto, mas não querido, de uma acção em si mesma boa, como a destinada a salvar a mãe).

2. A questão do aborto.

a) Questão que interessa simultaneamente, à moral (bioética), ao direito (biodireito) e à política (biopolítica), o A. é versado, neste lugar, de preferência do ponto de vista jurídico, mas em íntima relação com as outras perspectivas. A problemática de supressão da vida humana antes do nascimento adquire hoje aspectos novos na prática biomédica, com intervenções que podem ocasionar a morte dos seres embrionários, nomeadamente os procedentes da fecundação in vitro. Muito do que aqui se diz quanto ao A. vale, com as adaptações convenientes, para estas situações.

b) A doutrina ética tradicional, baseada na lei moral natural e em princípios bioéticos de cunho personalista, vê no A. uma conduta intrínseca e gravemente ilícita por contrariar o imperativo absoluto que impõe o respeito da vida do ser humano inocente. A moral cristã reforça este juízo à luz dos ensinamentos da Revelação relativos à eminente dignidade da pessoa humana e ao valor sagrado da sua vida desde a fecundação. Assim, a Igreja Católica condena o A. como pecado particularmente grave e “crime abominável”, considerando-o no Código de Direito Canónico, como fundamento de excomunhão latae sen tentiae e impedimento à recepção e exercício de ordens sagradas. O Magistério Eclesiástico mais recente tem vindo a insistir firmemente neste julgamento moral (v.g., Congr. para a Doutrina da Fé, Decl. sobre o aborto provocado, 18.11.1974, e Instr. sobre o respeito da vida humana nascente e a dignidade de procriação, 22.7.1987; Catecismo da Igreja Católica, 1992, nº 227 e ss.), empenhando-se o papa João Paulo II numa verdadeira cruzada em defesa da vida humana originada na concepção (v., em especial, a Carta Encíclica “Evangelium vitae” sobre o valor e a inviolabilidade da vida humana, 25.3.1995). Está em sintonia com essa avaliação moral, o tratamento do A., no plano jurídico, como atentado contra o direito — natural — à vida de que é titular o nascituro e, portanto, como ofensa muito séria à justiça (antijuridicidade intrínseca do A.). Ao Estado compete o dever de tutelar esse direito fundamental, inclusive mediante recurso a meios de repressão penal proporcionados à ilicitude objectiva do A., cumprindo à lei, não só a perseguição do crime, mas também a acção pedagógica de sensibilização da sociedade aos valores humanos em jogo. Não se pretende, deste modo, sobreestimar o papel da reacção punitivo-criminal ao A. (“antiabortismo repressivo”), mas ajustá-la, com senso equitativo, às realidades, em conjugação com adequadas medidas sociais de prevenção e solidariedade (“antiabortismo humanitário”). É, em suma, o bem comum da sociedade política, devidamente entendido, que impõe aquela intervenção do Estado, visto que o A. não constitui questão do puro foro íntimo da consciência individual, mas facto humano que releva da boa ordenação da vida social. A lei punitiva do A., alicerçada em exigências axiológicas fundamentais e em critérios de política criminal, apresenta-se, pois, como lei no pleno sentido, i. é, como prescrição racional para o bem comum. Ao mesmo tempo, a salvaguarda do direito à vida dos nascituros impõe-se como requisito indispensável do verdadeiro Estado de Direito e da democracia autêntica de base ética, fundados no respeito e promoção da justiça e dos direitos naturais da pessoa. Mas este modo de encarar o A. encontra-se hoje profundamente abalado, prevalecendo a orientação favorável à sua despenalização mais ou menos ampla e chegando-se, mesmo, a reivindicar a sua “liberalização”, com o reconhecimento à mulher do “direito ao aborto”. As sim, para além do “abortismo humanitário”, que admite o A., em certos casos, como mal necessário, anuncia-se o “abortismo libertário”. Fruto, nas sociedades liberais contemporâneas, do ethos permissivista e radical, esta situação insere-se na anti-life mentality e na “cultura da morte”, que inspiram também as iniciativas actuais em prol da eutanásia. Variadas orientações e atitudes religiosas, morais, filosóficas e ideológicas (secularismo, relativismo, individualismo, hedonismo, feminismo, etc.) e determinados modelos bioéticos (v.g., sociobiologista, utilitarista, radical-liberal) admitem o sacrifício da vida do nascituro a diferentes interesses e objectivos (vida, saúde, honra e liberdade da mãe, “qualidade de vida” do filho, bem-estar da família, conveniências eugénicas, controle da natalidade, etc.). O subjectivismo radical-niilista, influenciado pelo sadismo filosófico — que faz da pessoa simples objecto, manipulável pela lógica do desejo e do prazer —, situa-se na vanguarda do movimento abortista. Este conta com o activismo de lobbies influentes e serve-se de astuciosos meios de domínio da opinião pública, de que fazem parte uma retórica sofística e a instrumentalização eufemística da linguagem (p. ex., edulcora-se o “aborto” sob o rótulo de “interrupção voluntária da gravidez” ou, simplesmente, “I.V.G.”). Os ordenamentos jurídicos, por seu turno, vão cedendo à pressão do abortismo e adoptam soluções de despenalização ou descriminalização — i. é, exclusão da ilicitude penal — do A., segundo sistemas variáveis de utilização de prazos de gravidez e de indicações favoráveis à sua interrupção (terapêutica; eugénica; ética, criminológica ou sentimental; económico-social). É manifesta a caprichosa arbitrariedade positivista dos legisladores e juristas quanto à fixação dos requisitos despenalizadores, tendendo-se, numa lógica ampliativa, para regimes jurídicos de crescente permissividade, culminantes, porventura, na legalização do “aborto a pedido” (abortion on demand). A solução despenalizadora pretende abonar-se com razões de política criminal (a incriminação como ultima ratio, a ineficácia da punição do A., a discriminação que esta representará para os economicamente mais débeis, o combate ao A. clandestino, a necessidade de satisfazer interesses e valores ponderosos em jogo) que são muito questionáveis. Os argumentos “progressista” e do “direito comparado” são explorados ao máximo no sentido de pressionar as legislações dos vários países a seguirem os modelos despenalizadores “mais avançados”. Instituições e instrumentos jurídicos internacionais são também crescentemente utilizados pelo movimento abortista (ver, p. ex., no âmbito da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, o Rapport sur l’égalité entre femmes et hommes: le droit au libre choix de la maternité, 25.2.1993). Politicamente, o crescendo deste movimento coincide com a crise da concepção personalista do bem comum do Estado (preterida pelas ideias de bem-estar, interesse colectivo, utilidade geral, qualidade de vida, etc.), com a crise da lei positiva (esta deixa de pautar-se pelo direito natural para se tornar simples mandato do Poder e caixa de ressonância dos factos sociais; esvaziada da sua função ético-pedagógica, contribui para o embotamento da consciência moral dos cidadãos e para a corrupção dos costumes), com a crise do Estado de Direito (confundido com o mero Estado de Legalidade formal), a crise da autoridade (a que se substitui a força) e com a crise da democracia (reduzido a dimensões processuais ou técnicas, o sistema democrático é instrumentalizado pela sociedade permissiva e ameaça levar à tirania e ao totalitarismo). Em suma, o tratamento dado ao A. constitui elucidativa pedra-de-toque das concepções e dos sistemas político-jurídicos. Verificada a falência de vários modelos biojurídicos e biopolíticos na protecção da vida humana pré-natal (v.g., modelos formal, processual e individualista libertário), resposta satisfatória só pode encontrar-se numa perspectiva de tipo realista, personalista e jusnaturalista: para ela, a vida é um bem essencial, verdadeiro direito do nascituro (ius suum), que desde a concepção lhe pertence por título radicado na sua natureza e dignidade pessoais (personalismo ontológico e axiológico) e que em termos de estrita justiça lhe deve ser reconhecido. A invocação, pelo rei Balduíno dos Belgas, da objecção de consciência para não ter de promulgar a legislação despenalizadora do A. — imoral, injusta e contrária ao bem comum —, constitui, por assim dizer, uma ilustração viva, singularmente exemplar, de fidelidade a este paradigma doutrinal.

c) No debate sobre o A., o tema crucial e verdadeira chave da questão reside na natureza reconhecida ao produto da procriação humana (zigoto, embrião, feto, nascituro), embora alguns se recusem a discutir o problema, considerando-o irrelevante. A melhor doutrina, fundada no personalismo ontológico, adepto da tese substancialista da pessoa, sustenta, com base nos dados científico-biológicos (segundo os quais, com a fecundação surge um novo indivíduo da espécie humana, dotado de existência autónoma e entidade genética própria, destinado a desenvolver-se ao longo de um ciclo vital homogéneo e contínuo, até à morte), que o homem é pessoa em acto (“substância individual de natureza racional”, “realidade substantiva psico-orgânica”, “espírito encarnado”, etc.) a partir da concepção, coincidindo, assim, o início da vida pessoal com o da vida individual. Ou seja, o gérmen (zigoto) “é já” formalmente, e não só virtualmente, homem, nele se contendo todas as notas essenciais definidoras da pessoa humana. Tem isto como pressuposto a animação racional no momento da concepção (animação imediata), em oposição a explicações cientificamente obsoletas e metafisicamente discutíveis que situam aquela animação num momento ulterior (animação mediata), fixado, aliás, em termos imprecisos e variáveis, em função do grau de desenvolvimento do feto. Aos argumentos puramente racionais favoráveis à condição e dignidade das pessoas do conceptus acresce, no mesmo sentido, a leitura, à luz da fé, das fontes da Revelação cristã. Significativamente, prescreve o Código de Direito Canónico que, na medida do possível, os fetos abortivos vivos sejam baptizados. Em suma, neste contexto doutrinal o A. significa, propriamente, aniquilar alguém e não apenas uma coisa. Mas mesmo que, porventura, subsistissem algumas dúvidas quanto à natureza pessoal do ser embrionário, impor-se-ia respeitar a sua vida, para prevenir o risco de matar um homem. Há, porém, quem sustente, com argumentação científica e metafisicamente vulnerável (v.g., concepções empírico-processualistas e funcional-gradualistas, idealistas e subjectivistas da pessoa), que o feto é um apêndice do corpo da mãe (portio viscerum matris), um ser humano não pessoal (dependendo a identidade pessoal da aquisição de certos atributos físicos e psíquicos, mutáveis segundo as opiniões, ou do exercício actual da razão e da liberdade ou, mesmo, do acto de reconhecimento por parte dos progenitores ou da sociedade) ou, quando muito, “pessoa potencial” ou “quase-pessoa”. A partir deste entendimento, diversos autores desvalorizam, mais ou menos, a dignidade do ser humano embrionário, chegando alguns a subpo-la ao valor de certos irracionais. Ao contrário, admitindo que o nascituro é, desde a concepção, pessoa em sentido ontológico, não se pode deixar de tratá-lo como fim em si (personalismo axiológico). Nomeadamente, e em oposição às concepções positivistas da personalidade jurídica, como a de Kelsen, ele tem de ser considerado pessoa jurídica (quem é pessoa na ordem ontológica é também, por natureza, pessoa jurídica), titular, desde logo, de um conjunto de direitos naturais/fundamentais, como os direitos à vida e à integridade física. Desta tese (concepcionista), com raízes romanísticas, afasta-se a solução (natalista), imposta pelo positivismo moderno, que faz depender do nascimento com vida a aquisição da personalidade jurídica singular (cf. art. 66º, nº 1, do Código Civil). Mas, não sem incongruência, mesmo os ordenamentos que optam por esta última orientação, reconhecem e tutelam interesses ou “direitos” do nascituro (cf. art. 66º, nº 2, do Código Civil), entre os quais a própria vida, mediante a punição penal do A.. Em algumas fontes de carácter internacional encontram-se menções explícitas à protecção pré-natal do ser humano, mormente no tocante à vida (p. ex.: Declaração dos Direitos da Criança, ONU, 20.11.1959; Carta de São José da Costa Rica sobre o sistema interamericano dos direitos do homem; Convenção dos Direitos da Criança, ONU, 20.11.1989; Carta dos Direitos da Família, Santa Sé, 22.10.1983). Dada a natureza do ser concebido, tem, pois, de considerar-se ilegítimo, do ponto de vista moral e jurídico, o A. directo (e, de um modo geral a morte intencional dos embriões humanos), justificando-se a sua punição penal, com fundamentos onto-axiológicos e por motivos de política criminal, sem prejuízo da atenuação, segundo as circunstâncias, da responsabilidade penal do agente. Ao valor da pessoa e da vida do nascituro não podem, segundo um recto critério hierárquico, sobrepor-se quaisquer outros valores ou interesses. Nem sequer a salvaguarda da vida da mãe pode justificar o A. directo: o fim bom não legitima o meio intrinsecamente mau; o argumento da legítima defesa é improcedente, pois o filho é um ser inocente a que não pode ser imputada qualquer agressão; aliás, muitas das situações patológicas que se costumavam aduzir a favor do A. terapêutico já hoje não oferecem perigo para a vida da grávida, devido aos progressos da medicina, sendo em larga escala, prevenir, remediar ou minorar as doenças e malformações consideradas no A. eugénico, enquanto a prática deste pode, não só inviabilizar o nascimento de crianças sãs, como potenciar o risco da geração futura de deficientes. De acordo com a doutrina ético-jurídica exposta, no caso de descriminalização do A., pertence aos profissionais da saúde o direito — e dever — natural à objecção de consciência, que à lei positiva compete reconhecer e regular com garantias de eficácia e prevenindo eventuais prejuízos para os respectivos titulares.

3. O A. na legislação portuguesa.

a) Na vigência do Código Penal de 1886, o A. era punido (art. 358º juntamente com outros crimes, entre os quais o homicídio, num capítulo relativo aos crimes contra a segurança das pessoas, abrangido, por sua vez, num título sobre os crimes contra as pessoas. O Anteprojecto de Código Penal de 1966, da autoria de Eduardo Correia, justificava a incriminação do A., atentas as concepções dominantes que o consideravam um acto ilegítimo de disposição da vida de outrem, mas acolhia a indicação médica como causa justificativa da interrupção da gravidez (A. terapêutico); quanto às demais indicações — eugénica, social e ética —, admitia que pudessem eventualmente funcionar como causas de atenuação da culpa. Numa proposta de lei do IV Governo constitucional (11.7.1979), que, aliás, não veio a ter seguimento, mantinha-se a indicação médica como causa de justificação do A.. Por sua vez, o novo Código Penal, de 1982, não adoptou esta indicação e manteve a incriminação genérica do A., passando este, porém, para um capítulo autónomo — Dos crimes contra a vida intra-uterina —, incluído no título referente aos crimes contra as pessoas. Continuava a entender-se, conforme doutrina consolidada e autorizada, que, sem necessidade de optar pela via despenalizadora, o ordenamento jurídico proporcionava recursos, como o estado de necessidade, capazes de permitir a isenção ou mitigação da responsabilidade penal em certos casos de interrupção da gravidez. Vinha-se, entretanto, intensificando em Portugal, sobretudo após a Revolução de 25 de Abril de 1974, uma campanha em favor da despenalização do A., com motivações várias e sob a égide de grupos e movimentos de diversa natureza, mormente, os partidos de inspiração marxista. A UDP (União Democrática Popular) chegou mesmo a reclamar, em projecto de Constituição, a consagração do “direito ao aborto” como “meio de defesa da família”. Desfraldada como bandeira do progressismo esquerdista e laicista, a reivindicação abortista contou com o franco apoio da intoxicação da opinião pública promovida pela comunicação social e reflectiu-se em diferentes iniciativas legislativas, até culminar na Lei nº 6/84, de 11 de Maio (Exclusão da ilicitude em alguns casos de interrupção voluntária da gravidez), que alterou o Código Penal de 1982. A Assembleia da República, que rejeitara o projecto de lei do Partido Comunista (nº 309/II, 1982) sobre esta matéria, aprovou o do Partido Socialista (nº 265/III, 1984), cujo secretário-geral era, então, Mário raros os casos em que se verifica esse risco. Como quer que seja, mesmo em tais hipóteses extremas (esgrimidas como “truque sentimental” e “cavalo de Tróia” para fazer penetrar na lei a despenalização do A.), continua a ser ilícito o A. directo. A. fortiori, é este ilegítimo quando se destine a preservar a saúde física ou psíquica da mãe, uma indicação que, aliás, se presta especialmente a utilizações abusivas. Também não se pode dispor da vida do nascituro, a pretexto de que poderá vir a sofrer de doença ou deficiência, previsão, de resto, não infalível. Por sua vez, reconhecida embora a extrema penosidade de uma gravidez resultante de violação — hipótese, aliás, raríssima —, a protecção da honra da mãe não justifica, igualmente, a supressão da vida inocente. Obviamente, a simples conveniências de ordem económico-social de modo nenhum excluem a ilicitude do A.. Estudos da maior isenção e rigor científicos mostram, de forma inequívoca, que, mesmo na perspectiva pragmática da política criminal, a despenalização do A. é contra-indicada: não só não constitui meio idóneo para os fins sociais visados, como ainda se revela contraproducente. V.g.: não faz baixar o número de abortos clandestinos (com os correspondentes riscos de morbilidade e mortalidade maternas) e acarreta um aumento do número total de abortos; não impede que as pessoas de maior capacidade económica continuem a dispor de mais facilidades na prática do A., incluído o recurso ao chamado “turismo abortivo”; a indicação terapêutica deixa de ter pertinência em muitos casos, além de que o A., em vez de prevenir danos à integridade física e psíquica da mulher, os provoca e agrava; por seu turno, o A. ético não resolve os problemas psicológicos e morais derivados do crime sexual, antes os aumenta com as consequências traumatizantes do próprio A.; medidas positivas conseguem, Soares. Requerida pelo Presidente da República (Ramalho Eanes) a fiscalização preventiva da constitucionalidade do respectivo decreto, o Tribunal Constitucional (ac. nº 25/84 de 19 de Março, cujo relator foi o Cons. Costa Aroso) entendeu não se pronunciar pela inconstitucionalidade, tendo votado vencidos cinco dos seus treze juízes. Solicitada, mais tarde, pelo Provedor de Justiça (Cons. Pamplona Corte-Real) a declaração da inconstitucionalidade da Lei nº 6/84, com fundamento em violação da disposição constitucional (art. 24º) que garante o direito à vida, o referido Tribunal (ac. nº 85/85 de 29 de Maio, relatado pelo Cons. Vital Moreira) não atendeu o pedido, declarando-se vencidos seis dos seus membros. Prevaleceu a opinião de que, embora a Constituição proteja o bem da vida humana intra-uterina, tal não corresponde ao reconhecimento de um direito fundamental da pessoa, sendo de admitir que aquele bem tenha de ceder a outros constitucionalmente garantidos, maxime, como direitos fundamentais (direitos da mulher à vida, à saúde, ao bom nome e reputação, à dignidade, à maternidade consciente), segundo critérios definidos pelo legislador ordinário, dos quais se não exclui a hipótese despenalizadora do A.. Em suma, o Tribunal Constitucional optou por uma solução “despersonalizadora” do nascituro, recusando-lhe o reconhecimento do direito fundamental à vida e a garantia da consequente tutela penal; limitou-se a admitir a ideia vaga de um “bem objectivo”, a vida intra-uterina, sem o encabeçar no seu titular (como se existisse a vida em si e não o sujeito vivente) e sem o dotar de efectivo amparo constitucional. É evidente que esta orientação rompe clamorosamente com as exigências de igualdade conaturais à relação jurídica como relação de justiça, fazendo prevalecer a lei do mais forte contra o mais fraco.

b) A Lei nº 6/84, embora mantendo o princípio da punição penal do A., veio excluir a sua ilicitude, segundo um regime de indicações (terapêutica, eugénica e ética) e prazos, em certos casos. Assim, é afastada a punibilidade do A. (art. 140º do Código Penal) “efectuado por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina: a) constitua o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida [neste caso, independentemente de qualquer condicionamento temporal]; b) se mostre indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez; c) haja seguros motivos para prever que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação, e seja realizado nas primeiras 16 semanas de gravidez; d) haja sérios indícios de que a gravidez resultou de violação da mulher, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez”. A verificação destas circunstâncias depende de certificação médica e, ainda, no caso do A. ético, de participação criminal da violação. A mulher grávida, cujo consentimento, em certos termos, é dispensável, pode solicitar a interrupção da gravidez nos estabelecimentos acima referidos. Aos médicos e demais profissionais de saúde é assegurado, quanto à prática do A., o direito à objecção de consciência, garantido, aliás, em termos gerais, como direito fundamental, pela Constituição (art. 41º, nº 6). Com a revisão do Código Penal pelo Dec.-Lei nº 48/95, de 15 de Março, a despenalização do A. passou a ser contemplado pelo art. 142º (Interrupção da gravidez não punível) daquele Código: esta disposição manteve, no essencial, as indicações e os prazos da Lei nº 6/84, mas onde se referia, como causa da gravidez, à violação da mulher, passou a indicar o “crime contra a liberdade e autodeterminação sexual”. Esta legislação, além de criticável à luz dos critérios doutrinais expostos, suscita ainda, a outros títulos, sérias reservas: a ambiguidade e fluidez da indicação terapêutica e a dificuldade de controle dos respectivos pressupostos, com o risco inerente de alargamento excessivo da despenalização; a fixação arbitrária de prazos, que não só tem em devida conta o facto da existência do ser humano desde a fecundação, como não assenta em bases plausíveis relativamente às várias indicações e à protecção da vida e à saúde da mulher grávida; o recurso a formulações elásticas (“grave e irreversível lesão”, “grave e duradoura lesão”, “seguros motivos para prever que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação”, “sérios indícios de que a gravidez resultou de violação da mulher” ou de “crime contra a liberdade e autodeterminação sexual”) que geram situações de insegurança e se prestam a uma manipulação abusiva; o facto de o regime da decisão sobre o A. não salvaguardar devidamente os interesses em jogo (privatiza-se essa decisão, subtraindo-se aos tribunais, marginaliza-se o pai, deixa-se nas mãos da mãe um amplo poder de vida e morte sobre o filho); etc. O Episcopado português, baseado em princípios de ética natural e de ética cristã, criticou incisivamente, em sucessivos documentos das décadas de 70 e 80 (12.2.1975; 5.2.1976; 18.11.1977; 6.2.1981; 6.2.1982; 28.10.1982; 5.1.1984; 31.1.1984; 17.2.1984; 3.5.1984), as iniciativas em favor da despenalização do A.; denunciou como iníqua a respectiva legislação, com a qual o Parlamento ultrapassou a democracia, degradando-a e corrompendo-a, e proclamou o dever de resistência por todos os meios legítimos, com uma particular chamada de atenção para a necessidade de definição urgente do estatuto da objecção de consciência.

BIBL.: AA.VV., Difesa del diritto alla nascitaQuaderni di Iustitia, Milão, 1975; Niceto Blázquez, El aborto. No matarás, Madrid, 1977; C.E. Traverso, La tutela costituzionale della persona umana prima della nascita, Milão, 1977; Gabriel del Estal, Derecho a la vida e institución familiar. Aportación critica al desarrollo de la nueva Constitución española, Madrid, 1979; O.G. Savagnone, El aborto. El ocaso de la persona, Madrid, 1980; J. Marías e outros, En defensa de la vida, Madrid, 1983; J.A. Silva Soares, “Aborto”, em Polis. Enc. Verbo da Sociedade e do Estado, I, Lx., 1983, cols. 13-36; F.J. Velozo, A Propósito do Crime do Aborto, Braga, 1983; A.M. de Almeida Costa, “Aborto e direito penal. Algumas considerações a propósito do novo regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez”, em Revista da 0rdem dos Advogados, Lx., 44, III, Dez. 1984, pp. 545-625; F.J. Herrera Jaramillo, El derecho a la vida y el aborto, Pamplona, 1984; J. Ortego Costales, La legalización del aborto, Salamanca, 1985; P.J. Villadrich, Aborto e Sociedade Permissiva, São Paulo, 1987; L. Lombardi Vallauri, Terra. Terra del Nulla, Terra degli uomini, Terra dell’Oltre, Milão, 1990; M. Schooyans, L’Avortement: enjeux politiques, Longueil, Quebeque, 1990; M. Bigotte Chorão, O Problema da Natureza e Tutela Jurídica do Embrião Humano à Luz de Uma Concepção Realista e Personalista do Direito, Lx., 1991; id., Direito e Inovações Biotecnológicas (A Pessoa como Questão Crucial do Biodireito), Lx., 1994; Conferência Episcopal Española, El aborto (...), Madrid, 1991 (trad. port., Lx., 1993); D. Tettamanzi, Bioetica (...), Casale Monferrato, 1992; A. Ollero Tassara, Derecho a la vida y derecho a la muerte. El ajetreado desarrollo del art. 15 de la Constitución, Madrid, 1994; E. Sgreccia, Manuale di Bioetica I. Fondamenti ed etica biomedica, Milão, 1994; Maria da Conceição Ferreira da Cunha, “Constituição e crime”, Zona Perspectiva da Criminalização e da Descriminalização, Porto, 1995.

(Da Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura Verbo — Edição Séc. XXI, Vol. I, 1998)

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2004/01/30

NENHUM FETO É VIÁVEL 




Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.

HUGO DE AZEVEDO


A Ordem dos Médicos, pela voz do seu bastonário, declarou-se favorável, não só ao alargamento do prazo legal do aborto, mas também, genericamente, à livre interrupção da gravidez em casos provados de inviabilidade do feto. Mais ainda, considerou que o problema ético, em tais casos, se deve colocar ao contrário: será lícito, em tais circunstâncias, não a interromper?

Em que princípios éticos se baseiam estas afirmações? Não faço a menor ideia. O critério fundamental da moralidade do acto médico é o da defesa da vida humana, e realmente seria de esperar que a Ordem o assumisse, mas não se vê como o aplica nestas questões. Das afirmações proferidas induz-se um critério muito diverso: a vida humana só merece defesa quando dotada de certas características — garantias de sanidade e viabilidade —; ou então o de que, sem tais garantias, não existe vida humana.

Mas nenhum destes critérios parece médico; a medicina não consegue descobrir nos fetos defeituosos uma natureza diferente da humana. Não falo de meros tecidos tumorais; refiro-me aos organismos vivos que são gerados no seio da mulher. Portanto, a Ordem dos Médicos não fala em nome da medicina nem da sua ética específica. Em nome de que fala, pois? Como dizia, não faço a menor ideia. Apenas ouço falar de “consensos”. Mas estes, por sua vez, não dizem respeito à ética; dizem respeito à política. Logo, a Ordem prescinde dos seus próprios princípios e assume-se como representante de uma política eugénica qualquer. E nesse caso mudou ela de natureza: converteu-se num simples “lobby” pró-aborto. Proponho então que mude de nome e se crie uma verdadeira Ordem dos Médicos.

A medicina — e até o simples senso comum — sabe que todos os fetos são inviáveis. Por mais normal que seja a gestação e mais feliz o parto, nenhum resiste à morte se não receber cuidados imediatos e persistentes durante um longo período de desenvolvimento. Em comparação com a generalidade dos animais, o homem nasce prematuramente e bastante deformado; e, mesmo que fosse parido aos cinco anos, já de “T-shirt”, “jeans” e “ténis”, ainda não distinguiria um gelado de um torrão de saibro. Comparativamente, o homem nasce como uma espécie de animal doente, desorientado, com fraquíssimo instinto de conservação e com tendências destruidoras e quase suicidas. Para outras espécies que pudessem observá-lo, pareceria um animal enlouquecido... Totalmente indefeso e confuso, só a protecção familiar ou clínica o faz sobreviver após o parto.

Isto é: só tem viabilidade quando nós o aceitamos. E temos de aceitá-lo, pois não foi ele a tomar a iniciativa de vir ao mundo. Foi a gente. Viverá um dia, um mês, cem anos, mas tem igual direito à vida nuns casos como noutros. Se vai falecer em breve, por não haver remédio que o salve, evitemos-lhe o sofrimento quanto possível, mas não o matemos nós, e menos ainda o destrua quem o gerou, pois ninguém é dono de ninguém. Isto é que é ética; o resto, desumanidade.

Aliás, que critério é o da sobrevivência para se ser humano? Alguém fica neste mundo para sempre? Não morremos todos? Quem determina o tempo “obrigatório” da sobrevivência humana? Será a Ordem dos Médicos?

Bom, dirá o “lobby” dos consensos, não se trata apenas de sobrevivência, mas de “qualidade de vida”... Qualidade de vida para quem? Para o nascituro ou para quem o gerou? Se é para o nascituro, não há dúvida de que tem melhor qualidade de vida tendo vida do que sendo privado dela... Logo, se se lhe nega o direito a viver, não é na sua felicidade que se pensa, mas na comodidade de quem é responsável por ele e não está disposto a aturá-lo. Atitude miserável.

E se se trata de um verdadeiro monstro? Se não é massa tumoral, mas organismo vivo, será um monstro humano; respeitemo-lo. Aliás, de que estamos falando: de ética ou de estética? Porque, se o critério decisivo é o estético, quanta mortandade havia que fazer no mundo!

Mas não esqueçamos a segunda vítima: a mulher. E pensemos num aspecto de elementar lealdade: os clínicos abortistas avisam ao menos as suas “clientes” das consequências próximas e futuras do aborto? Talvez o façam no aspecto fisiológico, mas como o farão no aspecto psíquico, se não estudaram a sério, cientificamente, as sequelas daí resultantes? Tanto mais que muitas consequências não se apresentam imediatamente, mas incubam na mulher (e no próprio médico abortador: Daniel Serrão garantiu há tempos que bastantes se suicidam...) ao longo dos anos, até se transformarem eventualmente em transtornos incuráveis. Leram, ao menos, o relatório inglês “The Physical and Psycho-Social effects of Abortion on Women”, entregue à Câmara dos Lordes em 1994? Têm-se dedicado a reunir dados referentes a Portugal? Têm seguido o processo interior de um número significativo de mulheres que abortaram? Têm protestado contra a leviandade com que os fundamentalistas da “interrupção” falam da “depressão pós-aborto”, como se não passasse de uma vulgar enxaqueca? Explicam às pobres mulheres que, ao retirar-lhes o filho, colocam em seu lugar uma bomba de relógio que lhes rebentará na mente — na consciência — mais cedo ou mais tarde? Ouviram falar da “síndrome do carrasco”, que leva muitas delas a uma obsessiva autojustificação, quando não há justificação alguma, mas apenas atenuantes? Se é em nome do bem-estar das mulheres que actuam, como se atrevem a aconselhar o abortamento sem conhecerem a probabilidade nem a gravidade dos traumas que lhes provocarão?

Decididamente, a Ordem dos Médicos não fala em nome da Medicina.

(Jornal de Notícias, 10 de Dezembro de 1996)

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2004/01/29

O REFERENDO 


eu tenho 7 semanas...
eu tenho 10 semanas...



Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.

HUGO DE AZEVEDO

Doutor em Direito Comparado e em Direito Canónico,
sacerdote do OPUS DEI.


Há quem considere impróprio tratar com humor de um assunto tão grave como o aborto. Eu sou um deles. Já o mesmo não direi acerca da lei do aborto. Essa, para ser tratada seriamente, só admite duas perspectivas: dramática e cómica. Quando o Estado se organiza para matar inocentes, o caso é profundamente dramático; quando tenta justificar a matança, é de morrer a rir.

No entanto, fazem bem os políticos e os juristas que aceitam o diálogo nessa vertente, com o intuito de minimizarem os trágicos efeitos da legislação abortista. Devem precatar-se, porém, do insidioso perigo que correm ao entrarem nesse mundo virtual em que desaparece do écran a figura principal da polémica: a pessoa do feto.

Na verdade, esse diálogo só se consegue manter dando (virtualmente) por suposto que o aborto não tem nada a ver com o abortado, mas tão só com a mulher que o concebeu; ou que o feto vai mudando de natureza conforme o seu desenvolvimento anatómico, ou ao capricho dos sentimentos da procriadora; ou que é uma questão de “qualidade de vida”, quando é um problema de vida e de morte; ou então que se reduz a um fenómeno social de ordem quantitativa, numérica, independente da sorte de seres humanos... Enfim, só é possível o diálogo neste assunto deixando de falar dele, procurando torneá-lo, focando aspectos secundários, e às vezes puramente imaginários (como, por exemplo, o dos números impossíveis de comprovar), e esforçando-se por demonstrar aos abortistas que as leis vigentes e as propostas afinal não resolvem o seu alegado objectivo de liberdade e bem estar da mulher.

É um tipo de diálogo semelhante ao que se usa habitualmente com terroristas, embora mais difícil, pois estes costumam ser sensíveis à sorte das crianças, dos velhos e doentes, e aqui dá-se precisamente o contrário. E, sendo um diálogo muito prolongado, tem efectivamente o risco de perturbar a razão dos próprios benévolos dialogantes, ao entrarem num permanente jogo de equívocos, num esforço contínuo de prescindirem do senso comum, e até de evitarem manifestar as suas mais claras e rotundas convicções.

A proposta de um referendo insere-se neste tipo de diálogo, e talvez seja oportuno e útil em sentido “negocial”. Os seus inconvenientes, porém, são grandes: consagra como questão opinável a protecção da vida humana e desfaz de uma vez para sempre o significado óbvio do artigo 24º da Constituição — “1. A vida humana é inviolável”. A partir de um referendo sobre o aborto, considerado compatível com a Lei Fundamental do país, já nenhum termo constitucional significa literalmente nada, e pode ser mesmo interpretado em sentido oposto, como é o caso.

Ou seja, a confusão mental que se gera numa discussão destas estende-se imediatamente a toda a ordem jurídica, transtorna definitivamente o próprio conceito de Estado, cuja primeira razão de ser consiste na defesa do bem comum (substituído pelo aparente bem de uma maioria contra o bem mais elementar de milhares de pessoas indefesas), e cuja primeira função é justamente a protecção do direito à vida. Estabelece legalmente a distinção entre pessoas que merecem viver e outras que não o merecem, não por graves crimes cometidos, mas pura e simplesmente por serem incómodos. Deste modo, para muitos a profissão clínica passa a incluir a aberrante obrigação de matar, sob sanções que chegam à expulsão dos seus postos de trabalho. O Estado converte-se numa organização criminosa, e uma organização que não pode ser julgada (excepto pela História), nem perseguida eficazmente, visto não dispormos de nenhuma alternativa para ele.

É curioso e assustador verificar como muita gente é capaz de enveredar pelo infanticídio, sem consciência do que está fazendo: partem do princípio que, sendo bem intencionados, nada de mal podem cometer. A sua “boa intenção” — de aliviarem a pobre rapariga, de evitarem mais trabalhos familiares, etc. — fá-los esquecer por completo o preço a pagar por tanta “bondade”. Pela “qualidade de vida” de alguém destroem a vida doutros. A sua “boa intenção” vai ao ponto de forçarem muitas mulheres a eliminarem os filhos que geraram e as acompanham no ventre. As cenas que se passam diariamente nos postos de saúde e nas maternidades são de arrepiar.

Mas algo lhes diz que procedem mal. Quando a mulher resiste às pressões brutais a que é hoje sujeita e consegue levar avante a sua gravidez, e sai pelos corredores com uma criança encantadora nos braços, vários médicos e enfermeiras se escondem pelas esquinas, como ratos.

Quanto às outras, de facto, mais do que sanções, do que precisam é consolo, misericórdia, ânimo e carinho. A “depressão pós-aborto”, que os mais acérrimos abortistas reconhecem como consequência normal do triste acontecimento, nunca mais se apaga. Mas pode ser um ponto e partida para a salvação de muitas outras mulheres.

(Jornal de Notícias, 5 de Novembro de 1996)

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2004/01/28

A MATANÇA DOS INOCENTES II 

(continuação do post de 2004/01/27)




Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.

HERLÂNDER DUARTE


Doutrina Católica

Os Concílios de: Elvira, no ano 300, Ancira, em 314, Lérida, em 564, Braga, em 572, condenaram o aborto com severidade. SS o Papa Sisto V, pela Constituição “Effraenatum”, de 29 de Outubro de 1588, agravou as penas contra o aborto. SS o Papa Gregório XIV, debilitado, pela Constituição “Sedes Apostolica”, de 31 de Maio de 1591, graduou as penas, sem as eliminar, conforme a distinção, adoptada no Concílio de Worms, no ano de 869, entre feto inanimado, ou seja, sem alma, e animado, ou seja, com alma. SS o Papa Pio IX, com a Constituição “Apostolica Sedis”, de 21 de Outubro de 1869, extinguiu a distinção. SS o Papa Pio XI, pela Encíclica “Casti Connubii”, de 31 de Dezembro de 1930, sobre a moral matrimonial, confirmou a doutrina tradicional acerca do aborto.

A condenação do aborto pelo magistério pontifício tem-se ligado à rejeição da contracepção e à afirmação do sacramento vivo do matrimónio que estabelece uma santa e indissolúvel união entre homem e mulher e lhes dá a Graça de se amarem um ao outro santamente e de educarem cristamente os filhos.

SS o Papa Paulo VI, na Encíclica “Humanae vitae”, de 25 de Julho de 1968, essencialmente sobre a regulação dos nascimentos, apontou: “O amor conjugal exprime a sua verdadeira natureza e nobreza quando se considera na sua fonte suprema. O matrimónio... é uma instituição sapiente e providente do Criador, para realizar na humanidade o seu desígnio de amor. Mediante a devoção pessoal recíproca, que lhes é própria e exclusiva, os esposos tendem para a comunhão das pessoas, em vista a um aperfeiçoamento mútuo, para colaborarem com Deus na geração e educação de novas vidas”. E, depois: “Sem dúvida os filhos são o dom mais excelente do matrimónio e contribuem grandemente para o bem dos pais”.

SS o Papa João Paulo II, ao dirigir-se aos peregrinos reunidos na Praça de São Pedro, na audiência geral das quartas-feiras, em 22 de Agosto de 1984, comentando a Encíclica “Humanae vitae”, acrescentou: “O acto conjugal significa não apenas o amor mas a fecundidade potencial, não podendo, conse-quentemente, ser privado do seu pleno significado através de uma intervenção artificial. De outro modo deixaria de ser acto de amor. Haveria efectivamente união corporal mas esta não corresponderia à verdade e à dignidade das pessoas: comunio personarum (comunhão das pessoas)”.

A “cultura da morte” é denunciada pelo apóstolo da “cultura da vida”, SS o Papa João Paulo II, que, na Encíclica “Evangelium vitae”, publicada em 30 de Março de 1995, condena o aborto, a eutanásia, a contracepção, a procriação artificial, as manipulações e as destruições de embriões.

Aquela notável Encíclica declara que “o aborto directo”, isto é, querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto “assassínio deliberado de um ser humano inocente”. Nenhuma circunstância, mesmo em situações dramáticas e dolorosas, permite que qualquer lei possa alguma vez, “tornar lícito um acto que é intrinsecamente ilícito porque é contrário à lei de Deus”. É rejeitado o argumento segundo o qual o embrião não pode ser considerado uma vida de pessoa humana; um novo ser humano desenvolve-se desde a fecundação do óvulo.

SS o Papa João Paulo II apela aos profissionais de saúde para que se não transformem em “artifíces da morte”; os médicos devem “recusar participar na perpetração de uma injustiça”.

Aliás, o juramento de Hipócrates interdita o aborto.

A “cultura da vida” obriga a defender a fortaleza da família.

Em mensagem dirigida a milhares de fiéis que se concentraram em Castelgandolfo, SS o Papa João Paulo II, em 28 de Dezembro de 1997, definiu a família como “o fundamento e a salvaguarda de uma sociedade verdadeiramente livre e solidária” e declarou: “Penso nas ameaças à vida de tantas famílias, como, por exemplo, a miséria, o desemprego, a falta de casa, a mentalidade contrária ao dom da vida e favorável à sua eliminação, mediante o aborto, a eutanásia e o individualismo, que estão na origem de tanta solidão que afecta as sociedades de hoje”.

Deputados ditos católicos, em países tradicionalmente católicos, pretendem justificar-se com o totalitarismo da aritmética democrática e com declarações do seguinte teor: “A título pessoal eu adiro às determinações da minha Igreja. Enquanto encarregado do bem comum por delegação, sigo a opinião da maioria dos cidadãos”.

Os politicantes correntes deste jaez prevalecem na viciosa confusão entre opinião, circunstancial e interesseiro juízo sobre as aparências, e bem comum, “primeira e última lei da sociedade” (SS o Papa Leão XIII).

Bem comum é conceito de Doutrina, fundamental segundo São Tomás, recuperado como valor crucial do magistério da Igreja com SS o Papa Leão XIII; é o suporte comunitário das supremas aspirações da pessoa, daí a sua dignidade. Só há unidade moral se houver fim comum procurado conscientemente e como deliberado acto de vontade; esse fim é o bem comum que é princípio da união moral. A missão e os limites da autoridade humana encontram-se no bem comum que transcende e subordina a vontade dos indivíduos e a própria autoridade do Estado. A soma dos interesses e pressões abortistas não participa no bem comum, antes, é a sua negação.

SS o Papa Pio XI, na Encíclica “Casti Connubii”, acerca dos “meninos ainda encerrados no seio materno”, sentencia: “... se os governantes não só não defenderem esses inocentes, antes com suas leis e ordenações, os deixarem ou até os entregarem aos médicos ou a outras mãos que os matem: lembrem-se que Deus é juiz e vingador do sangue inocente que da terra brada ao céu”.

“Será desertor e traidor quem quer conceder a sua colaboração material, os seus serviços, os seus talentos, o seu auxílio ou o seu voto político a partidos ou a poderes que neguem Deus” (SS o Papa Pio XII, “Semanas Sociais”, em 18 de Julho de 1947).

SS o Papa Paulo VI, em Audiência de Fevereiro de 1976, condenava severamente “os que se deixam arregimentar em partidos políticos para obter vantagens pessoais... na esperança de melhores lugares. Cobardemente, permanecem surdos perante a consciência. Terão assim evitado o nome de Cristo”.

SS o Papa João Paulo II insurge-se contra o “relativismo ético” e interroga-se sobre os limites morais da sociedade democrática. Na Encíclica “Evan-gelium vitae”, lança a pergunta: “Quando uma maioria parlamentar ou social decreta a legitimidade da supressão da vida humana ainda não nascida, mesmo em certas condições, não será que ela toma uma decisão tirânica para com o ser humano mais fraco e sem defesa?” Interroga-se se os crimes contra a humanidade são legitimáveis por maiorias e, inequivocamente, qualifica de “tiranos” os Estados que legalizam o aborto e a eutanásia. Propõe ao Estado e à sociedade um exame de consciência.

Numa altura em que os politicantes propalam, como rendoso “marketing”, os “direitos humanos”, em aparente paradoxo, o “direito à vida” é, na prática, negado e violado, especialmente nos momentos mais significativos da existência que são o nascimento e a morte (SS o Papa João Paulo II).

Os desgraçados tempos que correm são de infidelidade às virtudes, hábitos de agir no sentido do bem, tempos de desonra vergonhosa e desconsiderante.


Criação de Deus

A fecundação é união de dois gâmetas em metazoários, ou seja, a união de duas células haploides; o núcleo e o citoplasma da célula reprodutora fusionam-se com os do outro gâmeta, resultando dessa fusão um zigoto, ou ovo, de que se origina outro e, assim, a segmentação. Embora se traduza em fenómenos aparentemente restritos, envolve real transmissão de vida.

A vida começa quando o óvulo é fecundado; surge um novo ser, embora dependente da mãe e a ela agregado, ser distinto de qualquer dos progenitores. O óvulo fecundado, tal como o embrião humano em desenvolvimento, não pode ser considerado como parte do corpo da mãe; até tem um código genético diferente. As alterações que decorrem entre a nidação, implantação no útero, e um adulto são de desenvolvimento, não de mudança de natureza. O pré-humano não existe. A conclusão neste sentido já chegou a Primeira Conferência Mundial sobre o Aborto, reunida em Washington, em Outubro de 1967; a divulgação dos resultados desta conferência foi reprimida.

A gestação, período que vai da fecundação ao parto, mobiliza na mulher imensas energias físicas, psicológicas e morais e coloca-a, naturalmente, na dependência do outro progenitor que, para essa assistência, deve ser solícito e prestável.

A inteligibilidade da vida humana não se cinge à inteligibilidade da própria matéria.

A vida humana não deve ser tratada como um descendente próximo de um hidrato de carbono, como a reminiscência de uma fotossíntese; não é simples resultado da fusão de matérias, não é, nem sobretudo, o produto da coalescência de macho e fêmea, é obra divina de criação. A concepção, génesis no sentido de tornar-se vida, é acto de criação de um novo homem, único e irrepetível.

A Criação não é um acto de Deus no passado, pois Deus cria para comunicar e fazer participar os seres criados na Sua perfeição; é obra contínua de amor divino. A alma não é gerada pelos pais (Carta de SS o Papa Anastácio II, em 496); é forma do corpo humano ao qual está essencialmente unida (Concílio de Viena de 1311-1312); é criada por Deus e infundida antes do parto (SS o Papa Inocêncio XI, em 1679); procede do imperfeito sensitivo (SS o Papa Leão XIII, em 1887). Na geração humana, a alma é criada directamente por Deus, “Criador em cada homem da alma espiritual e imortal” (SS o Papa Paulo VI), o que engrandece a intervenção dos progenitores de quem fica dependente a acção criadora; os pais colaboram, assim, com Deus, e devem ver nos filhos, não simples resultado de acção passada, mas esperança da perpetuidade. A inerência do acto procriador à união conjugal conforma-se à natureza integral do homem.

SS o Papa João Paulo II, ao receber os setecentos membros de um congresso internacional médico sobre “Diagnóstico pré-natal e tratamento cirúrgico das malformações congénitas”, que se reuniu no princípio de Dezembro de 1982, afirmou que “a medicina deve fazer tudo o que pode para diminuir as manifestações da doença”. Acrescentou: “Mas deve escrupulosamente evitar todo e qualquer tratamento que possa constituir uma forma larvar de aborto. Os que sofrem de anomalias, nem por isso, perdem as prerrogativas próprias de um ser humano”.

“Ego veni ut vitam habeant, et abundantius habeant” (Santo Evangelho segundo São João). Cristo veio para defender a vida na sua abundância; longe de Cristo, o homem assanha-se para a aviltar e destruir.

“Natus sun”. Cristo nasceu para ser Rei, a Sua realeza consiste em reconstituir a Verdade e é, essencialmente, a própria Verdade; cada um de nós nasce para dar testemunho da Verdade.

O tempo de gravidez devia imitar o Advento, período preparatório do Natal, devia ser também expectativa gozosa da vinda de uma criança.

Segundo Santo Agostinho, o pecado é o abandono de Deus por parte da criatura livre, centrada sobre si mesma. O pecado mortal é a acção livre e íntima pela qual a pessoa se opõe à vontade do Criador; a sua essência é a soberba do homem. O pecado é contra a ordem estabelecida por Deus e ofensa ao Seu amor paternal; torna impuro não só o indivíduo pecador, mas a comunidade que é co-responsável. A gravidade do pecado do aborto é, ainda, acrescida porque se obsta ao baptismo, sacramento pelo qual renascemos para a Graça de Deus, é pecado mortal.

Os que perpetram o aborto directo, crime cometido contra “seres humanos inocentes e sem defesa” (SS o Papa João Paulo II), são canonicamente condenados com a excomunhão “latae sententiae”; a excomunhão atinge todos aqueles sem os quais o aborto não seria executado.

Entre os sujeitos à excomunhão não podem deixar de ser incluídos os deputados, os membros do Governo e os outros políticos que, activa ou passivamente, consentem ou não contrariam a institucionalização e a prática do aborto.

Os excomungados são separados, como indignos, do Corpo da Igreja, a Qual espera e deseja a sua conversão.

Os fiéis podem ser úteis aos excomungados e a todos os outros que estão fora da Verdadeira Igreja, com avisos salutares, com orações e boas obras, suplicando a Deus que, pela Sua Misericórdia, lhes conceda a Graça de se converterem à Fé e de entrarem na comunhão dos Santos.

Aos abortistas contumazes aplica-se a Epístola de São Pedro, “Quarens quem devorat”, procurando alguém para devorar, a caracterizar o demónio.


Guerra justa

O aborto, etimologicamente privação do nascimento, não é parto prematuro, muito menos é o hipócrita eufemismo “interrupção voluntária da gravidez”; é deliberada e maliciosa expulsão do feto, ou melhor, do ser ainda não nascido, mas já criado, para lhe retirar a vida.

É irrecusável condenar o aborto, quer por respeito pela Natureza, pelo Direito e, ainda de forma mais relevante, pela Moral, quer, sobretudo, por caritativo dever e piedoso imperativo.

Mais do que contra os direitos do homem, o aborto é contra os direitos de Deus, contra a santidade do matrimónio e contra o bem comum.

Os mártires eram os que testemunhavam Cristo, depois, os que testemunhavam heróico apego à Fé cristã, os que morreram pela fidelidade a Cristo. O martírio é redentor.

Aos mártires pela Fé vem juntar-se uma miríade de novos sacrificados. O holocausto era o sacrifício em que se queimavam as vítimas, principalmente entre os judeus; o aborto é o novo holocausto, sacrifício de vítimas inocentes oferecidas à idolatria da concupiscência.

O aborto é a matança dos inocentes semelhante à mandada executar por Herodes, o liberal crapuloso. “Então Herodes, ao ver que tinha sido enganado pelos magos, ficou muito irado e mandou matar todos os meninos de Belém e de todo o seu território, da idade de dois anos para baixo, conforme o tempo que, diligentemente, tinha inquirido dos magos” (do Santo Evangelho segundo São Mateus).

Estes Santos inocentes coetâneos do Menino Jesus acusam-nos.

Geena, vale ao sul de Jerusalém, tornou-se maldito devido aos sacrifícios humanos que lá eram oferecidos ao deus Moloch. O rei Josias, para evitar sacrifícios das crianças, com o apoio de Jeremias, armou-se destruidor da idolatria e dos santuários idólatras erigidos pelo decadente Manassés que construiu altares para as divindades pagãs e sacrificou o próprio filho a Moloch. Geena, que significa castigo eterno dos ímpios, é o novo vale das clínicas e dos hospitais abortadeiros.

Os fiéis são obrigados a agir. E, para agir, importa tomar consciência íntima e intimante. A consciência começa por ser conhecimento pessoal de nós próprios; depois, é sentido de dever e testemunho. A consciência moral é o sentimento de dependência e de comunhão com a Moral e expressa-se no juízo que se faz da conformidade de um acto com o bem. Para o católico, a consciência moral será, particularmente, o firme e constante propósito de seguir Nosso Senhor Jesus Cristo e será o sentimento de comunhão com Deus.

São Tomás, em “Summa Theologica”, acabada concepção cristã do homem, ensina: “se suportar injúrias que apenas nos atingem a nós próprios constitui um acto virtuoso, suportar aquelas que atingem Deus é o cúmulo da impiedade”. O aborto é uma injúria que atinge Deus.

D. Paul Delatte (1848-1937), beneditino, abade de Solesme denunciava: “O mal só se manifesta na medida em que lhe são dadas oportunidades. O trabalho satânico, que tende para a destruição da ordem e da vida, é limitado por uma parte de bem, de ordem, de harmonia que ainda existe... É evidente que no dia em que esse poder de ordem e de paz, que das mãos da Roma pagã, passou para a Roma cristã, depois de ter sido lentamente minado pelos legistas, sacudido pela pretensa Reforma e pela Revolução, tiver sido definitivamente arruinado pelo assalto do mal desencadeado, ficarão abertos os caminhos e livres as saídas para o mal. Já nada o deterá”.

Segundo São Pio X, os pretensos “bons”, devido à sua preguiça e à sua fraqueza, constituem, mais do que quaisquer outros, o nervo do reino de Satanás.

A tolerância permite legitimar os vícios alheios e os próprios; a tolerância constitui uma enorme heresia social que tem produzido muitos males e mais fará à medida que se vulgarizar. À tolerância devemos sobrepor a honra que é a virtude do cumprimento das virtudes, vivências do bem, energias que harmonizam o ser com o dever ser.

A imutabilidade das exigências cristãs funda-se nos princípios, origens sem dependências, da Doutrina que emerge da lei natural, da revelação do Antigo e do Novo Testamento e do magistério da Santa Igreja entendido como ensino, orientação e tradição viva. A esta luz, o aborto foi sempre e continuará a ser condenado.

Contra os ataques que estão sempre a ressurgir da utopia malsã, da revolta e da impiedade, impõe-se “omnia instaurare in Christo” (São Pio X, em Carta sobre “Le Sillon”).

Contra a idolatria abortista devemos reclamar um rei Josias.

Especialmente os autênticos Portugueses, pois que Portugal tem como padroeira Nossa Senhora da Conceição, têm que travar o bom combate, com viva coragem, firme determinação, sem aturar a derrota, contra o aborto; essa luta enquadra-se perfeitamente no conceito de guerra justa, legitimada por Santo Agostinho quando se trata de defender inocentes contra agressões.

(Janeiro de 1998)

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2004/01/27

A MATANÇA DOS INOCENTES I 

Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.

HERLÂNDER DUARTE

Docente do Ensino Superior. Autor de obras e conferencista sobre Bem-Comum na perspectiva da Doutrina Tradicional da Igreja. Auditor de Cursos de Defesa. Colaborador de Enciclopédias Verbo. Vice-Presidente do Círculo de Estudos Sociais Vector.


A desordem subsequente à amotinação de 25 de Abril de 1974 alvoroçou um movimento para banir o que, no estilo da verborreia corrente, os desaustinados abortistas designavam “leis repressivas do aborto”. A generalidade dos meios de desinformação, imprensa, rádio, televisão, propagandearam e fundamentaram o movimento que, a breve trecho, passou a exigir “o aborto livre e gratuito”. O jornal “O Dia” foi um dos poucos resistentes e deu uma projecção condigna à doutrina da Igreja Católica e às intervenções da Hierarquia e acolheu, com o devido relevo, textos de denúncia da perversidade da onda abortista produzidos por associações católicas; a acção do redactor Adelino Alves foi notável. Entre as associações católicas, foram particularmente firmes e activas: o Movimento Amor e Vida, o Centro Cultural Reconquista e o Círculo de Estudos Sociais Vector.


Lei do aborto

A primeira tentativa frustrada de legalização do aborto, em Portugal, ocorreu, em 1979, com uma proposta de revisão do Código Penal enviada à Assembleia da República pelo Governo Mota Pinto. A segunda ocorreu um ano depois através de um projecto do partido comunista albanês União Democrática Popular.

O Partido Comunista apresentou um projecto, em 1982, que não logrou aprovação parlamentar. Na edição de 16 de Novembro daquele ano, o jornal do Vaticano, “Osservatore Romano”, manifestou “satisfação pelo facto de o Parlamento português ter rejeitado a proposta comunista de despenalização do aborto”. E concluiu: “Esperamos que Portugal confirme no futuro a prova de firme coerência que acaba de oferecer ao mundo e que os outros países e outras comunidades cristãs saibam ler e compreender esta lição”.

Em Nota Pastoral, datada de 5 de Janeiro de 1984, a propósito das renovadas investidas para a legalização do aborto e da propaganda que a promovia, veio o Episcopado Português, com solicitude, denunciar a falsidade científica, social e moral das razões aduzidas pelos abortistas, propor aos católicos a desobediência à lei do aborto, apontar que os que praticam ou colaboram no aborto incorrem em pena de excomunhão.

Se o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro, na homília que proferiu na Sé Patriarcal, em 22 de Janeiro de 1984, na celebração de São Vicente, padroeiro de Lisboa, declarou: “Todo o aborto deliberadamente procurado é um atentado de morte contra a vida de um ser humano inocente e indefeso e a lei que o permitir será, por natureza, uma lei iníqua à qual os cristãos têm o dever de opor resistência activa” e propôs: “um movimento de opinião pública que venha a exigir a abolição da mesma lei e não dar o voto em futuros actos eleitorais às pessoas e aos partidos que a aprovaram”,

Em 27 de Janeiro de 1984, por iniciativa do Partido Socialista, foi aprovada, na generalidade, no Parlamento, a lei do aborto, hipocritamente chamada “lei da despenalização do aborto”.

Nota do Conselho Permanente do Episcopado Português, de 31 de Janeiro, chamava a atenção: “O projecto aprovado... só permite o aborto em determinadas circunstâncias. Mas essas circunstâncias, além de falaciosas, como nomeadamente a Ordem dos Médicos salientou, representam uma porta largamente escancarada por onde passam todas as demais. A experiência está feita noutros países...”.

Depois do texto legislativo, aprovado na generalidade, ter passado por comissão parlamentar da especialidade, foi a lei do aborto aprovada na Assembleia da República, em 14 de Fevereiro, tendo 132 votos a favor e 102 contra.

O Presidente da República, General Ramalho Eanes, em 24 de Fevereiro, enviou a lei ao Tribunal Constitucional para efeitos da fiscalização preventiva da constitucionalidade; o Tribunal Constitucional votou favoravelmente em 14 de Março, com 8 votos a favor e 5 contra.

O Presidente da República, podendo vetar a lei, afinal, promulga-la-ia no mês seguinte, justificando-se com a “preocupação comprovada de evitar problemas à coligação”, com o facto de a questão ter sido “incorrectamente colocada ao País e indevidamente empolada”, descarregando ainda a responsabilidade para um referendo inexistente. Pilatos também teria decidido assim.

Os elogios e as esperanças do “Osservatore Romano”, de 16 de Novembro de 1982, foram baldados; o órgão do Vaticano precipitou-se acerca da avaliação do que era capaz de fazer quem capturou o poder em Portugal.

Entretanto, em 5 de Março de 1984, na ressaca da aprovação da lei do aborto no Parlamento, o Primeiro-Ministro português, Dr. Mário Soares, Secretário-Geral do partido abortista, foi recebido, na Santa Sé, por SS o Papa; dias antes, o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro, e o Bispo de Aveiro, D. Manuel Trindade, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, em audiência privada, informaram SS o Papa sobre a legislação do aborto em Portugal.

Os católicos portugueses ficaram confundidos com a visita ao Santo Padre de um dos principais responsáveis pela lei do aborto. O facto de o comunicado da sala de imprensa do Vaticano, após o encontro, reafirmar a inabalável doutrina da Igreja sobre a ilicitude do aborto voluntário e directo, não dissipou completamente a confusão instalada na Nação Fidelíssima.

Conjecturou-se que a audiência tinha sido engendrada com intervenção de Bettino Craxi, então poderoso Primeiro-Ministro italiano, hoje foragido da justiça, chegado camarada do Dr. Mário Soares, numa trapaça para insinuar a condescendência do Santo Padre.

Especulou-se com a laica justificação de que se tratou de o Chefe de Estado do Vaticano receber o Primeiro-Ministro de um País com que estão esta-belecidas relações diplomáticas. Simplesmente, SS o Papa é Chefe de Estado porque é Chefe da Santa Igreja, Sucessor de São Pedro na cadeira de Roma; aquela condição a esta transcendente responsabilidade se deve ordenar. A pretensa justificação revelava-se incoerente.

Os fervorosos católicos portugueses conformaram-se na sua fidelidade ao Sumo Pontífice, ao Vigário de Nosso Senhor Jesus Cristo na terra. Todo o católico deve reconhecer SS o Papa como Pai, Pastor e Mestre Universal e estar unido a ele de espírito e coração.

Como a Nota do Episcopado de 31 de Janeiro de 1984 previa, a porta escancarada então está franqueada ao recrudescimento das investidas para a liberalização, dir-se-ia a promoção, do aborto.

O Partido Socialista, abortista, está no poder com os votos dos portugueses que, alienados pela desinformação perversa e embalados pelas promessas de gozo e bem-estar, não atentaram minimamente na autoridade da proposta de D. António Ribeiro lançada no dia de São Vicente de 1984.


Depravação

Foi desencadeado o ataque satânico à família, comunidade cardeal, imposição natural, unidade de consciência moral, primordial instância da prossecução do bem comum, e ao escrínio da família, a mulher, a quem o homem deverá entregar-se, amar, seguir e morrer por ela (Santo Evangelho segundo São Mateus, Epístola de São Paulo aos efésios).

Piccolo Tigre, pseudónimo de agente da Alta Venda, loja maior do Carbonismo italiano, em carta datada de 18 de Janeiro de 1822: “Quando tiverdes insinuado nalgumas almas um aborrecimento pela família e pela religião (geralmente um segue-se ao outro), deixai cair algumas palavras que lhes provocarão o desejo de se filiarem na loja mais próxima. A vaidade que o cidadão e o burguês têm de se enfeudarem à franco-maçonaria tem qualquer coisa de tão universal que fico sempre em êxtase com a estupidez humana”.

O poeta judeu alemão Heinrich Heine, muito celebrado, autor da famigerada “ditadura do proletariado”, com estátuas em Nova Iorque capitalista e em Moscovo bolchevista, que, em meados do século passado, dizia odiar a cruz, incitava: “Para matar a Igreja não há como tomar as crianças e corromper a mulher”.

No Congresso maçónico-feminista de 1900 foi proclamado: “É-nos necessária uma coeducação dos sexos. Queremos a união livre no amor jovem e são. O casamento poderá ser suprimido sem inconvenientes. Liberdade absoluta de aborto... etc.”.

No Congresso comunista de 16 de Novembro de 1922 foi determinado: “É preciso suprimir (na mulher) o sentimento instintivo e egoísta do amor materno... A mulher não passa de uma cadela, duma fêmea, se gostar dos seus filhos”.

O historiador inglês Nesta H. Webster, autor da obra “Secret Societies and subversive movements”, escrevia, no fim do século XIX: “A revolução desejada pelos chefes é moral e espiritual, consiste numa anarquia de ideias em que todas as bases desde há dezanove séculos sejam derrubadas, em que sejam espezinhadas todas as tradições até então honradas e onde, acima de tudo, a ideia cristã desapareça finalmente”.

A decadência destrói o pudor, sentimento vivencial, força intrínseca defensora da interioridade; segundo São Tomás, o pudor é integrante da virtude da temperança, é sentimento instintivo defensor das fontes da vida e prepara o comportamento moral.

O despudor hedonista, a ânsia materialista, o desaforo consumista, degeneraram a Civilização cristã que se tornou ociosa, gulosa, balofa; a adopção do filho espúrio que é o existencialismo ateu, da negação de Deus faz decorrer a concepção de que o homem livre assume responsabilidade da sua própria existência e as suas opções são amorais.

A arvorada liberdade de praticar o aborto é a liberdade orgiástica.

Liberalismo é a presunçosa crença de o indivíduo ser capaz de se satisfazer a si mesmo, encontrando em si mesmo o seu destino e a sua lei. Teve como antecedente o libertinismo elitista e mundano; os libertinos “libertavam-se” de Deus, da religião, da moral. O liberalismo massificou o libertinismo.

Grave desordem resulta de a liberdade ser considerada uma virtude quando é um dom; consiste no direito de cada qual escolher a sua própria via de personificação; a sua bondade, como a de qualquer dom, depende do uso que se lhe dá. Liberdade é “vis electiva meliorum servato ordine finis” o que denota a faculdade de escolher os meios para alcançar convenientemente o verdadeiro fim que é o bem. Sobretudo, a liberdade autêntica é o reconhecimento da acção ordenada ao Criador.

Impera a máxima epicurista “carpamus dulcia” que é instigação a que gozemos a vida. Para o epicurismo, o viver feliz é que dita a norma; os sentidos constituem o critério da verdade moral individualista e hedonista; o prazer é “começo e fim da existência feliz”.

SS o Papa João Paulo II denuncia “a despersonalização e a exploração” da sexualidade.

O erotismo pretende o sexo como motivo de arte, impingida sublimação do líbido que, na desaustinada tara freudiana, é totalitarizado impulso de vida. Modernamente, o erotismo, arvorado em valor cultural, é comercializado chorudamente às abas da cultura. Por ter uma suposta função estética e narrativa distinguir-se-ia da pornografia, exibição da actividade dos prostíbulos, venda do corpo e do sexo. A pornografia seria venalidade, o erotismo seria cultura; mas, o que acontece é que o erotismo, além de vender o corpo e o sexo, venaliza a cultura. O erotismo libidinoso, profusamente ostentado pelo cinema e pela televisão, é pornografia, leva à dissolução dos costumes, ao relaxamento moral, à impudícia, ao desamor, à crueldade.

Na enxurrada da depravação é lançada, agora, nos Estados Unidos da América “uma nova forma de subcultura sexual”, designada “polylove”, ou “polyamory”, que pretende promover a poligamia de ambos os sexos como “o modelo de família” do século XXI.

A contracepção é propagandeada e diligentemente subsidiada.

Thomas Robert Malthus, pastor protestante inglês, liberal pessimista, obstinado na redução da natalidade propunha, dois séculos atrás, o “constrangimento moral” dos instintos, como casamento tardio e limitação moral do número de filhos para os casados. Os neomalthusianos abandonaram os limites morais do pensamento de Malthus, passaram a preconizar meios anticoncepcionais e, a seguir, o aborto.

O eugenismo está implantado e institucionalizado. Eugenismo, a vaidade de reduzir o número de deficientes e limitados e de aumentar o dos “standarized” bem dotados, leva, por um lado, à esterilização, como a recentemente denunciada nos países nórdicos que muito se têm promovido com a “defesa dos direitos humanos”, ao aborto e à eutanásia, mortes apresentadas como necessárias e que se tornam descaradamente convenientes, e leva, por outro lado, à fecundação artificial caprichosa, à engenharia genética, à clonagem.

O Estado legítimo foi substituído pelo apregoado Estado de Direito, sem referenciais de Moral, em que a autoridade, em crise, se degrada no sofisma da opinião pública, se vicia no ardil de persuadir e se demite de prosseguir o bem comum.

Madre Teresa de Calecute, que visitou Madrid em Maio de 1983, declarou a um jornalista: “Nos países pobres nunca vi em toda a minha vida uma mãe a matar o seu filho. Existe muita pobreza material, mas amam-se os não nascidos. Nos países ricos, em troca, vi morrer gente na solidão, existem muitos suicídios, há fome de amor e nota-se o sentimento de não ser desejado”. Proclamou: “o aborto é um crime. Não os matem. Dai-mos a mim que eu trato deles!”

(continua num próximo post)

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2004/01/26

MAIS VIDA MAIS FAMÍLIA (actualizado) 

Assine e faça assinar a petição do movimento "MAIS VIDA MAIS FAMÍLIA". As assinaturas deverão ser recolhidas e enviadas para o movimento, até 27 de Fevereiro de 2004, conforme instruções constantes do final do impresso que, em formato pdf ou word, aqui pode descarregar.

O DESINTERESSE DO ABORTO 

Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.

JOÃO CÉSAR DAS NEVES


Penso que a melhor maneira de descrever a atitude da sociedade portuguesa perante as actuais discussões da despenalização do aborto é de tédio. Trata-se, indiscutivelmente, de um assunto desagradável e incómodo. Alguns, fundamentalistas, esforçam-se por levantar a questão, exigindo a liberalização em nome dos seus princípios. Outros, igualmente fundamentalistas, opõem-se furiosamente a essa liberalização, invocando outros princípios. E a sociedade, no meio, bocejando desinteressada, vê-se obrigada a olhar para a questão incómoda.

Existe um paralelo muito curioso entre esta situação e uma outra realidade deste século. Nos anos trinta, na Alemanha, um grupo de fundamentalistas achava, em nome dos seus princípios, que os judeus deviam ser exterminados. Outros, em nome de outros princípios, opunham-se a eles. E, no meio, a esmagadora maioria da sociedade alemã não se interessava pela questão.

Hoje, nós olhamos horrorizados para as terríveis consequências do holo-causto nazi, onde milhões de judeus pereceram sem qualquer razão. E, sobretudo, espantamo-nos como foi possível que os alemães da década de trinta, produtos de uma das civilizações mais antigas, mais elevadas e mais sofisticadas da História, pudessem ser coniventes com tal barbaridade.

A resposta tê-mo-la diante dos olhos. Permitir por lei que um ser humano seja eliminado antes sequer de poder abrir a boca é um crime muito mais grave do que matar pessoas já crescidas. E, no entanto, a nossa civilização, antiga, elevada e sofisticada, não se levanta horrorizada quando alguém se atreve a sugerir tal ideia. Antes se deixa escorregar no tédio, incomodada pela questão, mas incapaz de decidir qual o melhor caminho a seguir. E, na dúvida, até está disposta a deixar liberalizar a lei, em nome da sagrada tolerância.

Vale a pena considerar esta situação porque ela nos desvenda um dos maiores mistérios do nosso tempo. Hoje, na Europa, já não há bárbaros sedentos de sangue, lançados a cavalo para fazer morticínios. Mas isso não quer dizer que não se façam atrocidades, como o holocausto nazi e a liberalização do aborto mostram à saciedade. O mistério da “barbaridade civilizada” é este: o tédio. É por tédio e desinteresse perante situações incómodas que o nosso tempo abre a porta à barbárie. Os nossos descendentes, daqui a umas décadas, olharão com incredulidade para o nosso tempo e não entenderão como é que os seus sofisticados avós puderam tolerar crimes destes.

(Artigos publicados no Agência Ecclesia)

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