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2004/01/26

O DESINTERESSE DO ABORTO 

Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.

JOÃO CÉSAR DAS NEVES


Penso que a melhor maneira de descrever a atitude da sociedade portuguesa perante as actuais discussões da despenalização do aborto é de tédio. Trata-se, indiscutivelmente, de um assunto desagradável e incómodo. Alguns, fundamentalistas, esforçam-se por levantar a questão, exigindo a liberalização em nome dos seus princípios. Outros, igualmente fundamentalistas, opõem-se furiosamente a essa liberalização, invocando outros princípios. E a sociedade, no meio, bocejando desinteressada, vê-se obrigada a olhar para a questão incómoda.

Existe um paralelo muito curioso entre esta situação e uma outra realidade deste século. Nos anos trinta, na Alemanha, um grupo de fundamentalistas achava, em nome dos seus princípios, que os judeus deviam ser exterminados. Outros, em nome de outros princípios, opunham-se a eles. E, no meio, a esmagadora maioria da sociedade alemã não se interessava pela questão.

Hoje, nós olhamos horrorizados para as terríveis consequências do holo-causto nazi, onde milhões de judeus pereceram sem qualquer razão. E, sobretudo, espantamo-nos como foi possível que os alemães da década de trinta, produtos de uma das civilizações mais antigas, mais elevadas e mais sofisticadas da História, pudessem ser coniventes com tal barbaridade.

A resposta tê-mo-la diante dos olhos. Permitir por lei que um ser humano seja eliminado antes sequer de poder abrir a boca é um crime muito mais grave do que matar pessoas já crescidas. E, no entanto, a nossa civilização, antiga, elevada e sofisticada, não se levanta horrorizada quando alguém se atreve a sugerir tal ideia. Antes se deixa escorregar no tédio, incomodada pela questão, mas incapaz de decidir qual o melhor caminho a seguir. E, na dúvida, até está disposta a deixar liberalizar a lei, em nome da sagrada tolerância.

Vale a pena considerar esta situação porque ela nos desvenda um dos maiores mistérios do nosso tempo. Hoje, na Europa, já não há bárbaros sedentos de sangue, lançados a cavalo para fazer morticínios. Mas isso não quer dizer que não se façam atrocidades, como o holocausto nazi e a liberalização do aborto mostram à saciedade. O mistério da “barbaridade civilizada” é este: o tédio. É por tédio e desinteresse perante situações incómodas que o nosso tempo abre a porta à barbárie. Os nossos descendentes, daqui a umas décadas, olharão com incredulidade para o nosso tempo e não entenderão como é que os seus sofisticados avós puderam tolerar crimes destes.

(Artigos publicados no Agência Ecclesia)

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