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2004/01/16

CONTRAPONTO 




Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.

JOSÉ RIBEIRO E CASTRO


O nosso dever (...) é utilizar as armas da persuasão para fazermos vingar os valores essenciais numa sociedade moderna e humana, formada por cidadãos que se querem responsáveis e conscientes. E ajudar a criar as condições sociais e económicas” — escrevia aqui, há dois dias, José Manuel Fernandes a propósito do tema do mês. Por mim, não direi diferente. É exactamente isso. E, porque se trata de valores essenciais a uma sociedade moderna e humana, formada por cidadãos responsáveis e conscientes, a conclusão é, para mim, o contrário da premissa com que o amigo e director-adjunto José Manuel Fernandes arrancava o seu texto: onde ele partia em defesa do projecto da JS de liberalização do aborto, eu creio que é preciso concluir contra ele.

Às vezes, ouve-se discutir esta questão à volta do direito à vida, como se este direito fosse o direito de decidir sobre a vida de alguém e dela dispor. Como se fosse o direito de especular e de abundar sobre se, em determinadas condições e circunstâncias da mais variada ordem, esse ser terá ou não uma qualidade de vida que passe no crivo dos critérios apertados do escrutinador — se passar no precioso exame das condições e envolvências, há consentimento para prosseguir; mas, se não passar, extrai-se o fundamento para eliminar essa vida, apresentando-se as coisas como se isso fosse no melhor interesse da vida que se elimina.

A vida e as suas questões não são assim. É mesmo difícil assistir-se a distorção tão acentuada de planos. O direito à vida não é um direito de alguém sobre quem quer que seja. O direito à vida é o direito de alguém quanto a si mesmo e oponível precisamente a toda a gente. Ponto. O direito à vida é o direito de alguém contra todos e a partir de todos — contra todos, para que ninguém o viole; e a partir de todos para que o sirvam e respeitem.

De resto, a questão não é a de discutir se o Estado pode, ou não pode, ou se lhe cabe, ou não cabe, “impor uma moral ‘pró-vida’”. Independentemente das gerais relações entre a ética e o direito, a questão aqui não se trata de governar sobre as convicções morais de quem quer que seja. Trata-se de proteger e de defender a vida dos sujeitos do direito à vida, que são eles mesmos cuja eliminação se discute. A questão é principalmente de direito e justamente de direito — ao mais elevado título, porque de direitos fundamentais se trata. E, aí, nesse plano, é evidente que o Estado não só tem o direito, mas tem mesmo o dever de impor um direito pró-vida. É isso um princípio geral de civilização, que, por exemplo, a nossa Constituição exprime assim: “A vida humana é inviolável”.

A questão é tanto de direitos fundamentais e afectando o núcleo primevo de todo o quadro de valores humanos e sociais que o direito à vida não é só um direito fundamental; mas é o mais fundamental dos direitos fundamentais, por isso mesmo é que é o fundamento primeiro de todos os outros direitos fundamentais. Sem o direito à vida, nenhum outro direito faz sentido. Até porque o direito à vida tão-pouco é uma abstracção académica de bancos de faculdade ou de tribunas da política, mas a dimensão mais absolutamente concreta e total de cada ser: de cada um de nós, de cada um dos outros.

A questão não é de religião. Nada tem que ver com uma alegada e distorcida “ortodoxia papal” (de costas largas) nem com “fundamentalistas ‘pró-vida’”. A questão não é do Papa, mas da sociedade que somos e queremos. A questão é a da sociedade civil que nós somos e dos valores por que civilmente nos organizamos. E “fundamentalismo”... uma ova! Aquilo que torna abomináveis os fundamentalismos e que os veste como um risco e uma ameaça à civilização é a subversão que, em atentados cobardes ou por outras ignomínias, fazem do Deus de cada um, travestindo-o em fundamento brutal de arremesso violento contra a vida dos diferentes. E Deus é vida.

Mas é curioso. Para uns, de fé religiosa, a vida não é mais do que uma circunstância, passageira — há uma ordem, um outro quadro, uma outra continuidade, um outro reino. Para outros, a vida física é tudo — tudo o que temos, tudo o que somos.

A questão não é de religião. Justamente do que temos de cuidar, com fé ou sem fé, é do nosso tempo e do nosso espaço, da nossa concreta história existêncial, do quadro efectivo em que socialmente vivemos. Isto é, do que temos de cuidar é daquele quadro preciso e finito em que a vida é efectivamente tudo, porque sem ela nada. E não deixa de ser extraordinário que seja justamente entre os mais militantes do laicismo ou que mais convocam o quadro absolutamente laico de decisão, isto é, entre aqueles para quem a vida concreta é apenas tudo o que cada um tem e tudo o que cada um é, que mais se avolumem e se agigantem, em paradoxo radical, as vozes sobre a licitude de liberalizar o direito de privar outro da sua vida — isto é, o direito de lhe tirar tudo, o poder de lhe negar tudo o que é.

Fora disto, é o arbítrio total. Tomemos o quadro dos prazos e das semanas, das 12, das 16 ou das 24. É como se, em claro vício processualista, quisesse criar-se uma situação de pendência processual em que um candidato aguarda o veredicto a seu respeito, um cruzamento de semáforos em amarelo intermitente, antes da luz verde ou... de cair o encarnado. A base de informação é completamente artificial e artificiosa. Por exemplo, não está certo dizer-se, a fim de sustentar as 12 semanas, que, “se se utiliza o critério da morte cerebral para determinar a morte física, o início da vida cerebral pode ser considerado o momento limite a partir do qual o novo ser ganha uma individualidade tal que a sua vida deve ser considerada irreversível”. A razão da “morte cerebral” é outra. Não tem nada a ver com um qualquer novo “fétichismo” à volta do cérebro. É que, diversamente do que era convicção ancestral e é ainda o ideário popular, nós não morremos quando o coração pára; o cérebro mantém-se em actividade por mais alguns minutos e é aí que o último sinal de vida se apaga, de resto por efeito arrastado da falta de irrigação.

Mas, se é aí que a vida se apaga, não quer dizer que seja aí que se acende. Cito, por exemplo, de um livro nada militante: “O coração (...) começa normalmente a bater ao vigésimo quinto dia, embora se trate apenas de um coração primitivo, de um tubo em forma de U com dois milímetros de comprimento. (...) Após alguns dias de experiência, bate 65 vezes por minuto, para fazer circular o sangue recém-formado indispensável à alimentação dos tecidos embrionários”. A vida — absolutamente própria — já existe mesmo antes desse 25º dia, já reveste individualidade plena, já é desse e de mais ninguém, já define especificamente um e nenhum outro, já é efectivamente irreversível e determinada sobre si mesma, salvo causa natural ou provocada de morte, dita aborto — espontâneo ou provocado.

Tão irreversível é essa vida que o que se discute é justamente o acto e o poder de a interromper. Por mim, não tenho certamente esse poder. E penso que ninguém tem.

(Público, 15 de Fevereiro de 1997)

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