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2004/01/14

A DESORDEM 

Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.

JOSÉ RIBEIRO E CASTRO


Há por aí dois movimentos de opinião que, além de tudo o mais, surpreendem pelo completo desvio de valores. Ambos mexem com a vida e com planos essenciais da cultura social.

Diz-se que é preciso combater o aborto clandestino. Logo, dizem, é preciso liberalizar o aborto, assumindo o Estado a sua prática, através do sistema de saúde pública. Diz-se que é imperioso erradicar o flagelo da droga e eliminar o seu tráfico. Logo, dizem, é preciso legalizar o consumo de drogas, assumindo o Estado o respectivo comércio.

Como atitude mental e jurídica, o contra-senso é completo. Representa o padrão da desordem completa. Em vez de combater o facto e as suas causas, em vez de reprimir quem lucra com a exploração miserável das vulnerabilidades alheias, legaliza-se, fecha-se os olhos, lava-se as mãos e pretende-se acreditar que fica tudo bem.

“Não é possível” impedir a corrupção na arbitragem, outro tema na berra? A “solução” é fácil: legaliza-se a compra dos árbitros e passa-se mesmo a organizar leilões na Praça da Alegria — com selo e imaginação, o modelo, com sucesso, poderia aliás ser importado e adaptado, depois, a serviços públicos, assegurando a publicidade da corrupção dos decisores e a adequada tutela dos princípios da transparência e da igualdade. E por aí adiante.

Mas o aborto e a droga dão-se mal com ironias. A graça não faz sentido. Ambos os movimentos de legalização têm, contudo, em comum só caminharem em territórios de cegueira.

Tomemos os projectos de lei que estão na Assembleia da República. Cirurgicamente, são ditos da “Interrupção Voluntária da Gravidez”, a IVG. O eufemismo — que é, de resto, internacional para uso semelhante — diz tudo. O G que está em causa não é, nunca foi, o da “gravidez”. O G que está em causa é o da “gestação”. Toda a gente sabe isso: o que se discute não é o corpo da mãe e um estado dele; o que está em questão e em crise fatal é o corpo do filho e a vida dele. A distorção hábil e asséptica da realidade diz tudo sobre a convicção dos promotores.

Noutro plano, abunda-se com um trecho da Declaração Universal dos Direitos da Criança — o direito de toda a criança a ser desejada. Daqui, pretende retirar-se o seguinte absurdo: se a criança não é desejada, pode ser “despejada”. Invoca-se o direito de alguém para liquidar não só esse, mas todos os seus direitos! Do postulado de que toda a criança tem o direito a ser desejada só pode, nos quadros em que isso não resulta logo da natureza das coisas, tirar-se uma consequência — a de que deve ser desejada, a de que os pais a devem desejar, têm quanto à criança e perante a sociedade o dever jurídico de a desejar. Não pode tirar-se a consequência de irresponsabilizar os pais, outros familiares e as comunidades próximas desse mesmo dever. Nem pode extrair-se o cúmulo do absurdo e do desvalimento: quando tudo falha, isentar-se o Estado desse mesmo dever subsidiário, chamando-o antes à eliminação desse filho.

A verdadeira face do movimento não tem nada de solidariedade, mas de egoísmo, solidão e irresponsabilização. É uma ruptura profundíssima com um quadro estabelecido do que a cultura e a civilização registaram como bens disponíveis e indisponíveis. É a mesma cultura do “não te rales”, do “não é da minha conta”, da convicção e da educação irreais de que tudo nos é possível sem consequências.

Na droga, é parecido, como fenómeno cultural. Diz-se: o combate ao tráfico é uma “batalha perdida”; a criminalidade associada ao tráfico ou ordenada a consumos dispendiosos é intolerável e socialmente demolidora; donde, é preciso legalizar o comércio das drogas. E acreditam que isto faria baixar os preços, controlando o Estado os circuitos de distribuição, assim se acabando com aquela criminalidade.

Pensar assim é passar ao lado de aspectos essenciais da própria doença e da dinâmica da dependência. Os consumos disparariam de imediato, como aconteceu noutros países. Há experiências várias desde o princípio do século, da China aos Estados Unidos — se hoje há problemas com dez toxicodependentes, amanhã seriam com 100 ou 1000. A doença é ainda, por sua natureza, progressiva — além de tudo o resto na disfuncionalidade crescente do “agarrado”, é erro pensar-se num quadro de estabilização de dosagens dos clientes desse sistema.

Enfim, a efectiva e inevitável ruptura de personalidade induzida pelos consumos ou a necessidade irreprimível de consumos para além das dosagens prescritas levariam na mesma à criminalidade, conduziriam ao seu agravamento sem fim, favoreceriam um “mercado negro” próspero (mais facilmente instalado) e expor-nos-iam, ainda mais indefesos, à explosão de situações de violência incontáveis. As consequências sociais de todo o tipo de um desvario desses seriam insuportáveis.

No fundo, só há uma forma de combater o que se diz indesejável. É combater isso mesmo. Informando, formando e prevenindo; e reprimindo duramente quem se aproveita e explora. Não há outro modo. Cultura que faz ao contrário é cultura que se destrói.

(Público, 1 de Fevereiro de 1997)

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