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2004/01/15

O MACHISMO CHIQUE 





Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.

JOSÉ RIBEIRO E CASTRO


Que mulheres intervenham no debate sobre o aborto, está muito certo. É assim, aliás, sobre qualquer questão social e política. Não tem novidade. Mas que só as mulheres ou sobretudo as mulheres devessem participar no debate sobre o aborto, está completamente errado. Esta distorção de pensamento, porém, ataca até gente inteligente; curiosamente ataca sobretudo gente inteligente. No princípio da semana, Eduardo Lourenço desabafava assim na Antena 1: “É estranho que a voz que mais devia ser ouvida na questão do aborto, que é a voz das mulheres, seja aquela que nós menos ouvimos”. Não tenho sequer a ideia de que isto seja verdade. Antes a bizarra e absurda concepção ideológica de que o feto, o filho, pertence ao corpo da mãe e de que o aborto é uma concretização do “direito da mulher ao seu corpo” tem feito com que, em coerência, o movimento abortista use porta-vozes predominantemente femininas. Procura assim, de algum modo, situar-se na linha de outros dois movimentos sociais deste século — o Women’s Lib e a revolução sexual dos anos 60 —, ao mesmo tempo que se procura constranger a intervenção masculina a respeito de um tema que seria “da mulher”.

Esta concepção conjuga dois erros. O primeiro, a obstinada ideia obscurantista de que o filho gerado ainda não é filho, porque não nascido, e de que o feto não é mais do que uma parte do corpo da mãe, livremente amovível e eliminável. Como se de um mioma se tratasse ou de um qualquer “nascido”, na linguagem popular. Toda a gente sabe que isto é mentira — bem pelo contrário, cada vez sabemos mais da vida ao longo da gestação e da individualidade autónoma do filho enquanto feto. Mas situar o debate nesse plano, de completa negação da realidade, é condição de alívio psicológico e base indispensável para prosseguir todo o debate. O segundo erro, quando transitamos já para a ideia de “filho”, é o corolário da mesma concepção machista que entende a maternidade como um estado sem pai, que apoia todas as manifestações de paternidade irresponsável e que entende os filhos como questão privativa e como “fardo” exclusivo da mulher. Na cultura alemã do princípio do século, associava-se a mulher aos “três k”: “Kinder” (filhos), “Kirche” (igreja) e “Küche” (cozinha) — ali, é ainda a mesma ideia. Vestida de chique, trajando elegante, abundando intelectualidade — mas a mesmíssima ideia.

Na liberalização do aborto pretendida por deputados socialistas e comunistas, a única questão é a do direito à vida. Sendo certo que há ali uma vida, que essa vida é humana e que essa vida prosseguirá autonomamente o seu curso próprio, singular, individual, único e irrepetível, salvo se violentamente interrompida, a única questão é saber se essa vida, se esse ser humano, tem direito à vida ou não tem direito à vida. Se há direito de matar ou não há direito de matar. Não há.

A brutalidade da questão explica, aliás, suficientemente que se queira evitá-la. E, por todas as formas e feitios, que se procure colocá-la noutros planos. Sobretudo neste século dos direitos humanos, ninguém gosta de posicionar-se num plano em que as posições ressoariam a barbárie e a ignomínia. Por isso se foge à verdade das coisas — para liberalizar o aborto é imperioso que não se veja o aborto.

Mas existirão outras questões e outros planos? Certo que existem. Só que o aborto não é resposta nenhuma e é nada como resposta. Antes o triunfo do aborto traduz, em cada uma dessas questões e planos, a vitória de tudo o que merece recriminação. O triunfo do aborto a pedido é a mais miserável derrota da solidariedade e a condução ao absurdo da angustiada solidão de uma mulher posta em situação crítica. Essa mulher concreta ouve porventura em seu redor um pai irresponsabilizando-se, dizendo “não tenho nada a ver com isso”; questionando-a, “como é que fizeste isso?”; bramando-lhe até talvez “não tens cuidado nenhum”; ordenando, bruto, “aborta!”; ou insinuando-se suave, “o melhor é abortares”. Essa mulher concreta, realmente ou no seu espírito acossado, vê romperem-se porventura em seu redor todas as redes de solidariedade natural que deveriam funcionar, nomeadamente as familiares. E, posta só, o que é que essa mulher ouve da sociedade por parte daqueles que recomendam a liberalização do aborto? Ouve exactamente o mesmo: solidariedade nenhuma; portas fechadas e costas voltadas; e o mesmo coro: “não tenho nada a ver com isso”; “como é que fizeste isso?”; “o melhor é abortares”. Vestindo chique e trajando elegante, o coro é igual e a mesma a mentalidade. Um machismo “betinho”, sorrindo boas maneiras.

As teses abortistas não servem o filho — cuja estatística de vítimas curiosamente se omite —, nem servem a mãe. E, neste fim de século dos direitos humanos, não deixa de ser a um tempo chocante e sintomático que praticamente pouco mais se ouça do que a voz da Igreja Católica, ou outras que nela se inserem, de leigos ou dela próximos. Não está mal que intervenham. Seria grave que o não fizessem. Antes é lastimável a abstenção de tantas vozes propriamente políticas. Os católicos são muitas vezes bombos de festa quanto a violações de direitos humanos perante as quais estejam em silêncio ou indiferentes, porque, de facto, lhes é exigível que estejam na primeira linha. A Igreja está sempre no seu papel quando é voz dos que não têm voz. Aqui, é esse justamente o caso. Não devia, nem deve, ser a única voz. Mas tem de ser uma das vozes.

(Público, 8 de Fevereiro de 1997)

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