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2004/01/21

A HIPOCRISIA NO ABORTO 




Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.

JOÃO CÉSAR DAS NEVES


Anda por aí, na sociedade portuguesa, um raciocínio notável, com uma lógica extraordinária. Em poucas palavras, a ideia é mais ou menos assim: “existem muito abortos clandestinos em Portugal (mais de dez mil por ano segundo algumas estimativas); a sociedade, hipocritamente, ignora esses casos e a lei castiga quem os pratica, em consequência, deve-se despenalizar o aborto”.

O raciocínio é cristalino! Se a sociedade pratica, devemos admitir a prática e legalizá-la. Parece ser uma atitude eminentemente democrática, usando o sufrágio social para definir os valores. Desenvolvendo esta ideia, devemos exigir, por exemplo, a despenalização imediata da fuga ao fisco. Trata-se de uma prática muito mais comum que o aborto clandestino, pois há muito mais que dez mil casos por ano. A sociedade também ignora, hipocritamente, a evasão fiscal, e a lei castiga os infractores. Um caso nítido para a despenalização!

Aliás, esta ideia pode-se estender a muitas outras situações, do roubo à violência, da injúria à burla. Todas estas práticas são muito frequentes (muito mais frequentes que o aborto), a sociedade ignora-as hipocritamente e a lei penaliza-as. Mas se se achar que estes casos são diferentes do referido, existe um em que o paralelismo é tão imediato que exige aplicação directa da mesma ideia: o trabalho infantil. É uma prática comum na sociedade portuguesa, realizada por motivos de ordem económica, tal como alegadamente muitos abortos o são, e a sociedade ignora e a lei penaliza. Em consequência, a atitude correcta seria a de despenalizar imediatamente o trabalho infantil. E até, quem sabe, subsidiar as empresas que empregam crianças, tal como se acha que se deviam apoiar as instituições que praticam abortos. A lógica é a mesma. Se a sociedade faz, a lei deve permitir. Lógico, não acham?

É extraordinário que os mesmos que lutam contra o trabalho infantil, a exploração ou a violência sobre menores se manifestam para tornar legal que os irmãozinhos dessas crianças possam ser mortos antes mesmo de nascerem! A falta de coerência é tanta que é caso para falar de hipocrisia. A mesma da que eles acusam a sociedade.

O problema do aborto é muito complexo e delicado, tocando o íntimo mais profundo do ser humano, na sua realidade última. Mas um dos elementos que, indiscutivelmente, o integram é que se trata de um crime. Matar um inocente é mal! Sempre foi, em todas as culturas, povos e regiões.

Não vou sequer tocar a questão de saber em que momento começa a vida no seio materno. Parece que alguns cientistas têm dúvidas. Mas todas as mães e todos os pais, em todos os tempos e em todo o mundo sempre tiveram a certeza de que aquele era seu filho. Invocar o argumento de que alguns cientistas têm dúvidas quanto ao momento do início da vida é, isso sim, grande hipocrisia.

E se alguém tivesse alguma dúvida, completamente injustificada, sobre esse momento, aos cinco meses (note-se que as vinte semanas de que se fala são cinco meses), aí já não restam quaisquer incertezas: trata-se de uma pessoa, que mexe, comunica com a mãe e o mundo e cresce a olhos vistos. “Interromper a gravidez” é impedir que essa pessoa viva. E, em linguagem de gente, “impedir que viva” é matar.

É por isso, e não por qualquer hipocrisia, que a sociedade condena e penaliza o acto: o aborto é crime de morte. Um crime tanto mais horrendo porquanto é praticado sobre quem é completamente inocente, não se pode defender, e tem toda a vida à sua frente. Que seja permitido praticar este acto legalmente é um recuo de milénios na civilização. É para conseguir esse recuo que lutam os que acusam a sociedade de hipocrisia!

Mas o mais notável nesta discussão, dez anos após a aprovação da lei assassina que hoje nos rege nesta matéria, é que a discussão agora já nem trata do momento em que começa a vida. Já nem se procura, sequer, dizer que não se está a matar a criança.

Assume-se que existe a morte, mas invocam-se argumentos de conveniência para a praticar. Perdeu-se a vergonha. E, ao mesmo tempo, a lógica, porque os argumentos invocados são “pérolas de coerência”. Vejamos. A novidade mais patética deste “segundo round” da legalização do aborto é a introdução de chamados “argumentos técnicos”. Os médicos afirmam tecnicamente que existem malformações congénitas que a ciência só consegue detectar na fase mais avançada da gravidez, razão pela qual se deve estender o prazo do aborto legal. A verdade é que há malformações que só são detectáveis depois do parto e até aos cinco, dez ou vinte anos de idade. Segundo essa lógica, aliás retirada do código de ética nazi, deveria ser admissível eliminar esses “infra-humanos” na data em que a ciência os detecta, certamente para promover a “pureza da raça”.

Mas neste argumento existe uma perversidade ainda maior. É que a questão é posta do ponto de vista do médico. Com que cara é que ele fica se avisar os pais de que o seu filho está mal formado, duas ou três semanas depois do prazo do aborto legal? Nessa altura já não lhes é possível usar essa “solução legítima” para o problema! No fundo, o argumento científico para a extensão da lei é apresentado para resolver um problema sindical da classe médica. Mate-se a criança, mas que o médico não perca a face perante o cliente!

No caso da violação, os mesmos que (muito bem) nunca aceitariam a pena de morte para o violador são os que aceitam que a única parte sem qualquer culpa no drama (e para mais filha das outras duas partes) seja a que é punida pela morte. Este é o “grande avanço da civilização” que se pretende introduzir na nossa ordem jurídica, o tema que justifica a luta empenhada de tantos.

E a novidade final deste segundo ataque contra a vida dos bebés antes de nascerem vem do facto de que, desta vez, quem tomou a liderança da discussão foram os autores do aborto, ou seja, aqueles que fazem dinheiro com os dramas dos outros.

O aborto é um terrível drama humano para quem o sofre. As mães e os pais que, em condições-limite, o cometem, viverão toda a vida com a morte daquele filho que nunca chegaram a ter. O sofrimento envolvido é tremendo e merece toda a nossa compreensão. E esse sofrimento não diminui, antes aumenta, a gravidade do crime.

É exactamente por causa da gravidade do drama humano envolvido que a forma como ele é tratado, hoje, em Portugal constitui um profundo atentado à dignidade humana, à lei, à lógica e à coerência. Aqueles que tratam tais questões deste modo podem ser acusados, entre muitas outras coisas, de hipocrisia. Exactamente o mesmo de que acusam a sociedade.

(Diário de Notícias, 11 de Novembro de 1996)

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