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2004/01/17

O DEBATE DO PRINCÍPIO 




Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.

JOSÉ RIBEIRO E CASTRO


Diversamente do que, por táctica retórica retórica, repetidamente sustentaram os deputados Odete Santos e Sérgio Sousa Pinto, o debate de anteontem no Parlamento não foi um debate de política criminal. O debate foi — e é — sobre uma questão exclusiva e principal de direitos fundamentais. Tem — é certo — uma tradução, aliás mitigada, ao nível da moldura penal, mas pela simples e directa razão de que, num sistema jurídico, aceite o valor — que é a vida humana — e estabelecido o direito — que é o direito à vida —, não existe outro quadro em que pudesse ser afirmado e salvaguardado. Não há outra sede jurídica em que a vida humana e o seu direito pudessem ser afirmados e tutelados. Não é uma questão civil ou comercial, não é de direito administrativo ou financeiro, não é um problema de mais coima ou menos coima, não é um incidente disciplinar. A presença no quadro penal decorre da própria natureza da questão jurídica. Também não é uma questão individual. Nem sequer individual da vítima. Muito menos individual de quem a agredisse. O problema é de tal ordem que não se pode assobiar para o lado ou para cima. Em abstracto só ou em concreto já, não pode haver indiferença. A questão não é só de princípio ou de um princípio; é mesmo a questão do princípio. E a tutela dessa vida humana que, nas circunstâncias de que se trata, não teria mais ninguém que a defendesse, é impossível conceptualmente que coubesse noutro lugar jurídico.

Saltando para a alegada “hipocrisia” da lei, já seria um debate de política criminal se a pergunta tacticamente insistente da deputada Odete Santos — “querem as mulheres na cadeia?” — tivesse tido sequência, resposta ou continuidade, porque aí se discutiria um qualquer endurecimento repressivo. Não vi ninguém defendê-lo. Está certo assim. A lei explica-se no plano preventivo, que é a primeira frente do direito e do direito penal em especial. Nem esta afirmação entra em crise pelas estatísticas declaradas de 16.000 abortos por ano, que o debate parlamentar fez inflacionar para 20.000. Tenho as mais sérias dúvidas sobre que alguém possa afiançar o rigor destes números. Mas o que seguramente ninguém pode dizer, como o deputado Sousa Pinto, é que a lei “não evitará um aborto, não salvará uma vida”. Como é que sabe? Se já é grande o atrevimento intelectual da esgrimida segurança daqueles números, que significariam em Portugal um retrato de 44 a 55 abortos por dia, o que ninguém pode afiançar é que não seria pior se não fosse a lei e a consciência social da ilicitude. Tudo leva a crer que seria. Sobretudo nos termos reais do debate e da questão.

Outra afirmação sintomática, na defesa dos projectos que não passaram, foi a de que “ninguém é a favor do aborto”, nem estaria em causa a “liberalização do aborto”. É claro que é esta que esteve, e que está, em discussão. Basta ler os projectos, seguir todas as linhas do debate ou ouvir as galerias para ver que o que se busca é a instituição do direito ao aborto livre e, nalgumas circunstân-cias, o dever de ele ser feito. A questão — que divide de raiz como poucas — é esta: quem defende e como se defende aquele que os pais enjeitem, que a sociedade rejeite e que o Estado, no fim, também expulse? Pode haver o poder. Mas qual o direito?

Se ninguém fosse a favor do aborto, na sociedade e na política, o debate pura e simplesmente não existiria. Seria, aliás, útil e verdadeiramente progressivo, pelo esclarecimento real e verdadeiro, negando armas da demagogia, da desinformação e do obscurantismo, que um dia aí se chegasse. Ainda não se chegou. O debate continua — e voltará. Ninguém venceu.

Toca ouvir citar aqueles números — como normais. E toca parecer que não se estaca, um minuto sequer, a reflectir nesses talvez 16.000 ou 20.000 seres humanos que, poucos anos depois, pela ordem natural das coisas, aí estariam como qualquer de nós — como eu, como tu — e dariam, por ano, para encher um estádio ou superar a lotação da maioria dos comícios que há por aí. Onde, como quaisquer outros, estariam de sua viva voz, com mandatários ou sem mandatários, mas sem dependência deles, a exprimir adesões ou a lutar por outros seus direitos, que esse, sim, é o sentido da história e do direito.

Para que quase no fim deste século XX ainda aí se esteja, é porque o confusionismo e o desconhecimento ainda serão grandes. Infelizmente, há quem o alimente. Não é a lei que empurra quem quer que seja para o aborto clandestino. O discurso ultrapassado, mas reiterado, do “direito ao aborto” e da sua afirmação como uma questão da sexualidade individual é que mais faz ainda por isso. O aborto não é património da sexualidade. O único sexo presente já no aborto é saber, como na pergunta comum, se “é menino ou menina”. Essa outra pessoa, sobre que se pergunta, ninguém a possui. Ninguém é seu dono. Ninguém a tem. Ela já é. De propriamente ser.

Há claramente muitos ao engano. E dói, magoa, aborrece, ver tal engano ilustremente patrocinado e conscientemente alimentado. Falou-se demasiado em embriões. A questão não é já, aliás, de embriões. O único embrião que neste debate está em causa é o embrião de uma ideia: a ideia de que a eliminação física é, por um lado, solução e, por outro lado, solução legítima para problemas pessoais ou sociais. Não é.

(Público, 22 de Fevereiro de 1997

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