<$BlogRSDUrl$>

2004/01/29

O REFERENDO 


eu tenho 7 semanas...
eu tenho 10 semanas...



Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.

HUGO DE AZEVEDO

Doutor em Direito Comparado e em Direito Canónico,
sacerdote do OPUS DEI.


Há quem considere impróprio tratar com humor de um assunto tão grave como o aborto. Eu sou um deles. Já o mesmo não direi acerca da lei do aborto. Essa, para ser tratada seriamente, só admite duas perspectivas: dramática e cómica. Quando o Estado se organiza para matar inocentes, o caso é profundamente dramático; quando tenta justificar a matança, é de morrer a rir.

No entanto, fazem bem os políticos e os juristas que aceitam o diálogo nessa vertente, com o intuito de minimizarem os trágicos efeitos da legislação abortista. Devem precatar-se, porém, do insidioso perigo que correm ao entrarem nesse mundo virtual em que desaparece do écran a figura principal da polémica: a pessoa do feto.

Na verdade, esse diálogo só se consegue manter dando (virtualmente) por suposto que o aborto não tem nada a ver com o abortado, mas tão só com a mulher que o concebeu; ou que o feto vai mudando de natureza conforme o seu desenvolvimento anatómico, ou ao capricho dos sentimentos da procriadora; ou que é uma questão de “qualidade de vida”, quando é um problema de vida e de morte; ou então que se reduz a um fenómeno social de ordem quantitativa, numérica, independente da sorte de seres humanos... Enfim, só é possível o diálogo neste assunto deixando de falar dele, procurando torneá-lo, focando aspectos secundários, e às vezes puramente imaginários (como, por exemplo, o dos números impossíveis de comprovar), e esforçando-se por demonstrar aos abortistas que as leis vigentes e as propostas afinal não resolvem o seu alegado objectivo de liberdade e bem estar da mulher.

É um tipo de diálogo semelhante ao que se usa habitualmente com terroristas, embora mais difícil, pois estes costumam ser sensíveis à sorte das crianças, dos velhos e doentes, e aqui dá-se precisamente o contrário. E, sendo um diálogo muito prolongado, tem efectivamente o risco de perturbar a razão dos próprios benévolos dialogantes, ao entrarem num permanente jogo de equívocos, num esforço contínuo de prescindirem do senso comum, e até de evitarem manifestar as suas mais claras e rotundas convicções.

A proposta de um referendo insere-se neste tipo de diálogo, e talvez seja oportuno e útil em sentido “negocial”. Os seus inconvenientes, porém, são grandes: consagra como questão opinável a protecção da vida humana e desfaz de uma vez para sempre o significado óbvio do artigo 24º da Constituição — “1. A vida humana é inviolável”. A partir de um referendo sobre o aborto, considerado compatível com a Lei Fundamental do país, já nenhum termo constitucional significa literalmente nada, e pode ser mesmo interpretado em sentido oposto, como é o caso.

Ou seja, a confusão mental que se gera numa discussão destas estende-se imediatamente a toda a ordem jurídica, transtorna definitivamente o próprio conceito de Estado, cuja primeira razão de ser consiste na defesa do bem comum (substituído pelo aparente bem de uma maioria contra o bem mais elementar de milhares de pessoas indefesas), e cuja primeira função é justamente a protecção do direito à vida. Estabelece legalmente a distinção entre pessoas que merecem viver e outras que não o merecem, não por graves crimes cometidos, mas pura e simplesmente por serem incómodos. Deste modo, para muitos a profissão clínica passa a incluir a aberrante obrigação de matar, sob sanções que chegam à expulsão dos seus postos de trabalho. O Estado converte-se numa organização criminosa, e uma organização que não pode ser julgada (excepto pela História), nem perseguida eficazmente, visto não dispormos de nenhuma alternativa para ele.

É curioso e assustador verificar como muita gente é capaz de enveredar pelo infanticídio, sem consciência do que está fazendo: partem do princípio que, sendo bem intencionados, nada de mal podem cometer. A sua “boa intenção” — de aliviarem a pobre rapariga, de evitarem mais trabalhos familiares, etc. — fá-los esquecer por completo o preço a pagar por tanta “bondade”. Pela “qualidade de vida” de alguém destroem a vida doutros. A sua “boa intenção” vai ao ponto de forçarem muitas mulheres a eliminarem os filhos que geraram e as acompanham no ventre. As cenas que se passam diariamente nos postos de saúde e nas maternidades são de arrepiar.

Mas algo lhes diz que procedem mal. Quando a mulher resiste às pressões brutais a que é hoje sujeita e consegue levar avante a sua gravidez, e sai pelos corredores com uma criança encantadora nos braços, vários médicos e enfermeiras se escondem pelas esquinas, como ratos.

Quanto às outras, de facto, mais do que sanções, do que precisam é consolo, misericórdia, ânimo e carinho. A “depressão pós-aborto”, que os mais acérrimos abortistas reconhecem como consequência normal do triste acontecimento, nunca mais se apaga. Mas pode ser um ponto e partida para a salvação de muitas outras mulheres.

(Jornal de Notícias, 5 de Novembro de 1996)

Etiquetas:


This page is powered by Blogger. Isn't yours?

  • Página inicial





  • Google
    Web Aliança Nacional