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2004/01/31

ABORTO 




Do livro “Em Defesa da Vida”
Editado por Nova Arrancada, S.A.

MÁRIO BIGOTTE CHORÃO

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Sócio da Sociedade Científica da mesma Universidade e do Instituto Internacional de Estudos Europeus “António Rosmini” (Bolzano). Pertence à direcção da revista “O Direito”. Tem participado em iniciativas e publicado trabalhos no domínio do Biodireito.


1. Noção.

Entende-se aqui por A. (ab-ortus: privação do nascimento) o acto intencional (A. voluntário, provocado ou procurado) mediante o qual se causa directamente (A. directo) a morte do fruto da concepção humana, por qualquer método e em qualquer momento da gravidez, com a consequente interrupção desta; esse resultado pode produzir-se no seio materno ou derivar da expulsão prematura do feto. Deste conceito ficam, pois, excluídos os casos de A. involuntário, espontâneo ou casual, e, bem assim, os de A. indirecto (proveniente, como efeito secundário, previsto, mas não querido, de uma acção em si mesma boa, como a destinada a salvar a mãe).

2. A questão do aborto.

a) Questão que interessa simultaneamente, à moral (bioética), ao direito (biodireito) e à política (biopolítica), o A. é versado, neste lugar, de preferência do ponto de vista jurídico, mas em íntima relação com as outras perspectivas. A problemática de supressão da vida humana antes do nascimento adquire hoje aspectos novos na prática biomédica, com intervenções que podem ocasionar a morte dos seres embrionários, nomeadamente os procedentes da fecundação in vitro. Muito do que aqui se diz quanto ao A. vale, com as adaptações convenientes, para estas situações.

b) A doutrina ética tradicional, baseada na lei moral natural e em princípios bioéticos de cunho personalista, vê no A. uma conduta intrínseca e gravemente ilícita por contrariar o imperativo absoluto que impõe o respeito da vida do ser humano inocente. A moral cristã reforça este juízo à luz dos ensinamentos da Revelação relativos à eminente dignidade da pessoa humana e ao valor sagrado da sua vida desde a fecundação. Assim, a Igreja Católica condena o A. como pecado particularmente grave e “crime abominável”, considerando-o no Código de Direito Canónico, como fundamento de excomunhão latae sen tentiae e impedimento à recepção e exercício de ordens sagradas. O Magistério Eclesiástico mais recente tem vindo a insistir firmemente neste julgamento moral (v.g., Congr. para a Doutrina da Fé, Decl. sobre o aborto provocado, 18.11.1974, e Instr. sobre o respeito da vida humana nascente e a dignidade de procriação, 22.7.1987; Catecismo da Igreja Católica, 1992, nº 227 e ss.), empenhando-se o papa João Paulo II numa verdadeira cruzada em defesa da vida humana originada na concepção (v., em especial, a Carta Encíclica “Evangelium vitae” sobre o valor e a inviolabilidade da vida humana, 25.3.1995). Está em sintonia com essa avaliação moral, o tratamento do A., no plano jurídico, como atentado contra o direito — natural — à vida de que é titular o nascituro e, portanto, como ofensa muito séria à justiça (antijuridicidade intrínseca do A.). Ao Estado compete o dever de tutelar esse direito fundamental, inclusive mediante recurso a meios de repressão penal proporcionados à ilicitude objectiva do A., cumprindo à lei, não só a perseguição do crime, mas também a acção pedagógica de sensibilização da sociedade aos valores humanos em jogo. Não se pretende, deste modo, sobreestimar o papel da reacção punitivo-criminal ao A. (“antiabortismo repressivo”), mas ajustá-la, com senso equitativo, às realidades, em conjugação com adequadas medidas sociais de prevenção e solidariedade (“antiabortismo humanitário”). É, em suma, o bem comum da sociedade política, devidamente entendido, que impõe aquela intervenção do Estado, visto que o A. não constitui questão do puro foro íntimo da consciência individual, mas facto humano que releva da boa ordenação da vida social. A lei punitiva do A., alicerçada em exigências axiológicas fundamentais e em critérios de política criminal, apresenta-se, pois, como lei no pleno sentido, i. é, como prescrição racional para o bem comum. Ao mesmo tempo, a salvaguarda do direito à vida dos nascituros impõe-se como requisito indispensável do verdadeiro Estado de Direito e da democracia autêntica de base ética, fundados no respeito e promoção da justiça e dos direitos naturais da pessoa. Mas este modo de encarar o A. encontra-se hoje profundamente abalado, prevalecendo a orientação favorável à sua despenalização mais ou menos ampla e chegando-se, mesmo, a reivindicar a sua “liberalização”, com o reconhecimento à mulher do “direito ao aborto”. As sim, para além do “abortismo humanitário”, que admite o A., em certos casos, como mal necessário, anuncia-se o “abortismo libertário”. Fruto, nas sociedades liberais contemporâneas, do ethos permissivista e radical, esta situação insere-se na anti-life mentality e na “cultura da morte”, que inspiram também as iniciativas actuais em prol da eutanásia. Variadas orientações e atitudes religiosas, morais, filosóficas e ideológicas (secularismo, relativismo, individualismo, hedonismo, feminismo, etc.) e determinados modelos bioéticos (v.g., sociobiologista, utilitarista, radical-liberal) admitem o sacrifício da vida do nascituro a diferentes interesses e objectivos (vida, saúde, honra e liberdade da mãe, “qualidade de vida” do filho, bem-estar da família, conveniências eugénicas, controle da natalidade, etc.). O subjectivismo radical-niilista, influenciado pelo sadismo filosófico — que faz da pessoa simples objecto, manipulável pela lógica do desejo e do prazer —, situa-se na vanguarda do movimento abortista. Este conta com o activismo de lobbies influentes e serve-se de astuciosos meios de domínio da opinião pública, de que fazem parte uma retórica sofística e a instrumentalização eufemística da linguagem (p. ex., edulcora-se o “aborto” sob o rótulo de “interrupção voluntária da gravidez” ou, simplesmente, “I.V.G.”). Os ordenamentos jurídicos, por seu turno, vão cedendo à pressão do abortismo e adoptam soluções de despenalização ou descriminalização — i. é, exclusão da ilicitude penal — do A., segundo sistemas variáveis de utilização de prazos de gravidez e de indicações favoráveis à sua interrupção (terapêutica; eugénica; ética, criminológica ou sentimental; económico-social). É manifesta a caprichosa arbitrariedade positivista dos legisladores e juristas quanto à fixação dos requisitos despenalizadores, tendendo-se, numa lógica ampliativa, para regimes jurídicos de crescente permissividade, culminantes, porventura, na legalização do “aborto a pedido” (abortion on demand). A solução despenalizadora pretende abonar-se com razões de política criminal (a incriminação como ultima ratio, a ineficácia da punição do A., a discriminação que esta representará para os economicamente mais débeis, o combate ao A. clandestino, a necessidade de satisfazer interesses e valores ponderosos em jogo) que são muito questionáveis. Os argumentos “progressista” e do “direito comparado” são explorados ao máximo no sentido de pressionar as legislações dos vários países a seguirem os modelos despenalizadores “mais avançados”. Instituições e instrumentos jurídicos internacionais são também crescentemente utilizados pelo movimento abortista (ver, p. ex., no âmbito da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, o Rapport sur l’égalité entre femmes et hommes: le droit au libre choix de la maternité, 25.2.1993). Politicamente, o crescendo deste movimento coincide com a crise da concepção personalista do bem comum do Estado (preterida pelas ideias de bem-estar, interesse colectivo, utilidade geral, qualidade de vida, etc.), com a crise da lei positiva (esta deixa de pautar-se pelo direito natural para se tornar simples mandato do Poder e caixa de ressonância dos factos sociais; esvaziada da sua função ético-pedagógica, contribui para o embotamento da consciência moral dos cidadãos e para a corrupção dos costumes), com a crise do Estado de Direito (confundido com o mero Estado de Legalidade formal), a crise da autoridade (a que se substitui a força) e com a crise da democracia (reduzido a dimensões processuais ou técnicas, o sistema democrático é instrumentalizado pela sociedade permissiva e ameaça levar à tirania e ao totalitarismo). Em suma, o tratamento dado ao A. constitui elucidativa pedra-de-toque das concepções e dos sistemas político-jurídicos. Verificada a falência de vários modelos biojurídicos e biopolíticos na protecção da vida humana pré-natal (v.g., modelos formal, processual e individualista libertário), resposta satisfatória só pode encontrar-se numa perspectiva de tipo realista, personalista e jusnaturalista: para ela, a vida é um bem essencial, verdadeiro direito do nascituro (ius suum), que desde a concepção lhe pertence por título radicado na sua natureza e dignidade pessoais (personalismo ontológico e axiológico) e que em termos de estrita justiça lhe deve ser reconhecido. A invocação, pelo rei Balduíno dos Belgas, da objecção de consciência para não ter de promulgar a legislação despenalizadora do A. — imoral, injusta e contrária ao bem comum —, constitui, por assim dizer, uma ilustração viva, singularmente exemplar, de fidelidade a este paradigma doutrinal.

c) No debate sobre o A., o tema crucial e verdadeira chave da questão reside na natureza reconhecida ao produto da procriação humana (zigoto, embrião, feto, nascituro), embora alguns se recusem a discutir o problema, considerando-o irrelevante. A melhor doutrina, fundada no personalismo ontológico, adepto da tese substancialista da pessoa, sustenta, com base nos dados científico-biológicos (segundo os quais, com a fecundação surge um novo indivíduo da espécie humana, dotado de existência autónoma e entidade genética própria, destinado a desenvolver-se ao longo de um ciclo vital homogéneo e contínuo, até à morte), que o homem é pessoa em acto (“substância individual de natureza racional”, “realidade substantiva psico-orgânica”, “espírito encarnado”, etc.) a partir da concepção, coincidindo, assim, o início da vida pessoal com o da vida individual. Ou seja, o gérmen (zigoto) “é já” formalmente, e não só virtualmente, homem, nele se contendo todas as notas essenciais definidoras da pessoa humana. Tem isto como pressuposto a animação racional no momento da concepção (animação imediata), em oposição a explicações cientificamente obsoletas e metafisicamente discutíveis que situam aquela animação num momento ulterior (animação mediata), fixado, aliás, em termos imprecisos e variáveis, em função do grau de desenvolvimento do feto. Aos argumentos puramente racionais favoráveis à condição e dignidade das pessoas do conceptus acresce, no mesmo sentido, a leitura, à luz da fé, das fontes da Revelação cristã. Significativamente, prescreve o Código de Direito Canónico que, na medida do possível, os fetos abortivos vivos sejam baptizados. Em suma, neste contexto doutrinal o A. significa, propriamente, aniquilar alguém e não apenas uma coisa. Mas mesmo que, porventura, subsistissem algumas dúvidas quanto à natureza pessoal do ser embrionário, impor-se-ia respeitar a sua vida, para prevenir o risco de matar um homem. Há, porém, quem sustente, com argumentação científica e metafisicamente vulnerável (v.g., concepções empírico-processualistas e funcional-gradualistas, idealistas e subjectivistas da pessoa), que o feto é um apêndice do corpo da mãe (portio viscerum matris), um ser humano não pessoal (dependendo a identidade pessoal da aquisição de certos atributos físicos e psíquicos, mutáveis segundo as opiniões, ou do exercício actual da razão e da liberdade ou, mesmo, do acto de reconhecimento por parte dos progenitores ou da sociedade) ou, quando muito, “pessoa potencial” ou “quase-pessoa”. A partir deste entendimento, diversos autores desvalorizam, mais ou menos, a dignidade do ser humano embrionário, chegando alguns a subpo-la ao valor de certos irracionais. Ao contrário, admitindo que o nascituro é, desde a concepção, pessoa em sentido ontológico, não se pode deixar de tratá-lo como fim em si (personalismo axiológico). Nomeadamente, e em oposição às concepções positivistas da personalidade jurídica, como a de Kelsen, ele tem de ser considerado pessoa jurídica (quem é pessoa na ordem ontológica é também, por natureza, pessoa jurídica), titular, desde logo, de um conjunto de direitos naturais/fundamentais, como os direitos à vida e à integridade física. Desta tese (concepcionista), com raízes romanísticas, afasta-se a solução (natalista), imposta pelo positivismo moderno, que faz depender do nascimento com vida a aquisição da personalidade jurídica singular (cf. art. 66º, nº 1, do Código Civil). Mas, não sem incongruência, mesmo os ordenamentos que optam por esta última orientação, reconhecem e tutelam interesses ou “direitos” do nascituro (cf. art. 66º, nº 2, do Código Civil), entre os quais a própria vida, mediante a punição penal do A.. Em algumas fontes de carácter internacional encontram-se menções explícitas à protecção pré-natal do ser humano, mormente no tocante à vida (p. ex.: Declaração dos Direitos da Criança, ONU, 20.11.1959; Carta de São José da Costa Rica sobre o sistema interamericano dos direitos do homem; Convenção dos Direitos da Criança, ONU, 20.11.1989; Carta dos Direitos da Família, Santa Sé, 22.10.1983). Dada a natureza do ser concebido, tem, pois, de considerar-se ilegítimo, do ponto de vista moral e jurídico, o A. directo (e, de um modo geral a morte intencional dos embriões humanos), justificando-se a sua punição penal, com fundamentos onto-axiológicos e por motivos de política criminal, sem prejuízo da atenuação, segundo as circunstâncias, da responsabilidade penal do agente. Ao valor da pessoa e da vida do nascituro não podem, segundo um recto critério hierárquico, sobrepor-se quaisquer outros valores ou interesses. Nem sequer a salvaguarda da vida da mãe pode justificar o A. directo: o fim bom não legitima o meio intrinsecamente mau; o argumento da legítima defesa é improcedente, pois o filho é um ser inocente a que não pode ser imputada qualquer agressão; aliás, muitas das situações patológicas que se costumavam aduzir a favor do A. terapêutico já hoje não oferecem perigo para a vida da grávida, devido aos progressos da medicina, sendo em larga escala, prevenir, remediar ou minorar as doenças e malformações consideradas no A. eugénico, enquanto a prática deste pode, não só inviabilizar o nascimento de crianças sãs, como potenciar o risco da geração futura de deficientes. De acordo com a doutrina ético-jurídica exposta, no caso de descriminalização do A., pertence aos profissionais da saúde o direito — e dever — natural à objecção de consciência, que à lei positiva compete reconhecer e regular com garantias de eficácia e prevenindo eventuais prejuízos para os respectivos titulares.

3. O A. na legislação portuguesa.

a) Na vigência do Código Penal de 1886, o A. era punido (art. 358º juntamente com outros crimes, entre os quais o homicídio, num capítulo relativo aos crimes contra a segurança das pessoas, abrangido, por sua vez, num título sobre os crimes contra as pessoas. O Anteprojecto de Código Penal de 1966, da autoria de Eduardo Correia, justificava a incriminação do A., atentas as concepções dominantes que o consideravam um acto ilegítimo de disposição da vida de outrem, mas acolhia a indicação médica como causa justificativa da interrupção da gravidez (A. terapêutico); quanto às demais indicações — eugénica, social e ética —, admitia que pudessem eventualmente funcionar como causas de atenuação da culpa. Numa proposta de lei do IV Governo constitucional (11.7.1979), que, aliás, não veio a ter seguimento, mantinha-se a indicação médica como causa de justificação do A.. Por sua vez, o novo Código Penal, de 1982, não adoptou esta indicação e manteve a incriminação genérica do A., passando este, porém, para um capítulo autónomo — Dos crimes contra a vida intra-uterina —, incluído no título referente aos crimes contra as pessoas. Continuava a entender-se, conforme doutrina consolidada e autorizada, que, sem necessidade de optar pela via despenalizadora, o ordenamento jurídico proporcionava recursos, como o estado de necessidade, capazes de permitir a isenção ou mitigação da responsabilidade penal em certos casos de interrupção da gravidez. Vinha-se, entretanto, intensificando em Portugal, sobretudo após a Revolução de 25 de Abril de 1974, uma campanha em favor da despenalização do A., com motivações várias e sob a égide de grupos e movimentos de diversa natureza, mormente, os partidos de inspiração marxista. A UDP (União Democrática Popular) chegou mesmo a reclamar, em projecto de Constituição, a consagração do “direito ao aborto” como “meio de defesa da família”. Desfraldada como bandeira do progressismo esquerdista e laicista, a reivindicação abortista contou com o franco apoio da intoxicação da opinião pública promovida pela comunicação social e reflectiu-se em diferentes iniciativas legislativas, até culminar na Lei nº 6/84, de 11 de Maio (Exclusão da ilicitude em alguns casos de interrupção voluntária da gravidez), que alterou o Código Penal de 1982. A Assembleia da República, que rejeitara o projecto de lei do Partido Comunista (nº 309/II, 1982) sobre esta matéria, aprovou o do Partido Socialista (nº 265/III, 1984), cujo secretário-geral era, então, Mário raros os casos em que se verifica esse risco. Como quer que seja, mesmo em tais hipóteses extremas (esgrimidas como “truque sentimental” e “cavalo de Tróia” para fazer penetrar na lei a despenalização do A.), continua a ser ilícito o A. directo. A. fortiori, é este ilegítimo quando se destine a preservar a saúde física ou psíquica da mãe, uma indicação que, aliás, se presta especialmente a utilizações abusivas. Também não se pode dispor da vida do nascituro, a pretexto de que poderá vir a sofrer de doença ou deficiência, previsão, de resto, não infalível. Por sua vez, reconhecida embora a extrema penosidade de uma gravidez resultante de violação — hipótese, aliás, raríssima —, a protecção da honra da mãe não justifica, igualmente, a supressão da vida inocente. Obviamente, a simples conveniências de ordem económico-social de modo nenhum excluem a ilicitude do A.. Estudos da maior isenção e rigor científicos mostram, de forma inequívoca, que, mesmo na perspectiva pragmática da política criminal, a despenalização do A. é contra-indicada: não só não constitui meio idóneo para os fins sociais visados, como ainda se revela contraproducente. V.g.: não faz baixar o número de abortos clandestinos (com os correspondentes riscos de morbilidade e mortalidade maternas) e acarreta um aumento do número total de abortos; não impede que as pessoas de maior capacidade económica continuem a dispor de mais facilidades na prática do A., incluído o recurso ao chamado “turismo abortivo”; a indicação terapêutica deixa de ter pertinência em muitos casos, além de que o A., em vez de prevenir danos à integridade física e psíquica da mulher, os provoca e agrava; por seu turno, o A. ético não resolve os problemas psicológicos e morais derivados do crime sexual, antes os aumenta com as consequências traumatizantes do próprio A.; medidas positivas conseguem, Soares. Requerida pelo Presidente da República (Ramalho Eanes) a fiscalização preventiva da constitucionalidade do respectivo decreto, o Tribunal Constitucional (ac. nº 25/84 de 19 de Março, cujo relator foi o Cons. Costa Aroso) entendeu não se pronunciar pela inconstitucionalidade, tendo votado vencidos cinco dos seus treze juízes. Solicitada, mais tarde, pelo Provedor de Justiça (Cons. Pamplona Corte-Real) a declaração da inconstitucionalidade da Lei nº 6/84, com fundamento em violação da disposição constitucional (art. 24º) que garante o direito à vida, o referido Tribunal (ac. nº 85/85 de 29 de Maio, relatado pelo Cons. Vital Moreira) não atendeu o pedido, declarando-se vencidos seis dos seus membros. Prevaleceu a opinião de que, embora a Constituição proteja o bem da vida humana intra-uterina, tal não corresponde ao reconhecimento de um direito fundamental da pessoa, sendo de admitir que aquele bem tenha de ceder a outros constitucionalmente garantidos, maxime, como direitos fundamentais (direitos da mulher à vida, à saúde, ao bom nome e reputação, à dignidade, à maternidade consciente), segundo critérios definidos pelo legislador ordinário, dos quais se não exclui a hipótese despenalizadora do A.. Em suma, o Tribunal Constitucional optou por uma solução “despersonalizadora” do nascituro, recusando-lhe o reconhecimento do direito fundamental à vida e a garantia da consequente tutela penal; limitou-se a admitir a ideia vaga de um “bem objectivo”, a vida intra-uterina, sem o encabeçar no seu titular (como se existisse a vida em si e não o sujeito vivente) e sem o dotar de efectivo amparo constitucional. É evidente que esta orientação rompe clamorosamente com as exigências de igualdade conaturais à relação jurídica como relação de justiça, fazendo prevalecer a lei do mais forte contra o mais fraco.

b) A Lei nº 6/84, embora mantendo o princípio da punição penal do A., veio excluir a sua ilicitude, segundo um regime de indicações (terapêutica, eugénica e ética) e prazos, em certos casos. Assim, é afastada a punibilidade do A. (art. 140º do Código Penal) “efectuado por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina: a) constitua o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida [neste caso, independentemente de qualquer condicionamento temporal]; b) se mostre indicado para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez; c) haja seguros motivos para prever que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação, e seja realizado nas primeiras 16 semanas de gravidez; d) haja sérios indícios de que a gravidez resultou de violação da mulher, e seja realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez”. A verificação destas circunstâncias depende de certificação médica e, ainda, no caso do A. ético, de participação criminal da violação. A mulher grávida, cujo consentimento, em certos termos, é dispensável, pode solicitar a interrupção da gravidez nos estabelecimentos acima referidos. Aos médicos e demais profissionais de saúde é assegurado, quanto à prática do A., o direito à objecção de consciência, garantido, aliás, em termos gerais, como direito fundamental, pela Constituição (art. 41º, nº 6). Com a revisão do Código Penal pelo Dec.-Lei nº 48/95, de 15 de Março, a despenalização do A. passou a ser contemplado pelo art. 142º (Interrupção da gravidez não punível) daquele Código: esta disposição manteve, no essencial, as indicações e os prazos da Lei nº 6/84, mas onde se referia, como causa da gravidez, à violação da mulher, passou a indicar o “crime contra a liberdade e autodeterminação sexual”. Esta legislação, além de criticável à luz dos critérios doutrinais expostos, suscita ainda, a outros títulos, sérias reservas: a ambiguidade e fluidez da indicação terapêutica e a dificuldade de controle dos respectivos pressupostos, com o risco inerente de alargamento excessivo da despenalização; a fixação arbitrária de prazos, que não só tem em devida conta o facto da existência do ser humano desde a fecundação, como não assenta em bases plausíveis relativamente às várias indicações e à protecção da vida e à saúde da mulher grávida; o recurso a formulações elásticas (“grave e irreversível lesão”, “grave e duradoura lesão”, “seguros motivos para prever que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação”, “sérios indícios de que a gravidez resultou de violação da mulher” ou de “crime contra a liberdade e autodeterminação sexual”) que geram situações de insegurança e se prestam a uma manipulação abusiva; o facto de o regime da decisão sobre o A. não salvaguardar devidamente os interesses em jogo (privatiza-se essa decisão, subtraindo-se aos tribunais, marginaliza-se o pai, deixa-se nas mãos da mãe um amplo poder de vida e morte sobre o filho); etc. O Episcopado português, baseado em princípios de ética natural e de ética cristã, criticou incisivamente, em sucessivos documentos das décadas de 70 e 80 (12.2.1975; 5.2.1976; 18.11.1977; 6.2.1981; 6.2.1982; 28.10.1982; 5.1.1984; 31.1.1984; 17.2.1984; 3.5.1984), as iniciativas em favor da despenalização do A.; denunciou como iníqua a respectiva legislação, com a qual o Parlamento ultrapassou a democracia, degradando-a e corrompendo-a, e proclamou o dever de resistência por todos os meios legítimos, com uma particular chamada de atenção para a necessidade de definição urgente do estatuto da objecção de consciência.

BIBL.: AA.VV., Difesa del diritto alla nascitaQuaderni di Iustitia, Milão, 1975; Niceto Blázquez, El aborto. No matarás, Madrid, 1977; C.E. Traverso, La tutela costituzionale della persona umana prima della nascita, Milão, 1977; Gabriel del Estal, Derecho a la vida e institución familiar. Aportación critica al desarrollo de la nueva Constitución española, Madrid, 1979; O.G. Savagnone, El aborto. El ocaso de la persona, Madrid, 1980; J. Marías e outros, En defensa de la vida, Madrid, 1983; J.A. Silva Soares, “Aborto”, em Polis. Enc. Verbo da Sociedade e do Estado, I, Lx., 1983, cols. 13-36; F.J. Velozo, A Propósito do Crime do Aborto, Braga, 1983; A.M. de Almeida Costa, “Aborto e direito penal. Algumas considerações a propósito do novo regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez”, em Revista da 0rdem dos Advogados, Lx., 44, III, Dez. 1984, pp. 545-625; F.J. Herrera Jaramillo, El derecho a la vida y el aborto, Pamplona, 1984; J. Ortego Costales, La legalización del aborto, Salamanca, 1985; P.J. Villadrich, Aborto e Sociedade Permissiva, São Paulo, 1987; L. Lombardi Vallauri, Terra. Terra del Nulla, Terra degli uomini, Terra dell’Oltre, Milão, 1990; M. Schooyans, L’Avortement: enjeux politiques, Longueil, Quebeque, 1990; M. Bigotte Chorão, O Problema da Natureza e Tutela Jurídica do Embrião Humano à Luz de Uma Concepção Realista e Personalista do Direito, Lx., 1991; id., Direito e Inovações Biotecnológicas (A Pessoa como Questão Crucial do Biodireito), Lx., 1994; Conferência Episcopal Española, El aborto (...), Madrid, 1991 (trad. port., Lx., 1993); D. Tettamanzi, Bioetica (...), Casale Monferrato, 1992; A. Ollero Tassara, Derecho a la vida y derecho a la muerte. El ajetreado desarrollo del art. 15 de la Constitución, Madrid, 1994; E. Sgreccia, Manuale di Bioetica I. Fondamenti ed etica biomedica, Milão, 1994; Maria da Conceição Ferreira da Cunha, “Constituição e crime”, Zona Perspectiva da Criminalização e da Descriminalização, Porto, 1995.

(Da Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura Verbo — Edição Séc. XXI, Vol. I, 1998)

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