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2008/06/06

CONTA-ME COMO FOI… (21)
O PICANTE DE ENGANAR O NOVO MARIDO COM O MARIDO ANTIGO 

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A dama-madre também conhecida, entre algumas damas sem freio, desenfreadas portanto, por a “dama-velha”, apesar dos seus trinta e cinco anos, aliás completamente desinibidos… A dama-madre sentiu que se deixava pouco a pouco fascinar pelo seu antigo marido.

Por ele ou porque nele descobria um novo recurso para a sua vida, como que uma última e inesperada saída para a sua vida sem saídas?

A ponto – vamos lá – de sentir-se mesmo completamente desinteressada de sexo com ele.

Não é um paradoxo nem simples contradição descuidada…

Ele foi talvez o primeiro a duvidar, mas acabou por deixar-se convencer.

Os esforços que ela fez para consegui-lo!

E, para mais, fazê-los logrando fingir que não estava empenhada nisso…

Parece termos chegado a um mundo completamente estranho, mesmo alheio ao mundo em que vivemos ou em que julgávamos viver.

Um mundo de comportamentos desconhecidos e contagiantes, sem que por algum tempo percebamos o que nos faz mudar e donde vem essa espécie de contágio.

Apesar da imunidade que o seu convívio antigo, de vários anos de casados, deveria ter criado entre ambos, a verdade é esta: marido e mulher haviam-se entretanto deixado contagiar de nova e forte atracção mútua.

Ora espiga!

Julgarem-se aquelas duas almas curadas do que tanto por vezes os inquietara ou fizera sofrer, para descobrirem uma certa excitação que não conseguiam deixar de tomar pelo renascer do interesse antigo de um pelo outro!...

Ela, sempre desinibida, achava também naquilo o surpreendente e saboroso picante de sentir-se a enganar o marido novo com o marido antigo.

E nem por sombras tinha isso tudo o gosto de comida requentada!

Mas o mais surpreendente, sem tirar-lhe o sabor, antes pelo contrário, é que tudo se lhes afigurava inteiramente platónico, puro idealismo entre almas e entre corações… como entre os corpos.

O marido novo apercebeu-se disso e foi-lhe crescendo uma vontade furiosa de vingar-se.

Ao princípio era suportável, porque egoistamente deixou-se convencer pela ideia de que… talvez não tivesse de sentir ciúmes do antigo marido só porque este tivera sobre ela direitos de verdadeiro marido. A sua certeza religiosa, católica, de que o casamento deles não fora anulado pelo divórcio, dera-lhe de começo a ideia de que o adúltero fora, sim, ele próprio, possuindo-a a ela, uma mulher efectivamente casada com outro à face de Deus. Mas pouco durou a desculpa ou consolação. Depressa a raiva lhe voltou e de todo descontrolada, cegando-o sem lhe deixar um instante de paz e lucidez.

Percebeu ou julgou perceber que só vingando-se conseguiria sossegar.

Saiu praticamente de casa, deixou os amigos da jogatina entregues a si próprios, durante semanas, deixou também a mulher à solta, como ele dizia, e foi entregar-se ao mais descabelado furor sexual, como nunca se teria julgado capaz, sem poupar forças nem apetites, nem olhar a mulheres, novas, velhas, bonitas ou feias, apetitosas ou recalcitrantes e assim-assim.

Só lhe interessavam as medíocres vitórias do novo homem que descobrira em si, por muito desgostantes que tais vitórias até chegassem a ser.

A.C.R.

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2008/05/27

CONTA-ME COMO FOI… (20)
FIASCO DAS "NOITES CULTURAIS" 

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Não deveria tê-lo deixado escapar…

Sentia, de súbito, uma necessidade premente de falar com alguém, de confiança, dos últimos desenvolvimentos da sua vida.

Tinha de enfrentar sobretudo o grande problema lá de casa…

Os “clientes”, como ela lhes chamava, não faltavam nas reuniões de jogo bissemanais lá de casa, repito, mas aquilo estava a tornar-se rotineiro e repetitivo, com pouca graça e sem novidade alguma, apesar da paixão dos entusiastas que continuava a suscitar.

Mas sempre os mesmos, com as mesmas caras de ratões na expectativa dum bom golpe de sorte e transparentemente invejosos dos golpes que favoreciam os outros.

Todas as vezes… era sempre mais uma seca e pior que a anterior.

Tinha ela a consciência tranquila de não haver agravado nunca as coisas, mostrando-se desinteressada ou mesmo enfadada.

Só o que verdadeiramente a incomodava e chegava a transtorná-la, a ponto talvez de mostrar impaciência, era que os últimos participantes demorassem tanto a partir e ela tão ansiosa, desesperadamente ansiosa, todas as noites, não poucas vezes, por achar-se enfim a sós com o seu “borracho” de homem.

Mesmo tentando por todas as maneiras não lhe estragar “o negócio”, como ele lhe chamava, a rir para mostrar que também não levava aquilo muito a sério, mas encantado, evidentemente encantado.

Tanto que acabava sempre por rogar-lhe paciência e compreensão… Lembrasse-se ela de que tudo entre eles começara por uma noite dessas…

Não tardou muito a assentarem num compromisso.

A título experimental, garantiu ele, antes de conseguir a completa anuência da mulher.

E era disso mesmo que ela agora se arrependia, de não ter falado da situação ao primeiro marido, mesmo que em plena rua e de improviso.

Talvez, no entanto, tivesse sido melhor não ter aproveitado a ocasião para fazê-lo, de tal modo, vendo bem, ele se mostrara displicente e longe de tudo.

Quando chegou a casa, porém, foi o seu actual marido que a surpreendeu dizendo-lhe…

“Olha… queres saber quem telefonou?... Foi o teu ex… há menos de cinco minutos.”

“Não disse o que queria?”

“Não. Apenas que tem urgência de falar contigo. Pediu que lhe telefones… Não sei porquê, mas pareceu-me assunto de negócios. Não estiveste com ele na rua?... Foi pelo menos o que ele disse.”

Ela não chegou a ouvir tudo, já estava agarrada ao telefone.

Queria o seu antigo marido saber se era verdade o que ouvira dizer dos serões de jogo deles. Se era certo – insistiu – que iam substituir as sessões de jogatina por “noites culturais”. Ela percebeu que ele galhofava ligeiramente, no tom em que falava, mas deu-se por desentendida e respondeu sem fazer caso da troçazinha dele do lado de lá da linha.

Ou seriam os “complexos” dela?...

Decidiu que também o seu “ex” teria de perceber que era tudo muito sério nas “noites culturais”, tão sério ou mais do que as sessões de jogo.

“Noites culturais! Mas que pomposo para coisa tão simples e despretensiosa…” – chocarreou ela um pouco.

“Não me pareceu – respondeu ele. – Olha que já me falaram disso cinco ou seis pessoas vossas conhecidas, julgo que até vossas amigas. Há bocado é que não chegou a lembrar-me de falar-te nisso. Estavas com tanta pressa!... que não tive tempo de lembrar-me…”

“Então, o teu telefonema é para nos ofereceres a tua colaboração? Bem precisamos, que ainda me lembro, cultura era contigo… Sabias tudo, falavas à vontade de tudo e com certeza agora sabes ainda muito mais. Parece que até os nossos filhos saíram uns génios. Não é pelo meu lado, penso eu… Do que tu gostavas, em mim, era doutra coisas. E não gostavas pouco…”

Mesmo com a ajuda dele, que o actual marido não hesitou em aceitar também, aquilo foi um fiasco.

Isto é, a primeira noite cultural foi um completo fiasco.

Não admira, talvez, se o leitor concordar comigo que escolher, para inaugurar a nova empreitada, a projecção de um documentário cinematográfico da vida dos pinguins nos pólos, não parece de um bom senso por aí além…

Foi o primeiro marido que deu a ideia e fez a projecção, porque tinha a fita lá em casa e nunca conseguira exibi-la a quem quer que fosse.

Diálogo cultural é que ali também ninguém quis.

Diga-se, em qualquer caso, que a noite não foi de todo perdida, porque, mal acabou a projecção, correram todos para as mesas de jogo e foi até de madrugada.

A.C.R.

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2008/05/23

CONTA-ME COMO FOI… (19)
MAS NEM ASSIM… A SUPRACITADA DAMA… 

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Ela tinha o fogo em cada poro do corpo… e da alma. As núpcias foram de sonho… Mas, apesar dos seus “feitos” todos, dia e noite, nem assim ele lhe bastava, que mal parava de satisfazê-la, e obviamente satisfazer-se, já a sua dama estava a pedir nova continuação.

A certa altura o vigoroso moço já não sabia que mais fazer…

Ainda ensaiou certas cautelas e mesmo alguns truques que tinham chegado a afigurar-se-lhe hábeis…

Em vão.

Teve até a certeza de que em geral o efeito era contrário: a excitação dela tornava-se maior e ainda mais exigente.

Resolveu consultar um seu conhecido e amigo muito mais velho que, por isso, era capaz de guardar segredo.

O pior mal do rapaz, de algum modo, era gostar “daquilo” tanto como ela…

As “posses” é que não sobravam, que ela estava cada dia mais derrancada.

Não conto aqui os conselhos do amigo, para não me acusarem de pormenores licenciosos. Mas ainda mais por não querer igualmente ser acusado de revelar modos de acalmar fêmeas insaciáveis, mesmo cortando-lhes nas doses. Do que, aliás, ela não deixou de acabar por queixar-se às amigas, cada vez mais sedentas de pormenores, mas muito cautelosas em revelá-los, com a velha ameaça da dama amiga, sempre presente, de esfaqueá-las, sem piedade, pelas inconfidências que chegassem aos ouvidos do já agora seu marido.

Todas acreditavam que a ameaça seria rigorosamente cumprida; sabiam que a dama-chefe não falava por falar, nem se limitava ao jogo das ameaças a ver quem desistiria primeiro, como qualquer mulher primária e sem vergonha na cara.

Na verdade, todas a temiam de morte. Como ela as temia a todas. Não de morte mas de um certo fastio insuportável, isto é, suportável mas com fastio…

Até ao rapaz, mesmo ao rapaz começava a estender-se o fastio dela, e nem se lembrava de como isso podia ter principiado. Pensou que fosse pelos excessos íntimos de ambos. Também ela fez questão de reduzi-los à normalidade. Quando julgou tê-lo conseguido percebeu que ia perder o rapaz, seu marido à face de Deus e do Estado.

Por acaso, mero acaso na realidade, um desses dias cruzou-se com o seu antigo marido e pai dos dois filhos de ambos. Ela imaginou um reencontro providencial e não o deixou escapar, como de bastantes outras vezes. Sem saber como nem porquê, achou-se ela de repente a falar do seu recente casamento e a contar-lhe que as coisas iam mal. Não lhe foi difícil a ela confessá-lo, exagerando como se isso fosse indispensável para o suposto e súbito objectivo a atingir, ao ponto de se comover e o fazer sorrir a ele.

“Não rias! – implorou ela com uma espécie de meiguice – Não rias, porque pressinto que vou ficar mais só que nunca e já não sei, desaprendi completamente como seja viver só…”

Ele voltou a sorrir e apeteceu-lhe experimentar ser ainda mais cruel, mais cínico. Ali mesmo, ver até onde chegava a farsa que ela estava a representar, achava ele, julgando como sempre conhecê-la bem e seguro de que ela não teria mudado nada. Mas teve a surpresa de ouvi-la dizer quase num murmúrio…

“Sim, ouve. Não duvides. Passaram anos e mudámos ambos muito. Alguma coisa pelo menos, o suficiente com certeza. Quando já não suportar a solidão vou ter contigo e ainda vais ser tu que me hás-de salvar!”

Ele não encontrou outras palavras senão estas…

“Vai-te lixar, Margarida. Continuas a mesma brincalhona de sempre… Adeus, contigo não faço farinha… Nem tu comigo, caríssima.”

E desapareceu a acenar-lhe adeus já de longe e ela a ver-lhe ainda o mesmo sorriso no rosto, cada vez mais distante e esbatido.

A.C.R.

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2008/05/20

CONTA-ME COMO FOI… (18)
A VIOLAÇÃO DE FACTO DUM MENOR 

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O certo é que, passados poucos dias, soube-se pela boca dos próprios que iam casar!

Os sorrisos irónicos com que a notícia foi recebida correram como rastilhos de rosto em rosto, por todo o concelho e concelhos limítrofes, onde os figurantes não eram desconhecidos.

Ele ia fazer apenas dezassete anos e ela não passara ainda dos trinta e cinco.

Mas, de certo modo, conseguiram não dar escândalo, pelo menos naquilo que certas pessoas mais podiam temer ou desejar que o dessem.

Ele, como se sabe, não tinha ninguém de família a quem precisasse de prestar contas e ela, a “dama”, há anos que se livrara dos dois filhos do seu único matrimónio, mandando-os, primeiro, estudar para Lisboa e, depois, incitando-os a fixarem-se muito mais longe, no estrangeiro transatlântico, onde se sabia que o trabalho de ambos era muito estimado. Pelo menos era do que a mãe mais se orgulhava, a luzirem-lhe os olhos do seu puro amor materno sem mancha e naturalmente muitíssimo envaidecido… Além de algumas vezes enraivecido, de ciúmes...

Um dos rapazes era mesmo ligeiramente mais velho que o novo marido-amante da mãe e ambos duas estampas de mocetões, de que ela exibia as frequentes fotografias às amigas, para ouvir-lhes as apreciações que elevavam o seu orgulho ainda mais ao rubro.

Mas com o casamento, juntara a esse outros motivos grandes de orgulho…

Uma casa como o solar do novo marido sempre fora um sonho dela, sonho que jamais esperara concretizar tão completamente e – vá lá! – tão cedo.

“E para mais – segredava-lhe a amiga mais ousada e com menos papas na língua -…

E para mais com um borracho destes!”

E a amiga continuava…

“Mas do que tu mais gostaste ainda, foi da cerimónia na igreja com a ida e volta e todo aquele espanto dos basbaques e invejosos! Já não te passava pela cabeça voltares a usar flor de laranjeira…”

“Sim, talvez. Espanto sobretudo das invejosas. Mas olha que ainda não me perdoaram nem vão perdoar nunca a flor de laranjeira…”

“Sabes? – retorquiu a amiga – Vê tu que eu própria tenho dificuldade ainda em acreditar. Foste uma mestraça!... Grande poça! Levares à certa um Arcanjo assim!”

“Caí-lhe no goto, que é que queres?”

“Sim, caíste-lhe no goto, todas concordamos… Mas como, Senhor! – e levantava os olhos ao céu – Que é que tu fizeste para cair-lhe no goto a tal ponto!... Sim, sim, já nos contaste…”

“Nos contaste, não! Só a ti contei, hem! Para assentarmos de uma vez por todas. Se alguém andasse por aí a contá-lo, só poderia ser porque tu tivesses andado a assoalhar os segredos meus e dele! Olha que eu não sou o padre-capelão! Mete isso bem, mas mesmo bem, nesse bestunto. Se eu alguma vez vier a descobri-lo melindrado pelas vossas línguas de trapos… Ai de vós todas, seja qual for a culpada!”

E de repente como arrependida de tanta dureza…

“Já te contei?... Ele pouco sabia da vida. Com aquele desenvolvimento todo, do homem mais completo que eu já tinha encontrado no meio das nossas aventuras todas, tu sabes… Tu sabes que ele nunca tinha estado no meio das pernas duma mulher?... Nunca to tinha dito?...”

“Não. Pelos vistos, tens sempre alguma surpresa a acrescentar, não é?... Mas essa é de topete! E vou dizer-to com toda a lealdade de tua maior amiga. Pois é certo como estarmos as duas aqui, é certo, e não mudo, que não acredito em tal topete!”

“Juro! Juro! Juro! Casto que nem uma virgem! Casto! Casto! Casto! Ensinei-lhe tudo… Tive de ensinar-lhe tudo!”

“Mas por onde tinha andado essa prenda?... O teu trabalhão! Tiveste de ensinar-lhe toda a divina arte de carícias e afagos…”

“Sim. Toda, toda a panóplia do tiro ao alvo e do encaixa, encaixa lá, que se faz tarde… Mas sem pressas!”

A.C.R.

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2008/05/16

CONTA-ME COMO FOI… (17)
DESVAIRAMENTOS DE AMOR… CEGUEIRA DE AMOR 

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Eram com certeza grossos exageros da maliciosa opinião pública de aldeias, vilas e pequenas cidades de província. Tanto assim que a visada, não só nunca precisou de indignar-se com as más-línguas, como nem sequer fez caso algum. Mais sintomático ainda...

De súbito soube-se, por línguas indiscretas doutras bandas, duas ou três léguas dali, que a dama estava perdida de amor e concupiscência por um moço de família aristrocática, com fama de extremamente bem parecido, orfão de pai e mãe, a viver sozinho com quatro ou cinco criadas e criados, à boa e feliz moda antiga de gente de pergaminhos e outros luxos, como manter dois ou três ricos cavalos.

Os criados ainda conseguiam tirar-lhe rendimentos bastantes, das melhores propriedades herdadas, para aguentar o sustento das bocas todas, deles e do amo e primos que iam lá por casa, bem como para todos se vestirem e para a conservação do bonito solar, o que não era nada coisa de somenos, tudo somado.

Ultimamente, porém, o rapaz enchera-se de brios, depois de lhe contarem a história dum camarada de nobreza, o qual conseguia arredondar proventos recebendo no seu luxuoso solar os necessários viciados no bridge. Eram partidas infindáveis até de madrugada, que o dono da casa regava generosamente com os produtos da garrafeira, acumulados pelos falecidos pais e avós ao longo de anos, mas que as visitas compensavam pagando uma taxa por cabeça, estipulada pelo dono da casa, com a adequada folga, para que todos estivessem à vontade, como em suas próprias casas.

O brasonado rapaz do solar da aldeia, a duas ou três léguas dali, tirou inspiração da história que se passava em Lisboa e, substituindo o bridge por pocker, umas vezes, outras por sueca, passado apenas um mês tinha o “casino” do seu domicílio a funcionar perfeitamente rodado. Com tanto êxito que ao segundo mês decidiu passar de uma noite de jogatina por semana, para duas, porque, com uma noite só, já não conseguia satisfazer a procura toda, que aliás não parava de crescer com pontual regularidade e cada vez mais satisfeita e mais viciada.

A demoradamente supracitada dama ouviu falar do “casino” e mexeu cordelinhos insuspeitados, até que o rapaz mestre do jogo, e bom farejador destas situações, lhe telefonou a convidá-la para uma sessão, porque, disse ele, tinha sabido por uma amiga comum do interesse dela. Ora essa! Sim, teria todo o gosto… e era uma honra irrecusável… uma grande alegria… satisfazer-lhe a curiosidade… para não falar dos tremores de ansiedade que quase a paralisavam.

“Mas eu não percebo nada de jogos de cartas!” – apressou-se ela a esclarecer, num tom de voz de completamente derretida no mesmo instante, só de ouvir-lhe “os doces murmúrios” telefónicos. Mas tudo muito varonil, como não resistiu a contar às outras damas, visivelmente a torcerem-se de inveja e ciúmes.

Calou-as e sossegou-as, fazendo-se acompanhar por duas delas na primeira noitada de visita ao “casino do rapagão”, como logo ficou conhecido entre elas o local onde ansiavam por encontrar o “tenebroso salafrário”, que só pela fama já lhes punha comichões.

O salafrário ou bisbórria tinha só dezasseis anos e algo mais de metro e oitenta e cinco, porque ainda estava a crescer, em altura e de ombros.

Ele, para mentir pouco, costumava atribuir-se dezsseis anos e meio.

A.C.R.

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2008/05/12

CONTA-ME COMO FOI …(16)
UM PADRE SEM NORTE CERTO, MAS COM BONDA! DE INIMIGOS 

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Não era a sobredita dama, nem de perto nem de longe, o que as línguas machistas, e sem qualquer noção de respeito, chegam a chamar de “uma gaja”, sossegue o leitor ou a leitora. Isto é, sosseguem principalmente as estimadíssimas leitoras, que tanto considero e venero, creiam, sinceramente o proclamo aqui, com toda a solenidade e ênfase de que sou capaz.

Outros diriam… com igual solenidade e ênfase: “para que temos lata”!

Palavra de beirões!

Ainda por cima do Interior…

A dama tinha confidenciado, com juras e tudo, a duas ou três outras damas, muitíssimo íntimas suas, sempre prontas para carregar-lhe com o peso das mais pesadas confidências… De facto já a mim próprio me pesam! Conto, não conto?... Conto, pela estima e respeito que profissionalmente devo ao leitor. Segredara-lhes ela um dia, e mais dias de seguida, certas propostas do padre-capelão, mais insinuadas que expressas, as quais indiciavam, da parte dele e segundo ela, as mais vis intenções, os mais abjectos propósitos, num despropósito pegado.

O padre-capelão jurou pela saúde e mais saúde dos sobrinhos e afilhados, os quais eram muitos e todos cheios de saúde, que a aleivosia era completamente falsa. E as coisas ficaram justamente por ali. A dama optou à cautela por não insistir, naquela altura, e o reles boato esmoreceu e rapidamente foi silenciado, até porque as damas que lhe tinham dado origem e o puseram em circulação não gozavam de fama por aí além, não obstante fazerem questão, não digo ponto de honra, de passarem por damas… de respeito e alto valor, por toda a Beira, do planalto à montanha, subidas e descidas incluídas, sem falha de uma só.

Ao passo que o padre-capelão…

Mas voltemos antes às damas.

Melhor, voltemos antes à dama, que as outras apenas fazem parte do coro privativo dela, o seu grupo coral sempre de serviço, para todo o muito e alto serviço dela.

Longanimidade nossa?

Credo!

Logo nossa!

De verdade, o padre-capelão, não obstante uma espécie de mal amanhado pedido de desculpas da parte dela, porque tudo não teria passado de um “delírio das amigas, bem intencionadas mas estúpidas”, não obstante isso, repita-se, o padre-capelão afastou-a de si quanto pôde e nunca mais quis nada “com aquela mulher”! “Aquela mulher tão solta de língua e acanhada de intelecto…” – garantia o padre.

Muito simplificadamente, foi mesmo assim que passou sempre a referir-se-lhe, enjoado e com uma ponta aguçada de desprezo, mal disfarçado de indiferença e distanciamento, se não mesmo de… cristã caridade, ou perdão resignado, como de quem mais do que isso não pode ou deve, nem mais lhe peçam, que é violentar-lhe a consciência.

Comovedor… de fazer rir as pedras.

Com efeito “aquela mulher” gozara, até dois ou três anos antes, de certa fama de fêmea fiel para com os dois ou três homens da sua vida e incapaz de um gesto ousado ou mais equívoco, que merecesse censura de cautos ou incautos.

Mas, de súbito, passara a ser notável pela variedade dos amores e pelo desplante da falta de tento na colecção sem critério que fazia deles, sucessiva e simultaneamente.

Chegou a dizer-se – com pouco exagero – que não podia ver umas calças, que não corresse logo atrás delas, pronta a derrubá-las na cama mais próxima, ou no mais próximo assento de automóvel, com desconforto e tudo, até promiscuidade e pouca higiene.

Deviam ser exageros da opinião pública e dos mirones, pois que a visada nem nunca precisou de indignar-se com as más línguas, que aliás não deixavam de chegar-lhe aos ouvidos pontualmente.

A.C.R.

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2008/04/29

Aos Produtores Florestais da Bacia do Rio Seia.
Ou duma “empresa criativa”, “incubadora” doutras empresas criativas. 

Volto a dirigir-me a Vós, como em geral aos nossos congéneres de entre o Mondego e a Estrada Nacional n.º 17, mais conhecida por Estrada da Beira.

Especificamente o faço, para falar-vos de um aspecto novo da sociedade que se pretende criar, a qual, visando a gestão conjunta das nossas florestas, pode simultaneamente ser motor empolgante para a promoção de sociedades com objectivos mais circunscritos, mais precisos e porventura até mais motivadores. Viu-se aqui, pela listagem apresentada, que o uso múltiplo da floresta compreende uma boa dúzia de actividades diversificadas, cada uma das quais poderá ser, por si, objecto duma sociedade independente e suficientemente motivada e motivadora.

Ao estimular a criação de várias empresas, para cobrirmos toda a listagem, se a empresa-mãe não entender encarregar-se directamente da exploração dalgumas ou todas as áreas dessa listagem, é fácil imaginar a empresa-mãe no papel de “incubadora de empresas criativas”, cada uma das quais com o seu projecto específico de negócio.

Mas não basta que cada objecto de negócio seja específico. De facto, a ideia que preside a toda esta concepção implica, sobretudo, que o negócio seja desenvolvido e explorado com características criativas, isto é, tirando o máximo partido de qualidades das pessoas associadas, agregadas para tal efeito: o seu dinamismo; o sentido inovador profundo e persistente; a procura constante de soluções originais, mesmo soluções de choque; a forte capacidade mobilizadora de iniciativas; a atracção notável pelo empreendedorismo; o elevado sentido comercial e visão do futuro.

À empresa-mãe caberá, tanto quanto possível, para além dos impulsos iniciais e da criação de ambiente propício às várias iniciativas, fornecer a estas alguns meios logísticos de base, como: espaço físico de funcionamento; orientações quanto às exigências a satisfazer para a criação e arranque de cada empresa; facilidades e oportunidades de formação; ajudas na elaboração de planos de negócios; estímulos ao estabelecimento de parcerias; etc.

Em suma, pretende-se fazer perceber e agir no sentido de que o mais completo aproveitamento e desenvolvimento integral da floresta, venha a ser, na verdade, um forte motor para o desenvolvimento igualmente integral da região, em todos os seus aspectos e potencialidades, conhecidas e a descobrir ou inventar.

Seia, 27.04.2008

A.C.R.

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2008/04/23

CONTA-ME COMO FOI …(15)
UM PADRE SEM NORTE CERTO, MAS COM MUITOS AMIGOS 

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Uma coisa talvez lhe valesse, principalmente.

Ele sabia, pressentia pelo menos, que queriam fazê-lo passar por idiota, exactamente por idiota, entre amigos e suspeitos e amigos que seriam pouco seguros mas outros fixes.

Ah! Mas isso… Isso não!

Ele lhes provaria quem eram os idiotas.

Não se iludia, por aí além, sobre a amizade.

Acreditava, na verdade, que muitos dos amigos nos abandonam se perdermos força ou miragens de força com que iludimos os outros.

Entre os que rodeavam, sabia-o, alguns, talvez muitos, talvez mesmo a maioria, não resistiriam ao seu primeiro sinal de fraqueza.

Sabia inclusivamente bem, como coisa certa, que nem o temor de Deus os faria hesitar.

De resto, o padre-capelão não tinha dúvidas sobre quais os que mais depressa o atraiçoariam…

Precisamente aqueles sobre cuja Fé mais reticências se lhe tinham ido formando, fosse no coração, no instinto ou na inteligência, ao longo de alguns anos.

Ainda divagava sobre tudo isso, quando ao fim de alguns minutos a rapariga abriu enfim a porta.

Apesar de a ter mandado prevenir, ela mostrou-se surpreendida.

Sempre o padre-capelão admirara a capacidade e vontade quase invariável das mulheres de fingirem o falso, sempre que lhes convinha ou com que julgavam defender-se melhor.

Dizia, não obstante esse seu juízo, que não tinha nem cultivava preconceitos sobre as mulheres.

Não tinha quaisquer reservas de relutância em repetir essa banalidade, comum à maioria dos homens-machos, tantas vezes quantas lhe agradasse ou julgasse útil ou os olhos das mulheres lho solicitassem.

Desenvolvera havia anos essa capacidade de ler nos olhos das mulheres, mas talvez principalmente, com mais acuidade, a capacidade e o gosto de ler neles aquilo que elas gostariam de ouvir da sua boca, tinha a certeza, sem a mais pequena dúvida

O padre pensava muitas vezes que isso era o verdadeiro segredo do seu sucesso com elas, mulheres, em que ele acreditava e muitos colegas e homens “do século”, invejosos, diziam acreditar também e até exploravam para as chalaças mais grosseiras.

Mas, verdade ou não, o padre-capelão acreditava no seu sucesso, garantindo, quando era preciso, que jamais abusara dele. Nem sequer em pensamento, esclarecia aos que lhe merecessem a explicação.

Tinha, de facto, fama disso, lisonjeira ou não, ou nem por isso, conforme a “limpeza” de cada uma das mentes que primavam por ter voz activa na matéria…

Havia no povoado certa dama que, no fundo da sua alma – era daquelas de quem se poderia pôr em questão que tivesse alma… – mas que, fosse como fosse, não perdoava e jamais perdoaria ao padre-capelão pô-la ao molho com os seus supostos sucessos junto das outras.

É uma história pouco lisonjeira, sobretudo pouco recomendável, mas, enfim – já se sabe – de histórias, pouco ou não muito apresentáveis, está o Inferno cheio, como a boa ou a má literatura.

O leitor há-de acabar por ter uma opinião, se é que não tem já, por força do que terá lido ou ouvido deste meu passatempo.

Vou tentar não demorar demasiado…

Não posso esquecer que os tenho, ao padre e à rapariga, “pendurados” à porta de casa dela, há já bom bocado.

A.C.R.

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2008/04/16

CONTA-ME COMO FOI …(14)
O CLERO ÀS ARANHAS, QUEM DIRIA... 

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Nem tanto, talvez.

A clerezia dali, com efeito, andava sem saber, ou hesitante, em como reagir.

Era já evidente, ou ameaçava tornar-se, uma trapalhada cada vez maior.

O padre-capelão não estava desorientado, mais que os outros, mas tinha de sobejo a perder, sentia-se portanto no centro da tempestade e não parava de pensar nisso.

Até, e sobretudo, enquanto seguia o seu programa preferido na TV, a série diária, ininterrupta, de filmes americanos de entretenimento e imaginação, mais ou menos disparatada e com pouco sentido ou nenhum, que ele fazia disparar no aparelho lá de casa, mal regressava no fim do trabalho, sempre depois das seis e antes das seis e meia.

Depois de muito observar e reflectir, era o que ele mais admirava na América e nos americanos, aquela formidável, gigantesca organização, uma incomparável indústria, para entreter, divertir, ocupar os ócios mundiais, com histórias da carochinha do dia-a-dia estadunidense, em todos os quadrantes, imagináveis e sobretudo inimagináveis.

Isso sim, mais que qualquer outra coisa, fosse o que fosse, era com isso, sim, que os americanos fascinavam, condicionavam e dominavam as inteligências e as vontades do mundo todo, todinho.

Que espantosa indústria, como não existia outra, de perto ou de longe, ou jamais existira, nem jamais viria a existir!

Sem ponta de dúvida, jurava ele a si próprio, encantado com a sua descoberta do mais surpreendente segredo da grandeza americana, que todos tinham diante dos olhos e não se davam por isso, nem parecia interessar a ninguém. Como se “servir” os americanos não tivesse sempre um preço qualquer, antes grande que pequeno, obviamente, e pago sempre, sempre a pronto e a contado.

Surpreendentemente, porém, isso iria também inspirá-lo a ele próprio, padre-capelão, e talvez proporcionar-lhe uma saída, naquele beco aparentemente sem saída do clerical imbróglio das paróquias em volta da sua… e a começar pela sua, como era justo e se lhe impunha a ele, grão-mestre daquela trama toda, não propriamente inesperada, nem imprevisível.

Santo Deus! Como aquilo lhe andava no gosto e no goto!

“Na vida – dizia ele – só há os dramas que Deus nos manda ou os que só nós ensarilhamos e inventamos. É o nosso fado. Temos de enfrentá-los de peito feito e cara alegre! Não é, amigos e camaradas distintos?...”

Pois então, se lhe calhara a ele agora aquele drama, aquele drama partilhado com a rapariga, também desta vez não tinha de hesitar, nem podia, por si e por ela, hesitar ou sequer dar a mais pequena ideia de que hesitava.

Já demorara demais.

Tinha de avançar já, para não pôr em risco a sua fama de homem decidido e de uma só cara, que bastante lhe custara a ganhar e, mais ainda, a tornar indesmentível.

Só ele sabia!

O garoto não tardava muito a nascer, que qualquer coisa podia precipitar a sua vinda a este mundo extra-uterino… – e tudo teria de estar resolvido.

“E é para já!” – empurrou-se a si mesmo.

Pediu ao colega amigo de maior intimidade que o acompanhasse naquele transe.

Só quando chegou à porta “dela”, deu pelo insólito da situação.

“Que vem este parvo fazer?” – murmurou para consigo.

“Vai-te embora, que não tens nada que fazer aqui…”

“Vai! Vai!” – insistiu mais e mais forte, como se o outro não compreendesse ou não quisesse compreender.

E o pobre do colega deu às de “vila Diogo”, sem mais demora.

Encheu o padre-capelão o peito de ar e foi direito à porta da casa onde agora vivia a rapariga.

A.C.R.

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2008/04/09

CONTA-ME COMO FOI …(13)
UM PADRE SEM NORTE 

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O povo, esse não queria acreditar e não acreditaria mesmo, não fosse o silêncio geral.

Os padres colegas do padre-capelão, esses não sabiam que fazer ou dizer naquela emergência, sem conhecerem a verdade de fonte segura.

Mas a fonte mais segura, acreditavam eles, o padre-capelão, desaparecera sem deixar rasto, isto é, rasto que se visse ou ouvisse.

Fosse como fosse, a fuga parecia incriminá-lo aos olhos de todos…

E ele, em todo o caso, preferia por enquanto, ninguém dizia fugir – porque, com o enorme respeito que lhe votavam ou haviam votado, ninguém ousava – preferindo todos chamar aquilo “esconder-se”, mesmo que tal fosse tomado por cobardia do padre-capelão.

Mas ele estaria apenas escondido, à espera do que o escândalo amainasse. De facto fora esconder-se no Paço, junto do Bispo.

Vencida a surpresa e o formidável espanto, o conselho do Bispo não foi senão um.

“Vai ter com ela e pede-lhe que case contigo. Prometeste a Deus castidade e celibato, mas o escândalo e o teu pecado – só Deus sabe! – serão menos graves que as promessas mentirosas que terás feito à rapariga. Não achas?... Pior ainda, talvez os ardis que praticaste, sem pudor, para seduzi-la. Tens de pagar. Não sei se alguma vez ela te aceitará como marido – digo-te já – mas tens de tentar… É o teu dever de consciência, acredito, e também aquilo que a minha consciência te diz, antes de mais.”

“E o tio?...” – retorquiu o padre-capelão, sem uma só vez lhe ter ocorrido a ruína que, em qualquer caso, aconteceria aos seus ambiciosos e até aí bem logrados planos de apostolado.

Mais tarde usaria isso como argumento para demonstrar a sua inocência e boa-fé, em que ele queria desesperadamente que todos acreditassem, ou pelo menos os colegas da sua maior estima e consideração.

“Mas deves falar primeiro com o tio” – recomendou-lhe ainda o Bispo.

O Bispo conhecia largamente o amor, os seus meandros e ardis, por ouvir falar dele ao confessionário, mas sabia pouco ou mesmo nada do amor propriamente dito e ainda menos das surpresas nascidas dele e dos seus enganos e desenganos, nem das suas voltas e reviravoltas, que nem ao Diabo lembrariam.

Ou será o amor uma encarnação do Diabo?

Enfim, e resumindo, o Bispo desconhecia profundamente a lógica – ou as lógicas? – do amor.

E o padre-capelão pouco mais sabia disso.

Na verdade, se o amor fosse efectivamente encarnação do Diabo, do amor saberiam eles, Bispo e padre-capelão, melhor que ninguém, isto é, saberiam eles, de facto a fundo, porque do Diabo conheciam eles tudo, ou mesmo mais que tudo, desde os bancos das salas de aulas dos seminários, desde os seus dez ou doze anos...

Portanto, é indesmentível não ser o amor encarnação do Mafarrico.

Mas de quê, então?

A.C.R.

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2008/04/04

CONTA-ME COMO FOI …(12)
UMA FAMÍLIA DESTROÇADA… EM RUÍNAS 

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Não devo protelar mais a notícia que praticamente destroçou a vida do excelente Senhor do Paço do Anjo da Guarda, a avaliar pelo estado em que o deixámos quando recebia os Senhores do Solar da Bela Vista, que foram oferecer-lhe os meios necessários para acabar de restaurar o seu Solar, destruído pelo fogo.

Cumprindo os piores pressentimentos do tio, a sobrinha dele aparecera grávida de meses!

Grávida do rapazola afilhado do padre-capelão do Solar do Anjo da Guarda, tinha de presumir-se, porque ela não confirmava nem negava, mas fazia finca-pé em que fosse o pai da criança a dizê-lo, chorando cada vez mais copiosamente.

No seu desespero, o tio não acertava de compreender o despropósito da sobrinha, como lhe chamava a criada grave da casa, que também fora ama dela enquanto pequenina.

Na verdade, estavam todos desorientados, incapazes de encontrar uma saída para o abismo em que se viam.

O padre-capelão não compreendia o afilhado; a velha ama não compreendia o rapazola nem a rapariga; o Senhor do Paço não compreendia ninguém; o rapazola encontrara um pretexto qualquer para desaparecer; e todos tinham tacitamente acordado em que nada se deixasse transpirar para fora, enquanto o imbróglio não se resolvesse ou não o resolvesse alguém.

O padre-capelão partiu à procura do afilhado e todos ficaram na expectativa de que voltasse rapidamente, com o problema resolvido.

Assim lho fez sentir também o pobre Senhor do Paço, abraçando-o fortemente à despedida, evitando as lágrimas com enorme dificuldade e muita determinação, esforço a que o excelente Senhor do Paço acabou por ceder, caindo inanimado na cama que estava mais perto.

Todos o julgaram morto, porque nem o mais pequeno sinal de vida parecia animá-lo, deixando recear que tivesse caído em coma definitivo.

Alarme falso, efectivamente, tal qual logo se veria.

Como se uma súbita decisão, incompreensível, lhe tivesse tomado conta das forças que afinal lhe restavam, o Senhor do Paço do Anjo da Guarda levantou-se dum salto, assim pareceu, e quase disparou pela porta fora, dando-se só o tempo de parar para explicar…

“Vou à procura desse garoto e do padre-capelão, que já calculo onde param!”

E tínhamo-lo todos julgado praticamente liquidado!

Não chegou a demorar-se vinte e quatro horas e foi entretanto dando notícias vagas.

Não tardou, mal regressado, a ir para a cama, onde permaneceria uma semana sem falar a ninguém.

Mas não sem antes gritar a terrível notícia à velha ama, que o julgou doido furioso.

“O Pai do nosso menino é o padre-capelão!”

A.C.R.

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2008/04/02

CONTA-ME COMO FOI …(11)
UM SACERDOTE-MODELO E MAIS QUE ISSO. 

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O pároco de Santa Comba de Seia e capelão do Solar do Anjo da Guarda, profundamente ortodoxo, surpreendia em geral os paroquianos mais informados pelas frequentes manifestações de originalidade das suas concepções dum apostolado sem peias correntes e muito reflectido.

Recusava-se, por exemplo, a privilegiar nele a juventude, embora lhe desse uma atenção muito particular e decidida, mas não maior do que dava às crianças, aos adolescentes, aos chefes de família, às mulheres, aos velhos, aos ciganos, aos imigrantes, aos deficientes, aos estudantes, aos operários, aos trabalhadores de escritórios e repartições, aos patrões, aos licenciados e dirigentes do trabalho, etc.

Sobretudo por entender como um erro grave sectorizar excessivamente, por simples pragmatismo da acção, o universo dos fiéis.

Pensava, com uma ousadia que algumas vezes não lhe era perdoada, nem compreendida, que o essencial do apostolado estaria em descobrir vocações de cristãos, se possível apaixonados da Fé, prontos a todos os sacrifícios e riscos para irradiá-la e transformar cada cristão, o mais medíocre que fosse, num incrível zelador e promotor da Fé.

Zelador era, de facto, talvez a sua palavra preferida, a que dava um sentido muito mais alargado que o corrente, para exprimir toda a ambição e alcance do apóstolo verdadeiramente grande.

Aliás costumava dizer que não podia haver apóstolos senão verdadeiramente grandes.

Assim se compreende que tivesse transformado a paróquia, antes de tudo o mais, numa singular “escola de apóstolos”, como lhe observavam criticamente os mais receosos, por não encontrarem nisso senão ambição profana a mais e pouco ou nada do que era corrente nas outras paróquias, mesmo mais importantes e com mais responsabilidades públicas que aquela.

Pior ainda entendiam isso outros mais contumazes, para quem o que o pároco pretendia era pôr a funcionar uma espécie de brigada “panzer”(*) de assalto ao indiferentismo religioso e à ignorância religiosa na paróquia!

Ele queria recristianizar a paróquia, se possível todas as paróquias à volta, e tinha uma regra: “Isto não vai com paninhos quentes!”, que os colegas a princípio não deixavam de censurar-lhe, até compreenderem que era mesmo assim.

Curioso que, sem qualquer zelo pela defesa das áreas das suas próprias responsabilidades, alguns foram os que procuraram imitá-lo ou segui-lo. Diga-se que chegando mesmo a dispor-se para uma espécie de federação apostólica de paróquias, com vista a acções de apostolado em comum ou, pelo menos, sob a orientação e coordenação do colega que lhes merecia tanta confiança que nem como líder haveria de desmerecê-la, estavam certos e seguros. De tal feição que, em vez de invadir-lhes os terrenos de acção respectivos, seguramente os levantaria mais alto e mais depressa, até aos olhos do Bispo e sua Cúria, lá na Guarda.

O padre-capelão fazia-os efectivamente sonhar mais grande, mais alto e mais longe, sem na verdade ter nada a ver com os sonhos dos colegas, que eram sobretudo mundanos, parecia-lhe às vezes.

Reflectiam, de algum modo, apenas os sonhos de grandeza do Bispo que, na sua Diocese, só no padre-capelão encontrava alguém à altura da sua imaginação, da sua visão eclesial, gostava o Bispo de supor e de acreditar naquilo que supunha.

Um dos seus padres da Cúria, do seu círculo mais estreito, sem fazer grande segredo, “é que o topava”, como constava entre os colegas.

Segundo esse padre, ao Bispo já não chegavam os limites da sua pobre Diocese da Guarda e ele gostaria demasiado de estender os olhos para os horizontes de Salamanca, subindo com frequência ao alto da torre sineira da imensa Sé-Catedral, voltada nada menos que precisamente para Salamanca, sede da formidável Diocese… em Espanha.

Se na Europa desapareciam fronteiras entre países, porque não desapareceriam entre dioceses?...

Pudesse dispor de fundos excedentários do riquíssimo Santuário de Fátima!... – alegava, muito a sério, o tal padre da Cúria episcopal, suposto conhecedor dos mais íntimos sonhos do seu Bispo… Talvez, com isso, o Bispo conseguisse mexer as pedras necessárias para anexar umas tantas paróquias de Salamanca, mais próximas da Guarda…

Mas deles, desses fundos, mal chegavam à Guarda umas tristes migalhas.

O Bispo tinha sido ordenado presbítero porque um padrinho o ajudara nas despesas do seminário e roupa, iam já passados bons quase quarenta anos…

Mas o micróbio da ambição eclesial não o abandonara ainda, ou não se gastaria jamais, acreditava também o seu fiel padre da Cúria.

Agora tinha aquele pesadelo expansionista de Salamanca, aos olhos de alguns de certo modo irónico… é bem de ver, mas, no fundo, não eram poucos os que acreditavam nas fantasias aloucadas do padrezinho.

A.C.R.


*Alusão às brigadas de tanques alemães que invadiram a Europa em 1940 e 1941 e que ficaram famosas por serem irresistíveis e tudo destruírem na passagem.

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2008/04/01

“Memórias das Minhas aldeias…”
Lacunas que vou descobrindo. 

Tantas, com certeza, que se Deus me der vida e saúde descobrirei ainda!

Se é que de lacunas da memória se pode falar, num texto de pura ficção.

Não foi a memória que falhou mas a imaginação criativa do autor.

Posso lamentar falhas criativas, não falhas de memória.

Reflecti nisto ao ler, na revista “Pública” desta semana, um texto de Joana da Cunha Ferreira sobre um negreiro negro de São Salvador da Bahia, Dom Francisco Félix de Souza, que terá ganho o direito ao “Dom” pelo enorme êxito do seu comércio de compra e venda de escravos negros, a partir do reino de Daomé, no Benim, costa de África.

Nasceu ele, pelas minhas contas, em 1758, tendo morrido, pela certa, em 1849, com 91 anos, portanto.

Deixou não se sabe quantas mulheres, mas 63 filhos homens, um número indeterminado de filhas (muitas, seguramente), grande fama de homem digno que atravessava o Atlântico, do Benim à Bahia e vice-versa, bem como uma fortuna correspondente à grandeza da sua família e negócios.

A autora do artigo vem-se esfolando, segundo conta, para encontrar dados e tempo que lhe permitam realizar um documentário cinematográfico sobre o seu herói e respectiva família.

Mas o que ela conta, no pequeno texto da “Pública”, foi o suficiente para me interessar e entusiasmar mesmo pela vida de D. Francisco Félix de Souza, comerciante de enorme sucesso a vender aos brancos os homens e mulheres da sua raça.

Foi no romance dum escritor americano, Bruce Chtwin, “O Vice-Rei de Ajudá”, que Joana da Cunha Ferreira descobriu a história de Dom Francisco de Souza, “cuja aliança estratégica com os reis das tribos do então reino do Daomé o tornaram o mais influente senhor local, com o monopólio sobre o comércio de escravos” – escreve ela.

Se tivesse sabido, em tempos e a tempo, da existência do que terá chegado a ser “o maior negreiro da Costa dos Escravos”, tê-lo-ia feito personagem das Memórias das Minhas Aldeias, quando trato precisamente dos portugueses de Portugal e das nossas colónias de Angola, Reino do Congo (protectorado), Cabo Verde, Guiné e Costa da Mina, no pujante negócio de escravos entre 1750 e 1860. Tinha vindo mesmo a calhar.

A.C.R.

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2008/03/31

CONTA-ME COMO FOI …(10)
UMA FAMÍLIA DE GRÃO-SENHOR 

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O Senhor do Anjo da Guarda vivia com uma sobrinha que era todo o seu enlevo. Com os seus dezoito anos, a rapariga atingira o mais alto grau do poder de sedução que uma rapariga daqueles sítios pode atingir e era já o objecto secreto, outras vezes não, de muitos galãs da sua idade, e mais velhos, daquelas aldeias. O velho Senhor do Solar do Anjo da Guarda percebia isso, e vigiava-lhe apertadamente os mais pequenos passos, ainda que nunca tivesse chegado a ter razões para suspeitar de que ela desse especial atenção fosse a qualquer deles que fosse.

Mesmo assim, a vigilância dele não desarmava, porque, se acreditava religiosamente poder confiar na excelente formação da moça, era forçado, recordado até da sua própria adolescência e mocidade, a desconfiar incansavelmente dos atrevidos que lhe rondavam a casa, desde os doze ou treze anos dela. Até com serenatas, fosse qual fosse o pretexto. Os anos dela; os anos do tio; o obstáculo vencido dum qualquer exame escolar de maior risco; o dia universal das raparigas; o dia da santa padroeira do seu nome; o aniversário do baptismo, rigorosamente festejado em casa como o dia do nascimento “para a vida da alma”; o dia da espiga, por ser o dia de festa das colheitas e porque os rapazes achassem que jamais por aquelas aldeias se colhera flor mais formosa, mais enternecedora… mais apetecida; etc., etc.

Mas o velho tio, apesar da ousadia deles e dos disfarces com que sabiam embelezar ou esconder os seus desejos, estava convencido de que também disso percebia mais que os rapazes todos juntos e tudo, de facto, conseguira fazer, até então, para frustrar-lhes os ímpetos e as garotices às vezes um tanto acanalhadas.

Inspirava-lhe mais dúvidas e algum temor o afilhado do padre-capelão, um garoto da idade dela, em quem o padrinho depositava muita confiança, mas que às vezes, com a bênção do padrinho, se permitia ir lá pelo Solar, aproveitando à rente o mais pequeno e insignificante pretexto.

Mas os pretextos, na verdade, não eram muitos e o Senhor do Anjo da Guarda até tivera, nalguma altura, uma conversa com a sobrinha sobre o rapaz, a tirar “nabos da púcara”, tendo ficado mesmo francamente mais sossegado, convencido de que também ela via no rapazola nada mais que outro insignificante, incapaz de alguma vez a seduzir. Mais: o certo até seria que a rapariga não engraçava nada com o moço, é certo que um rapagão, e que estava muito mais próxima de desprezá-lo completamente que de outra coisa qualquer.

De tal sorte que, com alguma ingenuidade, possivelmente, o tio sentira mesmo uma certa necessidade de revalorizar um tanto o rapazola. Sem forçar demais a nota, claro, não fosse o Diabo tecê-las. Mas lembrando à sobrinha que, fossem quais fossem as reservas que o rapazola bem merecia, também era justo creditá-lo do grande apoio que prestava ao padrinho, o padre-capelão, nas tarefas do apostolado da paróquia a que o padre se entregava com tanta paixão e fidelidade ao seu sacerdócio em Cristo, que era o pároco daquelas redondezas alargadas mais querido e mais admirado e da devoção de todos os fieis, sem excepção.

A rapariga achou os reparos pertinentes e até passou a tratar o rapazola algo menos agrestemente.

Mais uma vez teve o tio ocasião de louvar-lhe o bom senso e a docilidade para compreender e acolher os conselhos, de experiência feitos, dos mais velhos.

Porém o que mais consolava o velho Senhor era a ocasião que não perdera de mais uma vez prestar justiça ao seu grande e muitíssimo prezado e admirado amigo, o padre-capelão da sua Casa e prior da paróquia da aldeia, conhecida como Santa Comba de Seia, para se distinguir de Santa Comba-Dão.

A.C.R.

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2008/03/28

CONTA-ME COMO FOI …(9)
PORQUÊ A ARISTOCRACIA DOS MAIS RICOS 

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Faço a pergunta porque no texto anterior desta série a que pus esse subtítulo, o n.º 8, nada parece deixar supor que isso tenha a ver, directa ou indirectamente, com a aristocracia de mais ricos ou com aristocracia de menos ricos.

Mas então as principais figuras surgidas no texto não é que vivem todas em solares!

É verdade, sim. Mas isso, só por si, não faz deles necessariamente figuras da chamada aristocracia. Como se sabe, o País está cheio de solares habitados, cujos moradores, em muitos casos, até haveriam de rir às gargalhadas se por isso os considerassem da nobreza…

Quer dizer que, também neste caso, o hábito não faz o monge?

Bem… não… não é só isso. De facto o que conta são os gestos. E tu, leitor, pareces não ter reparado na verdadeira aristocracia deles… isto é, na verdadeira aristocracia dos seus gestos!

Repara só, se tens pachorra… E já tens dado provas de muita!

Não foi de verdadeiros aristocratas o gesto dos Senhores da Bela Vista, pondo o dinheiro produto da venda dos seus quadros, que valiam mais que todo resto dentro do Solar, à disposição incondicional do Senhor do Anjo da Guarda, para acabar de reconstruir o Solar dele, ardido inteiramente no famoso e formidável incêndio florestal de Setembro de três anos antes?

Queres gesto mais nobre do que este, feito sem os seus autores porem quaisquer condições nem exigirem quaisquer garantias para a sua consumação?

E mal sabiam eles em que péssima hora da vida do Senhor do Anjo da Guarda os Senhores da Bela Vista lhe estendiam a mão.

A tal ponto que se pode dizer que, nessa hora, para o Senhor do Anjo da Guarda, reconstruir, acabar de reconstruir ou não acabar de reconstruir era o menos importante de tudo, na vida daquele homem!

O casal da Bela Vista não poderia adivinhar, mas talvez as lágrimas de agradecimento do Senhor do Anjo da Guarda, que tanto os haviam comovido, mais do que causadas pela generosidade deles, poderiam estar ainda mais relacionadas com um drama por que, desde poucas horas antes, o frágil homem do Solar do Anjo da Guarda estava a passar, num sofrimento para lá de toda a imaginação.

Vou contar-lhes e verão, com certeza, que não exagero.

Não porei minimamente tintas da minha paleta literária.

Conto exclusivamente com as tintas naturais e inerentes aos factos apurados.

Julgo que nem saberia fazer doutro modo.

A.C.R.

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2008/03/27

Proclamação aos Proprietários Florestais (cont.ão) 

O nosso grupo que aqui lançou há poucos dias a assim chamada “proclamação aos produtores florestais” está em fase de analisar as reacções dos leitores e de descobrir as inevitáveis insuficiências de um texto que nasceu e foi escrito de um jacto, podemos dizer.

É manifesto, primeiro, que não deveríamos deixar de ter já esclarecido que os proprietários florestais interessam ao projecto de sociedade, sobre que nos dirigimos a eles, em duas qualidades, além de que nos interessam igualmente em ambas as qualidades: como potenciais sócios da empresa e como potenciais utilizadores – contratadores dos serviços que ela venha a produzir e a fornecer.

Mas nada impedirá que proprietário aderente à empresa venha a ser simultaneamente sócio da empresa e consumidor/cliente/contratador dos seus serviços, como parece óbvio.

Também na “proclamação” não se falava da modalidade de empresa que se quer formar.

Não uma sociedade cooperativa, naturalmente, pelas grandes limitações dessa forma, que dificilmente assegurariam ao empreendimento o carácter expansionista e audacioso, de crescimento contínuo nas suas ambições e na escala e dimensão que se lhe vai exigir.

Uma sociedade comercial, portanto, das modalidades correntes, sociedade por cotas, sociedade anónima, sempre de responsabilidade limitada, evidentemente.

Mas se esperamos e se desejam muitos sócios, umas largas dezenas, no mínimo, o caminho mais adequado talvez seja o da sociedade anónima…

E quanto ao nome a registar da sociedade?

Temos várias sugestões, mas ainda não estabelecemos uma preferência, nem sequer ainda houve debate suficiente para o efeito, entre nós.

E o nome pode representar muito. Às vezes é meio caminho andado para o completo sucesso.

Um Grupo de
Produtores Florestais

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CONTA-ME COMO FOI …(8)
A ARISTOCRACIA DOS MAIS RICOS 

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Nunca mais a família e Senhores do Solar do Anjo da Guarda teriam deixado de fazer constar, segundo a opinião pública e seus mentores, que o Solar deles ardera, porque… porque sacrificado pelos bombeiros para acorrerem a salvar o Solar em frente, do outro lado do rio, o Solar da Bela Vista.

Aleivosia tão incompreensível, pela forma como tudo efectivamente se passou e aqui relatei, veio a tornar-se insuportável lenda acusatória para os bombeiros e os proprietários. Tão insuportável que os Senhores da Bela Vista se decidiram a sacrifícios heróicos para ajudar financeiramente os donos do Anjo da Guarda a reconstruir e reequipar o seu Solar, completamente ardido, apesar dos testemunhos, inutilmente repetidos, de muita gente que acompanhara de perto o essencial dos acontecimentos.

Em vão.

Conta-se o último e maior desses sacrifícios, para se ver a grandeza daquela gente.

Havia lá no Solar alguns bons ou excelentes quadros de pintores de grande plano do séc. XIX, tempos ainda de relativo fausto da família. Já tinham sido mais numerosos esses quadros. Mas, com as dificuldades económicas crescentes, vários tinham sido vendidos, em leilão ou directamente a oportunistas e espertalhões, numa tal escala que a família tinha decidido disfarçar o descalabro, substituindo os quadros vendidos mais prestigiosos por cópias de qualidade, confessadas apenas aos mais íntimos e compreensivos das circunstâncias.

Mas isso é secundário.

Realmente importante é o destino que a certa altura os Senhores da Bela Vista deram a dois dos quadros mais notáveis que lá tinham ainda, como gesto capaz de absolvê-los de faltas e costumes bem mais graves do que aqueles que por vezes lhes assacavam, aliás em geral dificilmente verídicos ou verificáveis.

Por mais de uma vez haviam os Senhores da Bela Vista sido sondados, até com ofertas generosas, para venderem os dois quadros. Sempre tinham recusado porque aqueles eram, talvez, exactamente os mais preciosos sentimentalmente para a família. Tratava-se de dois retratos a óleo pintados por Columbano. Um do Eça e o outro do antepassado de finais do séc. XIX que os encomendara e que mantivera relações de muita intimidade com os Vencidos da Vida e ainda mesmo, vinte e tal anos depois, menos explicavelmente, com alguns dos expoentes prometidos à maior glória, do próprio Orfeu, incluindo Pessoa e o Amadeu Sousa Cardoso.

Verdade, verdadinha, com os significativos milhares de contos da venda dos dois retratos das mãos de Columbano, os donos da Bela Vista apareceram uma tarde ao Senhor do Anjo da Guarda, ainda em fase de lenta, lentíssima reconstrução, exigindo-lhe, sim, de facto exigindo-lhe, que… que aceitasse o empréstimo daquele montante para acabar de reconstruir e reequipar, depois, o seu Solar do Anjo da Guarda. Pagaria ele o empréstimo – veja-se a generosidade – se alguma vez pudesse, quando pudesse, nas fracções que quisesse e sem a menor pressa.

“Só assim – declaravam eles – nos sentiremos aliviados das infâmias da opinião pública…”

O Senhor da Bela Vista que havia de fazer, senão aceitar?

Mas fê-lo quase de joelhos, beijando as mãos à Senhora e até mesmo ao marido e sem conseguir esconder as lágrimas da sua gratidão “sem limites”, como ele garantia, aos soluços.

Não é difícil acreditar e compreender, pois não?

Também não haja dúvida de que o mercado de obras de pintura, em Portugal, se ainda não era o que viria a ser vinte ou trinta anos depois, já começara a crescer e a impor-se muito significativamente…

A.C.R.

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2008/03/14

CONTA-ME COMO FOI …(7)
À MEMÓRIA DOS MÁRTIRES DOS INCÊNDIOS FLORESTAIS 

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O último grande incêndio desse Verão aconteceu ia o Outono a querer começar, nos primeiros dias de Setembro, numa altura e em condições que os entendidos optimistas até já considerariam nada propício à dimensão que aquele fogo atingiu.

Começou o incêndio onde não se esperaria, na Quinta da Bica, à beira do rio Seia e perto da sua nascente, na margem direita, em zona que se diria exemplarmente acautelada pelos seus proprietários altamente responsáveis e conscientes dos seus pergaminhos e obrigações na prevenção dos fogos; atravessou a estrada da Beira e, em vez de seguir para os lados de Pinhanços, que também abundavam em proprietários responsáveis e impecavelmente zelosos, que seguramente se esfalfariam para detê-lo; seguiu o fogo direito à Vila Chã, destruindo, no caminho, muitas casas da Aldeia de São Miguel, e foi atravessar a estrada para Nelas, já próximo de Paranhos e Tourais, com um salto inacreditável pelas alturas das copas dos pinheiros, antes de atravessar para a margem esquerda, como se tivesse primeiro de acabar o trabalho encetado na margem direita!

E que trabalho era?

O povo disse que o fogo tinha de acabar de dar sumiço ao Solar do Anjo da Guarda, que já estava a arder e acabaria completamente destruído pelo fogo em pouco mais de três quartos de hora, ao todo!

O povo acreditava que era o castigo esperado e compreensível para um velho desentendimento entre Deus e o dono do solar, por pecados seus da juventude e outros menos antigos.

O velho senhor dono do solar da margem direita do rio, cheio de artrose, praticamente cego e também surdo, quase de todo inutilizado, salvou-se apesar de tudo. Povo e não povo todos achámos que sim, que de facto só um milagre.

Dir-se-ia um sonho mau, péssimo, o pior possível, mas custava a acreditar que tudo aquilo tivesse sido, em todo o caso, mais que um sonho.

Os bombeiros não queriam acreditar.

O fogo começava a parecer exausto, mas ai dos bombeiros que, estoirados, completamente desfeitos, sem saberem para que lado voltar os poucos esforços que ainda tentavam opor à corrida das chamas, ai dos bombeiros se esperavam que o rio detivesse a fúria assassina delas, a descerem aquelas encostas até ao rio, como se o vento que soprava forte não tivesse outro propósito senão esse de enganar os “soldados da paz”.

Foi a ilusão de pior memória que alguma vez terá tomado conta das vontades e cabeças de bombeiros e corporações de bombeiros de toda a Beira Alta!

Do outro lado do rio avistava-se mais um solar, ainda mais belo e mais imponente que o do Anjo da Guarda.

Era urgente evitar que o fogo atravessasse o rio lá baixo, no ponto certo para chegar em poucos minutos ao outro solar do lado de lá do rio e, em poucos quartos de hora, destruí-lo igualmente.

O comandante apercebeu-se do perigo e, com as coisas controladas do lado de cá, mandou que três bombeiros menos ocupados, descessem até à passagem que parecia de propósito para facilitar o salto do rio pelas chamas.

Eles foram sem hesitar, dir-se-ia que alegremente até, porque começavam a sentir-se menos úteis nos seus lugares. E foram postar-se lá baixo, ao pé do Seia, de vigilância atenta à passagem do rio e às chamas que de longe desciam aproximando-se a maior velocidade do que eles tinham suposto.

Mas continuaram ainda assim seguros de si e cegamente determinados.

De tal modo que, lá chegadas, as chamas os enrolaram sem eles perceberem como. Quando deram pela gravidade da armadilha em que haviam caído, era tarde e já não tinha remédio.

Foram as primeira e únicas vítimas dos fogos aquele ano, para salvarem um solar que era e é monumento nacional, mas muito pouco ou nada lhes dizia, afinal.

Só puro e heróico profissionalismo.

A.C.R.

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2008/03/11

Proclamação aos Proprietários Florestais
 

Nós, Produtores Florestais, Queremos Gerir, Defender e Promover, Nós Próprios,

Os Nossos Projectos para a Floresta, Que Entendemos Serem os Mais Adequados.


Explorar racionalmente e a fundo a floresta e os terrenos florestais é o grande e essencial objectivo da empresa que nos propomos criar e promover, com o maior número de proprietários do concelho de Seia.

A floresta e os terrenos florestais não se esgotam na exploração da madeira, lenha e resinas.

Há muitas outras vertentes a explorar.

1. Pode-se cultivar cogumelos comestíveis;

2. Ou plantas medicinais e aromáticas;

3. Fazer apicultura em larga escala;

4. Explorar a pastorícia e a criação de gado;

5. Organizar sistematicamente a produção de lã de ovinos e caprinos;

6. Aproveitar a biomassa (resíduos florestais) na produção de energia e adubos naturais;

7. Recuperar, para “turismo de habitação em espaço florestal” (THEF), ruínas de antigas casas, de caseiros por exemplo;

8. Lançar actividades de lazer e desportos radicais;

9. Criar ambiente para actividades turístico-culturais;

10. Desenvolver locais e equipamentos para restauração e hotelaria;

11. Promover a pesca desportiva em lagoas artificiais;

Etc.

Do rio Mondego à Estrada da Beira e dos limites do concelho de Oliveira do Hospital aos limites do concelho de Gouveia, limites nos dois casos com o concelho de Seia, são entre 15.000 e 20.000 hectares, onde se contam mais de 5.000 prédios rústicos, pertencentes a dois ou três mil proprietários, numas dez freguesias, das mais importantes do concelho de Seia.

Pensamos haver condições excepcionais para se criar uma empresa que, remunerando os proprietários e com a sua autorização, explore nesse espaço algumas, bastantes ou mesmo todas as vertentes de actividade enumeradas acima, conforme os donos dos prédios rústicos em causa decidirmos, nas assembleias-gerais de sócios da empresa que vamos promover.

Será, se assim quisermos, o maior projecto de desenvolvimento agro-florestal-pecuário na região, desde sempre.

As vias de desenvolvimento propostas poderão, nos primeiros cinco anos de funcionamento, crescentemente intenso, da sociedade, implicar investimentos superiores a dez milhões de Euros; mas também a criação de mais de trezentos postos de trabalho permanente, a maior parte a preencher com mão-de-obra de qualificação técnica média e superior.

Por outro lado, cerca de metade ou mais daquele investimento será feito na defesa e melhoria da floresta, portanto coberto a 90% por subvenções públicas, se a legislação actual dos apoios do Estado à floresta se mantiver em vigor, como parece mais provável.

A propriedade de terrenos florestais ou florestáveis, que hoje, na zona em questão, não se transacciona, em média, a mais de mil Euros o hectare, deverá beneficiar duma importante valorização, que se admite possa ir para entre o dobro e o triplo daquele montante, pelo menos, até ao fim dos referidos primeiros cinco anos da empresa, quando, aliás, o rendimento dos investimentos a fazer, nesse período, estará naturalmente bastante longe ainda do seu máximo.

Excessos de optimismo?

Não se pensa que o sejam, pois que os produtos a resultarem dos investimentos nas vertentes listadas – madeira, lenhas e resinas; cogumelos comestíveis; plantas medicinais e aromáticas; mel e cera de abelhas; pastos para gado, bem como carne, leite e lãs; energia, sob a forma de briquetes, e adubos naturais; casas recuperadas para THEF; actividades de lazer e desportos radicais; promoção de atractivos turístico-culturais; iniciativas de restauração e hotelaria; pesca desportiva em lagoas artificiais; etc. – tudo isso são produtos com procura assegurada, alguns correspondendo mesmo a fortes carências do mercado da oferta na região, em Portugal e na Península.

Um Grupo
de Produtores Florestais

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2008/03/10

CONTA-ME COMO FOI …(6)
BREVE ELUCIDÁRIO DOS INCÊNDIOS FLORESTAIS 

(<--)


Numa análise rápida, aparentemente inspirada e realista, embora efectivamente mais ou menos comum ao que toda a gente sabia e exaustivamente se observava e repetia, a situação da floresta seria a que segue, em Portugal, de Sul a Norte. Mas entrando pelos olhos adentro sobretudo no Centro, entre Douro e Tejo, e, em particular, na Beira Interior, entre Douro e Mondego, distritos da Guarda e Viseu, a que deve juntar-se o de Castelo Branco e boa parte do distrito de Santarém, como do distrito de Coimbra.

Era um País coberto de pinheiros bravos e eucaliptos, material bendito para incêndios, como todos sabiam, particularmente ajudado pela resina, que nada apagava, do p.n.b., o pinheiro nacional bravo, e pela estrutura lenhosa rápida e irresistivelmente consumível pelo fogo, dos altos troncos e largas copas dos eucaliptos, atreitos ao lume como papel fino e seco qual palha criada à torreira dos longos dias de sol em cheio.

Depois, era só esperar pelos verões quentes e secos, um tempo sem gota de água caída do céu de Março a Outubro, deixando os terrenos áridos e ressequidas as ervas que neles proliferavam mesmo assim.

Uma ponta de cigarro caída aqui, outra além, com a estupidez da inocência pateta e da incúria criminosa dos fumadores, priscas muitas vezes atiradas pelas janelas dos automóveis ocupados por citadino, ou outros que tais, que passavam sem nada saber nem perceber do fogo ou riscos de fogo que iam espalhando atrás de si; outras vezes, nos longos percursos de caminho de ferro das linhas do Norte, da Beira Alta ou da Beira Baixa, eram as fagulhas soltas pelas máquinas dos comboios que iam acendendo os fogos que depois nada já apagava, enquanto houvesse madeira, lenha e matos para arder; não poucas vezes também, seriam os incendiários interesseiros que deitavam o fogo intencionalmente às matas, para venderem ao desbarato a madeira ardida, ou simplesmente chamuscada, aos madeireiros aproveitadores das oportunidades de ouro oferecidas de mão-beijada; sem esquecer ainda as matas que ardiam para simplesmente em seu lugar se poder fazer urbanizações que antes disso não seriam permitidas pelos municípios; mas sem esquecer também os piqueniques e magustos que miúdos e graúdos, descuidados e falhos de lembrança ou esquecidos de mil advertências, teimavam em ir fazer para o meio do material combustível de qualquer mata ou matagal à beira das estradas e caminhos rústicos; caminhos e estradas que raramente impediam os fogos de se propagar, porque o lume, se não se espalhava pelo chão, espalhava-se pelo alto, das copas das árvores para as copas doutras árvores; copas e copas que muitas vezes se tocavam ou aproximavam entre si o bastante, vencendo as barreiras de estradas e caminhos, que assim apareciam, com frequência, mais como factores de propagação dos fogos do que como obstáculos à sua corrida desabalada e enlouquecedora através dos campos, ameaçando tudo, inclusive povoações e casas habitadas, em geral salvas in extremis pela arte dos grandes especialistas e heróis também da guerra contra os fogos ou pela sua prevenção, os sempre martirizados bombeiros e corporações de bombeiros, mesmo quando pouco preparados e até mal ou desaquadamente apetrechados e mesmo mal organizados, ainda que sempre esforçadamente dirigidos.

A.C.R.

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