2008/04/02
CONTA-ME COMO FOI …(11)
UM SACERDOTE-MODELO E MAIS QUE ISSO.
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O pároco de Santa Comba de Seia e capelão do Solar do Anjo da Guarda, profundamente ortodoxo, surpreendia em geral os paroquianos mais informados pelas frequentes manifestações de originalidade das suas concepções dum apostolado sem peias correntes e muito reflectido.
Recusava-se, por exemplo, a privilegiar nele a juventude, embora lhe desse uma atenção muito particular e decidida, mas não maior do que dava às crianças, aos adolescentes, aos chefes de família, às mulheres, aos velhos, aos ciganos, aos imigrantes, aos deficientes, aos estudantes, aos operários, aos trabalhadores de escritórios e repartições, aos patrões, aos licenciados e dirigentes do trabalho, etc.
Sobretudo por entender como um erro grave sectorizar excessivamente, por simples pragmatismo da acção, o universo dos fiéis.
Pensava, com uma ousadia que algumas vezes não lhe era perdoada, nem compreendida, que o essencial do apostolado estaria em descobrir vocações de cristãos, se possível apaixonados da Fé, prontos a todos os sacrifícios e riscos para irradiá-la e transformar cada cristão, o mais medíocre que fosse, num incrível zelador e promotor da Fé.
Zelador era, de facto, talvez a sua palavra preferida, a que dava um sentido muito mais alargado que o corrente, para exprimir toda a ambição e alcance do apóstolo verdadeiramente grande.
Aliás costumava dizer que não podia haver apóstolos senão verdadeiramente grandes.
Assim se compreende que tivesse transformado a paróquia, antes de tudo o mais, numa singular “escola de apóstolos”, como lhe observavam criticamente os mais receosos, por não encontrarem nisso senão ambição profana a mais e pouco ou nada do que era corrente nas outras paróquias, mesmo mais importantes e com mais responsabilidades públicas que aquela.
Pior ainda entendiam isso outros mais contumazes, para quem o que o pároco pretendia era pôr a funcionar uma espécie de brigada “panzer”(*) de assalto ao indiferentismo religioso e à ignorância religiosa na paróquia!
Ele queria recristianizar a paróquia, se possível todas as paróquias à volta, e tinha uma regra: “Isto não vai com paninhos quentes!”, que os colegas a princípio não deixavam de censurar-lhe, até compreenderem que era mesmo assim.
Curioso que, sem qualquer zelo pela defesa das áreas das suas próprias responsabilidades, alguns foram os que procuraram imitá-lo ou segui-lo. Diga-se que chegando mesmo a dispor-se para uma espécie de federação apostólica de paróquias, com vista a acções de apostolado em comum ou, pelo menos, sob a orientação e coordenação do colega que lhes merecia tanta confiança que nem como líder haveria de desmerecê-la, estavam certos e seguros. De tal feição que, em vez de invadir-lhes os terrenos de acção respectivos, seguramente os levantaria mais alto e mais depressa, até aos olhos do Bispo e sua Cúria, lá na Guarda.
O padre-capelão fazia-os efectivamente sonhar mais grande, mais alto e mais longe, sem na verdade ter nada a ver com os sonhos dos colegas, que eram sobretudo mundanos, parecia-lhe às vezes.
Reflectiam, de algum modo, apenas os sonhos de grandeza do Bispo que, na sua Diocese, só no padre-capelão encontrava alguém à altura da sua imaginação, da sua visão eclesial, gostava o Bispo de supor e de acreditar naquilo que supunha.
Um dos seus padres da Cúria, do seu círculo mais estreito, sem fazer grande segredo, “é que o topava”, como constava entre os colegas.
Segundo esse padre, ao Bispo já não chegavam os limites da sua pobre Diocese da Guarda e ele gostaria demasiado de estender os olhos para os horizontes de Salamanca, subindo com frequência ao alto da torre sineira da imensa Sé-Catedral, voltada nada menos que precisamente para Salamanca, sede da formidável Diocese… em Espanha.
Se na Europa desapareciam fronteiras entre países, porque não desapareceriam entre dioceses?...
Pudesse dispor de fundos excedentários do riquíssimo Santuário de Fátima!... – alegava, muito a sério, o tal padre da Cúria episcopal, suposto conhecedor dos mais íntimos sonhos do seu Bispo… Talvez, com isso, o Bispo conseguisse mexer as pedras necessárias para anexar umas tantas paróquias de Salamanca, mais próximas da Guarda…
Mas deles, desses fundos, mal chegavam à Guarda umas tristes migalhas.
O Bispo tinha sido ordenado presbítero porque um padrinho o ajudara nas despesas do seminário e roupa, iam já passados bons quase quarenta anos…
Mas o micróbio da ambição eclesial não o abandonara ainda, ou não se gastaria jamais, acreditava também o seu fiel padre da Cúria.
Agora tinha aquele pesadelo expansionista de Salamanca, aos olhos de alguns de certo modo irónico… é bem de ver, mas, no fundo, não eram poucos os que acreditavam nas fantasias aloucadas do padrezinho.
A.C.R.
*Alusão às brigadas de tanques alemães que invadiram a Europa em 1940 e 1941 e que ficaram famosas por serem irresistíveis e tudo destruírem na passagem.
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