2008/03/27
CONTA-ME COMO FOI …(8)
A ARISTOCRACIA DOS MAIS RICOS
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Nunca mais a família e Senhores do Solar do Anjo da Guarda teriam deixado de fazer constar, segundo a opinião pública e seus mentores, que o Solar deles ardera, porque… porque sacrificado pelos bombeiros para acorrerem a salvar o Solar em frente, do outro lado do rio, o Solar da Bela Vista.
Aleivosia tão incompreensível, pela forma como tudo efectivamente se passou e aqui relatei, veio a tornar-se insuportável lenda acusatória para os bombeiros e os proprietários. Tão insuportável que os Senhores da Bela Vista se decidiram a sacrifícios heróicos para ajudar financeiramente os donos do Anjo da Guarda a reconstruir e reequipar o seu Solar, completamente ardido, apesar dos testemunhos, inutilmente repetidos, de muita gente que acompanhara de perto o essencial dos acontecimentos.
Em vão.
Conta-se o último e maior desses sacrifícios, para se ver a grandeza daquela gente.
Havia lá no Solar alguns bons ou excelentes quadros de pintores de grande plano do séc. XIX, tempos ainda de relativo fausto da família. Já tinham sido mais numerosos esses quadros. Mas, com as dificuldades económicas crescentes, vários tinham sido vendidos, em leilão ou directamente a oportunistas e espertalhões, numa tal escala que a família tinha decidido disfarçar o descalabro, substituindo os quadros vendidos mais prestigiosos por cópias de qualidade, confessadas apenas aos mais íntimos e compreensivos das circunstâncias.
Mas isso é secundário.
Realmente importante é o destino que a certa altura os Senhores da Bela Vista deram a dois dos quadros mais notáveis que lá tinham ainda, como gesto capaz de absolvê-los de faltas e costumes bem mais graves do que aqueles que por vezes lhes assacavam, aliás em geral dificilmente verídicos ou verificáveis.
Por mais de uma vez haviam os Senhores da Bela Vista sido sondados, até com ofertas generosas, para venderem os dois quadros. Sempre tinham recusado porque aqueles eram, talvez, exactamente os mais preciosos sentimentalmente para a família. Tratava-se de dois retratos a óleo pintados por Columbano. Um do Eça e o outro do antepassado de finais do séc. XIX que os encomendara e que mantivera relações de muita intimidade com os Vencidos da Vida e ainda mesmo, vinte e tal anos depois, menos explicavelmente, com alguns dos expoentes prometidos à maior glória, do próprio Orfeu, incluindo Pessoa e o Amadeu Sousa Cardoso.
Verdade, verdadinha, com os significativos milhares de contos da venda dos dois retratos das mãos de Columbano, os donos da Bela Vista apareceram uma tarde ao Senhor do Anjo da Guarda, ainda em fase de lenta, lentíssima reconstrução, exigindo-lhe, sim, de facto exigindo-lhe, que… que aceitasse o empréstimo daquele montante para acabar de reconstruir e reequipar, depois, o seu Solar do Anjo da Guarda. Pagaria ele o empréstimo – veja-se a generosidade – se alguma vez pudesse, quando pudesse, nas fracções que quisesse e sem a menor pressa.
“Só assim – declaravam eles – nos sentiremos aliviados das infâmias da opinião pública…”
O Senhor da Bela Vista que havia de fazer, senão aceitar?
Mas fê-lo quase de joelhos, beijando as mãos à Senhora e até mesmo ao marido e sem conseguir esconder as lágrimas da sua gratidão “sem limites”, como ele garantia, aos soluços.
Não é difícil acreditar e compreender, pois não?
Também não haja dúvida de que o mercado de obras de pintura, em Portugal, se ainda não era o que viria a ser vinte ou trinta anos depois, já começara a crescer e a impor-se muito significativamente…
A.C.R.
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