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2006/11/06

Memórias das minhas Aldeias
Parte II – N.º 4 

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Aquele almoço selou uma amizade de duas famílias, que entre os miúdos já vinha das escolas, mas na geração dos pais era inédita, não tinha precedentes e começava só então.

O instinto do “fundador” dizia-lhe que dera esse dia, quase a findar 1836, um passo decisivo – seria um passo seguro? – para a consolidação dos seus projectos políticos. Porque o seu projecto fundamental era durar, durar politicamente. E ele – sem jamais o ter dito a ninguém – sabia não haver apenas os ódios históricos da luta entre miguelistas e liberais; havia agora também a constituição nova, ou recuperada de 1820, que o “fundador” Veiga Santos via como uma fonte inultrapassável de permanente renovação e proliferação dos ódios entre portugueses, para todo o sempre ou enquanto o “sempre” durasse. Pelo que, mais tarde ou mais cedo, teria a constituição de ser suprimida, ou podada de todo o seu radicalismo, o que era a mesma coisa.

Ele não o dizia ainda a ninguém, mas foi com pequenos e grandes gestos, como aquele almoço com os Cruz das Folgosas e, indirectamente, com os Pina de Várzea, que o “fundador” foi dispondo as suas pedras e ajudando, no fim de contas, a orientar as coisas, pelo caminho de soluções de bom senso, para a inevitável pacificação nacional que ainda poucos desejavam e, naquela altura, ainda cada um a seu modo, mesmo esses poucos.

A teima, chamemos-lhe assim, do velho Veiga Santos tinha a sua coerência. Sabia, por cedo o ter descoberto, que as sociedades exigem uma certa estratificação para funcionarem utilmente e com um mínimo de ordem que as torna eficazes e lhes assegura a paz, tornando possível a harmonia que constantemente as funda e refunda. Veiga santos, dito “o fundador”, chegou a pensar que tinham sido erros graves da “ordem” constitucional derivada da revolução de 1820 a extinção das ordens religiosas, o saque aos bens da Igreja, o fim do regime dos morgadios. Por quantas décadas a sociedade portuguesa, completamente desestruturada por essa revolução em pelo menos três frentes, resistiria aos efeitos do terramoto social que a abalara até às raízes? Para quê, por exemplo, extinguir os conventos, se eles se extinguiriam por si próprios, em mais trinta ou quarenta anos?

O “fundador” rapidamente fora levado a pensar que, no deserto social resultante da revolução, o papel das famílias viria a ser essencial e único garante da única restauração que defendia… Quando tudo desabava à volta de tudo e todos, o velho “fundador” não via senão na família, nas famílias, as âncoras e ancoradouros de toda a possível esperança.

Pode ter sido daí, desse sentimento, difuso mas profundamente difundido, que se criou ou muito reforçado saiu o clima de entendimento e ajuda entre certas famílias daquele tempo, que, alguns anos mais tarde, levou Manuel e Raul Cruz, por exemplo, para além do Equador, alturas da foz do Zaire, Norte de Angola, ao serviço dos interesses do “fundador”, para participarem no perigoso mas lucrativo estrebuchar do comércio de escravos negros em África.

Com total oposição da avó Ana Emília que não conseguiu vencer o espírito de aventura e alto risco dos miúdos seus netos.

Talvez por isso, a aventura não duraria demasiado.

E o “fundador” morreu entretanto, rodeado de mil homenagens, de toda a gente, liberais cada vez menos esturrados e miguelistas crescentemente esperançados na restauração, na realidade sempre mais longínqua do legitimismo.

Mas quando os dois “miúdos” regressaram de África, Ana Emília ainda era viva e nem sequer muito velha, porque só tinham passado dez anos.

Nesse tempo, nos primeiros anos, “o fundador” fora-se convencendo de que “o tráfico” não tinha futuro de facto e de que não era de homens com juízo teimar contra a ordem de coisas que, dia a dia, se fora anunciando e, por fim, impondo.

Mas as últimas operações do negócio deixaram-no mais rico que nunca, em grande parte graças ao talento e empenho dos netos de Feliciano. E ele acabou por decidir-se a fixar um termo a prazo certo para o negócio, até para não continuar a sujeitar-se a que, ainda frequentemente, em geral pelas costas, lhe chamassem “o negreiro”. O que cada vez lhe era mais insuportável, porque prejudicava a sua imagem de político que passara a ser a tempo inteiro, com total sucesso, benquisto de revolucionários e contra-revolucionários.

Nem nunca mais voltara a África.

Tinha entre mãos conseguir fazer nomear, para governador civil da Guarda, um dos mais preclaros representantes e altos dirigentes da ordem antiga, nas Beiras. Não queria falhar, fosse por que fosse, nomeadamente por essa fama de “negreiro” que, sabe-se lá porquê, concentrava sobre si as indisposições dos dirigentes actuais dessa ordem cada vez mais seguramente desactual, os quais se revelavam cada vez mais organizados e arrogantes, como se a restauração absolutista estivesse por um fio. Tinha o ex-negreiro grande dificuldade e pouca vontade de compreender…

Diga-se em todo o caso, em abono do “fundador” e “negreiro”, que nunca o ouviram renegar o passado da família, nem o seu notabilíssimo currículo empresarial. Pelo contrário, não poucos ainda se recordavam de o ouvir invocar o colossal balanço de êxitos da família que, em cento e cinquenta anos, teria conseguido “pôr” no Brasil e nas Antilhas, mesmo em Espanha, alguns duzentos mil escravos negros. De facto, um palmarés de traficantes de escravos e de armadores de navios negreiros para transportá-los, como poucos se poderiam gabar de poder exibir. Exibir às escondidas, é verdade, ou pelo menos cada vez mais às escondidas, até que o esquecimento fosse total.

A.C.R.

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