2006/10/30
Memórias das minhas Aldeias
Parte II – N.º 3
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Vinha de longe o hábito destes dois, Manuel e Jacinto, de não pouparem palavras agrestes um ao outro, mas sem por isso chegarem a melindrar-se, mesmo passageiramente.
Já o pai de Manuel Cruz e o pai de Jacinto Veiga Santos tinham estabelecido entre si um certo relacionamento que, inconscientemente talvez, veio a servir de modelo aos filhos para o seu próprio entendimento e fair play.
Durante anos, o pai de Jacinto, José Luís Veiga Santos, ouviu o seu próprio pai – o Veiga Santos dos murmúrios da Sé de Viseu, em 1829, tão receado pelo cónego Xavier, como se fosse o próprio Diabo… Ouviu ele o pai falar de Feliciano Cruz acusando-o de causador da sua prisão pelos miguelistas naquele ano precisamente, na Guarda e depois em Almeida, donde, logo a seguir ao desembarque de D. Pedro IV no Mindelo, tinha conseguido fugir para imediatamente se juntar ao exército liberal.
Vencedores os liberais em 1834, o avô Veiga Santos regressou a Seia em todo o esplendor da “sua” vitória, para, mal os setembristas – a extrema esquerda liberal – tomaram o poder no Porto e em Lisboa (1836), ser ele investido presidente do município de Seia, foreiro municipal como o povo então dizia.
Quando todos os antigos miguelistas e os novos liberais de apressadas conversões recentes esperavam dele só vinganças, o sábio e sabedor Veiga Santos, fundador da estirpe, a todos surpreendeu pela sua magnanimidade, tão estranha como se tivesse perdido a memória dos males que sofrera aos primeiros e aos segundos, quais deles os mais implacáveis… na “outra Vida” ou, como veio a dizer-se, no Antigo Regime.
Em algumas ocasiões, não hesitava até em deixar cair um que outro elogio, de admiração pelo comportamento dos miguelistas do concelho que se continuavam a manter firmes, os quais, dizia ele, às vezes se haviam mesmo batido com valentia e até inteligência, apesar – sublinhava também – apesar das “desgraçadas” chefias do Reino, que tinham em Lisboa.
Um dia, parece que a título de supremo exemplo, não terá hesitado em referir o caso de Feliciano Cruz e da armadilha que este montara aos liberais de Viseu, no Pindelo, sacrificando aliás a própria vida.
“Se fosse vivo – comentara – havíamos de entender-nos muito bem.”
Isto chegou rapidamente aos ouvidos de Ana Emília, a viúva de Feliciano, que mandou imediatamente os netos mais velhos, Manuel e Raul, procurarem o presidente da Câmara para lhe “agradecer as palavras de justiça, feitas ao nosso Pai por Vossa Mercê”, ensinou-os ela, que queria todo o agradecimento transmitido sem um erro, em especial aquele “Vossa Mercê”, insistiu ela, que agora era a única Mercê que tinham à mão, sublinhou sem rir e escondendo a ironia, se é que a tinha.
Quando ouviu aquilo, com enorme satisfação íntima, acrescida pela surpresa da rapidez da reacção dela, “o fundador” lembrou-se logo da avó que os rapazes tinham e de como a conhecera linda e inteligente. Seria ainda aquela beleza por quem todos os rapazes do seu tempo tinham andado apaixonados, incluindo ele próprio?... Porque inteligente… inteligente e instantânea no taco-a-taco, continuava a ser, pelo que via e ouvira aos “miúdos”.
Avistara-a pela última vez de longe e meio escondido, no funeral de Feliciano. Fez mentalmente contas e disse consigo que ela andaria pelos sessenta e dois. “Os sofrimentos destes anos e a derrota do Trono e do Altar não a devem ter poupado”. “Mas sobreviveu, não há dúvida, com certeza cheia de vida, como estes moços deixam entender” – concluiu.
E tirou dali o pensamento, que a fila dos munícipes à espera no corredor e no átrio, para o cumprimentarem, era ainda comprida e apertada no espaço acanhado por onde devagarzinho os “sabujos”, dizia ele, se moviam.
As contas, sobretudo as contas políticas, as que mais o absorviam e de que mais gostava, não as fazia “o fundador” nada mal, reconhecido sem qualquer enleio por tudo o que o negócio de escravos lhe tinha ensinado a si e aos seus, como a tantos mais, sobre o “negócio da vida” e os negócios políticos, sujos mas não tanto como os detractores os pintavam, nunca se esquecia ele de o repetir.
Já nessa altura “o fundador” tinha dúvidas de que os ódios partidários pudessem cimentar a cena política nova, como ele a imaginava. Via o ódio ser alimentado, constantemente espevitado, por vencidos e vencedores. E temia – não por si, que não tinha medo de nada, tanto se sentia instalado em terreno que absolutamente controlava – mas pela cegueira generalizada dos outros, que a seus olhos não percebiam nada de nada.
Esse pensamento fê-lo admirar ainda mais o gesto de Ana Emília, através dos netos mais velhos, e sorriu para si. O colaborador mais próximo que ali estava viu-o sorrir, como se fosse para ele, e não resistiu a sorrir-lhe também, o que o fez gritar. “Vai buscar os rapazes! Vê se ainda os apanhas e pede-lhes para voltarem cá, quero que almocem hoje comigo, em minha casa! Depressa, vai! Não falhes! E de caminho passa-me por casa, a prevenir a senhora!”
A.C.R.
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Vinha de longe o hábito destes dois, Manuel e Jacinto, de não pouparem palavras agrestes um ao outro, mas sem por isso chegarem a melindrar-se, mesmo passageiramente.
Já o pai de Manuel Cruz e o pai de Jacinto Veiga Santos tinham estabelecido entre si um certo relacionamento que, inconscientemente talvez, veio a servir de modelo aos filhos para o seu próprio entendimento e fair play.
Durante anos, o pai de Jacinto, José Luís Veiga Santos, ouviu o seu próprio pai – o Veiga Santos dos murmúrios da Sé de Viseu, em 1829, tão receado pelo cónego Xavier, como se fosse o próprio Diabo… Ouviu ele o pai falar de Feliciano Cruz acusando-o de causador da sua prisão pelos miguelistas naquele ano precisamente, na Guarda e depois em Almeida, donde, logo a seguir ao desembarque de D. Pedro IV no Mindelo, tinha conseguido fugir para imediatamente se juntar ao exército liberal.
Vencedores os liberais em 1834, o avô Veiga Santos regressou a Seia em todo o esplendor da “sua” vitória, para, mal os setembristas – a extrema esquerda liberal – tomaram o poder no Porto e em Lisboa (1836), ser ele investido presidente do município de Seia, foreiro municipal como o povo então dizia.
Quando todos os antigos miguelistas e os novos liberais de apressadas conversões recentes esperavam dele só vinganças, o sábio e sabedor Veiga Santos, fundador da estirpe, a todos surpreendeu pela sua magnanimidade, tão estranha como se tivesse perdido a memória dos males que sofrera aos primeiros e aos segundos, quais deles os mais implacáveis… na “outra Vida” ou, como veio a dizer-se, no Antigo Regime.
Em algumas ocasiões, não hesitava até em deixar cair um que outro elogio, de admiração pelo comportamento dos miguelistas do concelho que se continuavam a manter firmes, os quais, dizia ele, às vezes se haviam mesmo batido com valentia e até inteligência, apesar – sublinhava também – apesar das “desgraçadas” chefias do Reino, que tinham em Lisboa.
Um dia, parece que a título de supremo exemplo, não terá hesitado em referir o caso de Feliciano Cruz e da armadilha que este montara aos liberais de Viseu, no Pindelo, sacrificando aliás a própria vida.
“Se fosse vivo – comentara – havíamos de entender-nos muito bem.”
Isto chegou rapidamente aos ouvidos de Ana Emília, a viúva de Feliciano, que mandou imediatamente os netos mais velhos, Manuel e Raul, procurarem o presidente da Câmara para lhe “agradecer as palavras de justiça, feitas ao nosso Pai por Vossa Mercê”, ensinou-os ela, que queria todo o agradecimento transmitido sem um erro, em especial aquele “Vossa Mercê”, insistiu ela, que agora era a única Mercê que tinham à mão, sublinhou sem rir e escondendo a ironia, se é que a tinha.
Quando ouviu aquilo, com enorme satisfação íntima, acrescida pela surpresa da rapidez da reacção dela, “o fundador” lembrou-se logo da avó que os rapazes tinham e de como a conhecera linda e inteligente. Seria ainda aquela beleza por quem todos os rapazes do seu tempo tinham andado apaixonados, incluindo ele próprio?... Porque inteligente… inteligente e instantânea no taco-a-taco, continuava a ser, pelo que via e ouvira aos “miúdos”.
Avistara-a pela última vez de longe e meio escondido, no funeral de Feliciano. Fez mentalmente contas e disse consigo que ela andaria pelos sessenta e dois. “Os sofrimentos destes anos e a derrota do Trono e do Altar não a devem ter poupado”. “Mas sobreviveu, não há dúvida, com certeza cheia de vida, como estes moços deixam entender” – concluiu.
E tirou dali o pensamento, que a fila dos munícipes à espera no corredor e no átrio, para o cumprimentarem, era ainda comprida e apertada no espaço acanhado por onde devagarzinho os “sabujos”, dizia ele, se moviam.
As contas, sobretudo as contas políticas, as que mais o absorviam e de que mais gostava, não as fazia “o fundador” nada mal, reconhecido sem qualquer enleio por tudo o que o negócio de escravos lhe tinha ensinado a si e aos seus, como a tantos mais, sobre o “negócio da vida” e os negócios políticos, sujos mas não tanto como os detractores os pintavam, nunca se esquecia ele de o repetir.
Já nessa altura “o fundador” tinha dúvidas de que os ódios partidários pudessem cimentar a cena política nova, como ele a imaginava. Via o ódio ser alimentado, constantemente espevitado, por vencidos e vencedores. E temia – não por si, que não tinha medo de nada, tanto se sentia instalado em terreno que absolutamente controlava – mas pela cegueira generalizada dos outros, que a seus olhos não percebiam nada de nada.
Esse pensamento fê-lo admirar ainda mais o gesto de Ana Emília, através dos netos mais velhos, e sorriu para si. O colaborador mais próximo que ali estava viu-o sorrir, como se fosse para ele, e não resistiu a sorrir-lhe também, o que o fez gritar. “Vai buscar os rapazes! Vê se ainda os apanhas e pede-lhes para voltarem cá, quero que almocem hoje comigo, em minha casa! Depressa, vai! Não falhes! E de caminho passa-me por casa, a prevenir a senhora!”
A.C.R.
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