2006/10/26
Memórias das minhas Aldeias
Parte II – N.º 2
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Consumado o enterro e depois de deitarem sobre a cova as últimas pazadas de terra, como a piedade e a tradição mandavam, foram os dois continuar a conversa para casa de Jacinto, ali perto, tão depressa quanto puderam, porque lhes apetecia isolarem-se para descansar dos dois longos dias de ofícios e pôr a conversa em dia, naturalmente.
A primeira coisa que Jacinto disse ao amigo, mal passaram a porta de entrada…
- Não estranhaste ver-me no enterro, pois não!
- Havia que estranhar?
- Talvez… Eu, um liberal, filho, neto e bisneto de liberais militantes, um ou outro jacobino retinto e maçons que bonde…
- Mas tu sabes que eu sei que isso já lá vai há muito!
- Não é exactamente assim! Não me passei para a reacção. Apenas acontece, passou a acontecer, que não tolero vinganças dos prepotentes, destes que saltaram para a mó de cima (sabe-se lá por que artes!), deixaram de venerar o Rei no trono, mas trazem o Rei na barriga, esses horrores, esses pançudos!
- Conta lá então – sossegou-o Manuel.
- Contar o quê? Sabes bem que a minha família tem negociado no tráfico de escravos em África. E antes também no Brasil, diz a tradição familiar que vai bem para três séculos…
- Sei. O negócio está mal, ouço dizer… Ainda o outro dia a um dos Moreiras ali de Santa Eulália.
- Não, não está mal, talvez de certo modo até nunca tenha estado tão bom, mas vai acabar.
- Ou pelo menos – corrigiu Manuel – está a ficar tão arriscado que deixa de compensar. Só que isso não é novidade nenhuma. Tanto que ninguém anda por aí a chorar de pena por vós! – ironizou.
- Pois. Dizem que em século e meio todos ficámos ricos.
- Não ficaram?
- Uns sim, poucos; outros não, muitos; e alguns assim, assim – contemporizou Jacinto – Desde há uns anos temos os ingleses contra nós e contra o mundo todo, com um cerco cada vez mais apertado. Não propriamente os ingleses mas o governo inglês e os seus barcos de guerra, a Royal Navy. Que anda pelos mares sem excepção, do Atlântico ao Indico, na caça aos navios de contrabando de escravos de qualquer nacionalidade. E levam-nos para os seus portos mais próximos das costas de África e das Américas onde tiram aos contrabandistas e patrões deles toda a vontade e coragem de voltarem ao negócio, com os sequestros, reféns, multas, torturas e afundamentos provocados. Mesmo que sejam navios de contrabando ingleses. Até parece que a fúria da Royal Navy é maior contra os contrabandistas ingleses e contra os contrabandistas americanos, que uns e outros levam com certeza os escravos para os venderem nos Estados Unidos, aos grandes agricultores do algodão e do açúcar, concorrentes desleais dos produtores ingleses, aos quais ficam o algodão e o açúcar muito mais caros por isso.
- Sei pouco dessas coisas – disse Manuel Cruz por dizer.
- Um dos teus filhos não quer ir ajudar-nos em África? Temos muita falta lá de gente corajosa e com alguns estudos. Pagamos bem.
- São demasiado novos! São moles… E demasiado cristãos. Mas… para fazerem o quê? Para o tiro ao alvo dos ingleses?
- Para ir a Angola, – explicou Jacinto pacientemente, sem fazer caso da ironia - por alturas do rio Zaire ou Congo, recrutar escravos nas duas margens do rio e embarcá-los no Ambriz ou Luanda, com destino… É segredo.
- Mas que segredo!... Toda a gente sabe que é para Cabo Verde. Dali é que vão para um ou outro de vários destinos possíveis, pelo melhor preço. Ou não?
- Então?... – continuou Jacinto sem fazer caso outra vez. - Falas aos teus filhos? – insistiu como se não tivesse ouvido Manuel, que hesitou antes de responder.
- Falo. Digo-lhes que te procurem, para lhes explicares mas não lhes recomendarei que aceitem, hem!
- Também não lhes recomendas que não aceitem, pois não?
- Não, não lhes direi que não aceitem ou que aceitem; apenas isso e só isso, o que tu lhes propões…
- Mas se insistirem contigo?
- Não me arrancarão mais do que te disse. E pronto!
- Olha! Já me fazes um grande favor, porque ando numa atrapalhação muito grande. Precisamos de bons agentes lá, junto dos sobas do interior. E os teus filhos, mesmo que nenhum aceite, hão-de conhecer gente de confiança, e de muito boa linha, como eles, colegas de estudos e de pândegas, que queiram ir até ao Congo, ajudar a fechar com honra… e muito proveito… quase três séculos dum negócio em grande escala, absolutamente honrado e proveitoso para todos os compartes.
- Afinal, é Congo ou Angola? – perguntou Manuel, sobretudo para demonstrar que estava atento à conversa que já lhe soava a oco.
- Tanto pode ser Congo como Angola. Depende das dificuldades do abastecimento em peças para o comércio, dificuldades sobretudo provocadas pela enorme concorrência de traficantes ingleses, franceses, holandeses, americanos, até prussianos e dinamarqueses, além dos portugueses e espanhóis. Há alturas em que é mais fácil o abastecimento no Zaire, de Boma para cima, para Norte e para Nordeste. Outras em que é preferível ir a Angola, pelo interior do Ambriz. Os sobas locais, num lado e noutro, têm altos e baixos nos seus stocks de negros para vender. Depende muito das necessidades e dos humores do rei do Congo e do rei de Angola, soberanos desses sobas e sobetas todos, que ora vão buscar escravos a uns, ora a outros, conforme os sobas que os reis querem privilegiar. Já nos têm deixado de mãos completamente a abanar, obrigando-nos a ir a Cabinda, onde mal chega a sentir-se a real influência desses reis e onde os escravos acabam por sair-nos mais caros.
Manuel olhava Jacinto numa espécie de êxtase crescente, à espera de ocasião para dardejar um dos seus sarcasmos.
- Andais há três séculos – não é? – a aprender geografia de África, à conta de ajudar os felizes negros a encontrar emprego do outro lado do Atlântico!...
- Não o digas a rir – interrompeu Jacinto. - A escravatura desenvolveu-se ininterruptamente desde há milénios e sem ela não teríamos o progresso que hoje nos espanta!
- Com certeza! – concordou Manuel Cruz – Ainda haveis de ser aclamados benfeitores da humanidade vossa escrava, quando partilhardes com ela os vossos incontáveis progressos e ela já puder revoltar-se…
- Achas então que os ricos prédios construídos em Seia estes cem anos, e em Gouveia ou Oliveira do Hospital, e as ruas e estradas lançadas, as praças abertas e os jardins alinhados e bem ordenados, à francesa, o foram com o dinheiro do milho e das batatas das nossas leiras!
Jacinto tinha a certeza de calar o amigo e de lhe fazer perder a vontade de mais sarcasmos.
Mas, de facto, Manuel pensava noutra coisa.
Parecia muito concentrado a ouvi-lo e, no entanto, interrogava-se donde teriam vindo tantos Veiga Santos que havia por toda a Beira, os de Seia, os de Celorico, os de Trancoso… Uns ricos, outros quase pobres, formavam duas linhagens que, dizia-se, tinham deixado de cruzar-se, havia gerações. Dizia-se também que todos tinham origem numa mesma família vinda para Seia de Coja, uma aldeia ao pé de Arganil, uns cem anos antes, e que nenhum se dispensava de transmitir rigorosamente aos filhos os apelidos fundadores.
No entanto, todos eles mantinham, com igual rigor, junto com a consciência de ser um Veiga Santos, uns o orgulho de pertencer à poderosa linha dos Veiga Santos, misteriosamente ricos, outros o orgulho de pertencer à linha dos Veiga Santos pobres, mas honrados e talvez impolutos.
Tal não impedia que, em casos extremos de necessidade, os ricos acudissem aos pobres, ponto de honra da família discretamente praticado e sem compromissos públicos.
A.C.R.
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Consumado o enterro e depois de deitarem sobre a cova as últimas pazadas de terra, como a piedade e a tradição mandavam, foram os dois continuar a conversa para casa de Jacinto, ali perto, tão depressa quanto puderam, porque lhes apetecia isolarem-se para descansar dos dois longos dias de ofícios e pôr a conversa em dia, naturalmente.
A primeira coisa que Jacinto disse ao amigo, mal passaram a porta de entrada…
- Não estranhaste ver-me no enterro, pois não!
- Havia que estranhar?
- Talvez… Eu, um liberal, filho, neto e bisneto de liberais militantes, um ou outro jacobino retinto e maçons que bonde…
- Mas tu sabes que eu sei que isso já lá vai há muito!
- Não é exactamente assim! Não me passei para a reacção. Apenas acontece, passou a acontecer, que não tolero vinganças dos prepotentes, destes que saltaram para a mó de cima (sabe-se lá por que artes!), deixaram de venerar o Rei no trono, mas trazem o Rei na barriga, esses horrores, esses pançudos!
- Conta lá então – sossegou-o Manuel.
- Contar o quê? Sabes bem que a minha família tem negociado no tráfico de escravos em África. E antes também no Brasil, diz a tradição familiar que vai bem para três séculos…
- Sei. O negócio está mal, ouço dizer… Ainda o outro dia a um dos Moreiras ali de Santa Eulália.
- Não, não está mal, talvez de certo modo até nunca tenha estado tão bom, mas vai acabar.
- Ou pelo menos – corrigiu Manuel – está a ficar tão arriscado que deixa de compensar. Só que isso não é novidade nenhuma. Tanto que ninguém anda por aí a chorar de pena por vós! – ironizou.
- Pois. Dizem que em século e meio todos ficámos ricos.
- Não ficaram?
- Uns sim, poucos; outros não, muitos; e alguns assim, assim – contemporizou Jacinto – Desde há uns anos temos os ingleses contra nós e contra o mundo todo, com um cerco cada vez mais apertado. Não propriamente os ingleses mas o governo inglês e os seus barcos de guerra, a Royal Navy. Que anda pelos mares sem excepção, do Atlântico ao Indico, na caça aos navios de contrabando de escravos de qualquer nacionalidade. E levam-nos para os seus portos mais próximos das costas de África e das Américas onde tiram aos contrabandistas e patrões deles toda a vontade e coragem de voltarem ao negócio, com os sequestros, reféns, multas, torturas e afundamentos provocados. Mesmo que sejam navios de contrabando ingleses. Até parece que a fúria da Royal Navy é maior contra os contrabandistas ingleses e contra os contrabandistas americanos, que uns e outros levam com certeza os escravos para os venderem nos Estados Unidos, aos grandes agricultores do algodão e do açúcar, concorrentes desleais dos produtores ingleses, aos quais ficam o algodão e o açúcar muito mais caros por isso.
- Sei pouco dessas coisas – disse Manuel Cruz por dizer.
- Um dos teus filhos não quer ir ajudar-nos em África? Temos muita falta lá de gente corajosa e com alguns estudos. Pagamos bem.
- São demasiado novos! São moles… E demasiado cristãos. Mas… para fazerem o quê? Para o tiro ao alvo dos ingleses?
- Para ir a Angola, – explicou Jacinto pacientemente, sem fazer caso da ironia - por alturas do rio Zaire ou Congo, recrutar escravos nas duas margens do rio e embarcá-los no Ambriz ou Luanda, com destino… É segredo.
- Mas que segredo!... Toda a gente sabe que é para Cabo Verde. Dali é que vão para um ou outro de vários destinos possíveis, pelo melhor preço. Ou não?
- Então?... – continuou Jacinto sem fazer caso outra vez. - Falas aos teus filhos? – insistiu como se não tivesse ouvido Manuel, que hesitou antes de responder.
- Falo. Digo-lhes que te procurem, para lhes explicares mas não lhes recomendarei que aceitem, hem!
- Também não lhes recomendas que não aceitem, pois não?
- Não, não lhes direi que não aceitem ou que aceitem; apenas isso e só isso, o que tu lhes propões…
- Mas se insistirem contigo?
- Não me arrancarão mais do que te disse. E pronto!
- Olha! Já me fazes um grande favor, porque ando numa atrapalhação muito grande. Precisamos de bons agentes lá, junto dos sobas do interior. E os teus filhos, mesmo que nenhum aceite, hão-de conhecer gente de confiança, e de muito boa linha, como eles, colegas de estudos e de pândegas, que queiram ir até ao Congo, ajudar a fechar com honra… e muito proveito… quase três séculos dum negócio em grande escala, absolutamente honrado e proveitoso para todos os compartes.
- Afinal, é Congo ou Angola? – perguntou Manuel, sobretudo para demonstrar que estava atento à conversa que já lhe soava a oco.
- Tanto pode ser Congo como Angola. Depende das dificuldades do abastecimento em peças para o comércio, dificuldades sobretudo provocadas pela enorme concorrência de traficantes ingleses, franceses, holandeses, americanos, até prussianos e dinamarqueses, além dos portugueses e espanhóis. Há alturas em que é mais fácil o abastecimento no Zaire, de Boma para cima, para Norte e para Nordeste. Outras em que é preferível ir a Angola, pelo interior do Ambriz. Os sobas locais, num lado e noutro, têm altos e baixos nos seus stocks de negros para vender. Depende muito das necessidades e dos humores do rei do Congo e do rei de Angola, soberanos desses sobas e sobetas todos, que ora vão buscar escravos a uns, ora a outros, conforme os sobas que os reis querem privilegiar. Já nos têm deixado de mãos completamente a abanar, obrigando-nos a ir a Cabinda, onde mal chega a sentir-se a real influência desses reis e onde os escravos acabam por sair-nos mais caros.
Manuel olhava Jacinto numa espécie de êxtase crescente, à espera de ocasião para dardejar um dos seus sarcasmos.
- Andais há três séculos – não é? – a aprender geografia de África, à conta de ajudar os felizes negros a encontrar emprego do outro lado do Atlântico!...
- Não o digas a rir – interrompeu Jacinto. - A escravatura desenvolveu-se ininterruptamente desde há milénios e sem ela não teríamos o progresso que hoje nos espanta!
- Com certeza! – concordou Manuel Cruz – Ainda haveis de ser aclamados benfeitores da humanidade vossa escrava, quando partilhardes com ela os vossos incontáveis progressos e ela já puder revoltar-se…
- Achas então que os ricos prédios construídos em Seia estes cem anos, e em Gouveia ou Oliveira do Hospital, e as ruas e estradas lançadas, as praças abertas e os jardins alinhados e bem ordenados, à francesa, o foram com o dinheiro do milho e das batatas das nossas leiras!
Jacinto tinha a certeza de calar o amigo e de lhe fazer perder a vontade de mais sarcasmos.
Mas, de facto, Manuel pensava noutra coisa.
Parecia muito concentrado a ouvi-lo e, no entanto, interrogava-se donde teriam vindo tantos Veiga Santos que havia por toda a Beira, os de Seia, os de Celorico, os de Trancoso… Uns ricos, outros quase pobres, formavam duas linhagens que, dizia-se, tinham deixado de cruzar-se, havia gerações. Dizia-se também que todos tinham origem numa mesma família vinda para Seia de Coja, uma aldeia ao pé de Arganil, uns cem anos antes, e que nenhum se dispensava de transmitir rigorosamente aos filhos os apelidos fundadores.
No entanto, todos eles mantinham, com igual rigor, junto com a consciência de ser um Veiga Santos, uns o orgulho de pertencer à poderosa linha dos Veiga Santos, misteriosamente ricos, outros o orgulho de pertencer à linha dos Veiga Santos pobres, mas honrados e talvez impolutos.
Tal não impedia que, em casos extremos de necessidade, os ricos acudissem aos pobres, ponto de honra da família discretamente praticado e sem compromissos públicos.
A.C.R.
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