2006/10/17
Dar voz…
Ao “nacionalismo de Salazar”
Da “Introdução geral aos quatro primeiros Volumes” da obra “Portugal como problema”, introduzidos, coordenados e comentados pelo Prof. Doutor Pedro Calafate, citamos as seguintes passagens relativas ao “nacionalismo de Salazar” e às fontes principais da sua formação doutrinária e do seu pensamento político. A citação integra-se no breve panorama prévio, elaborado por Pedro Calafate, do que poderíamos chamar, sem qualquer abuso, a formação e evolução do nacionalismo português, desde o séc. V ao séc. XX (pág. 43 e 44).*
António da Cruz Rodrigues (A.C.R.)
*Edição conjunta do “Público” e “Fundação Luso-Americana”; introdução e organização editorial de Pedro Calafate, Lisboa, Setembro de 2006.
(…)
Mudando de ângulo e depois da análise do conceito de hispanismo em António Sardinha, muito na linha da ideia de civilização ibérica pensada por Oliveira Martins, daremos também voz ao nacionalismo de Salazar que procurou encontrar um rosto para Portugal, colado ao que pensava ser a sua alma, rural e católica. Inimigo da neutralidade do estado perante a questão religiosa, que considerava só por si um sofisma, desde cedo se ancorou na escolástica de feição tomista, eleita por Leão XIII ao estatuto de doutrina da igreja, a qual, por isso, mas também por opção própria, permaneceu como a sua verdade. Conduziu o país guardando como ideário os princípios básicos do personalismo cristão, tal como os interpretou, os quais, a seu ver, não encontravam terreno fértil para se afirmarem no quadro das políticas de desenvolvimento do capitalismo liberal, nem nas correspondentes tendências para a massificação consumista e para as grandes concentrações urbanas. A sua preocupação, sobretudo nas primeiras décadas desse longo consulado, era mais a estabilidade do que o desenvolvimento sem termo, mais o valor intrínseco do trabalho como escola de formação moral do que a produtividade acelerada, mais o homem do que a acumulação ad infinitum do seu produto.
A estabilidade por que ambicionava era, em certo sentido, herdeira da concepção de paz, tal como a teorizaram os filósofos cristãos, nomeadamente São Tomás: paz no estado pela obediência ao poder e pelo cumprimento dos deveres de cada um, paz no trabalho pela diluição dos antagonismos dos grupos profissionais e pelo reconhecimento da noção moral de utilidade dos bens criados – pelo menos em termos doutrinais. Em última instância, a «paz na terra dada aos homens de boa vontade» não tinha apenas uma componente exterior ou meramente política e social, tinha uma forte componente ética, pois era a imagem da paz que o homem alcançaria pelo seu encontro com Deus, uma imagem ténue da paz eterna que se realiza pela harmonia interior da pessoa e pela intervenção do poder temporal ao nível das acções exteriores de cada um.
Para Salazar a riqueza, entendida como condição prática de valor inestimável, não estava ao serviço do gozo, não deveria ser a riqueza-egoísmo, mas sim a riqueza-sacrifício e dedicação. Por seu turno, o poder não era um meio de realização de interesses mas o exercício de uma função sagrada, que várias vezes referiu encarar «como um sacrifício». Da confluência de todos estes princípios nascia a «verdade portuguesa» e a «lusitanidade exemplar»11 que nem sempre conseguiu resistir ao confronto com a complexidade do mundo e com as tensões e polaridades da história. Aliás, voltaremos no final deste volume IV à mensagem de Salazar, pela pena do seu último ministro dos negócios estrangeiros, Franco Nogueira, através do seu Juízo Final (1992), onde traça uma perspectiva das encruzilhadas de Portugal nos últimos decénios do século XX.
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11 Eduardo Lourenço, o Labirinto da Saudade, Lisboa, 1982, p. 30
António da Cruz Rodrigues (A.C.R.)
*Edição conjunta do “Público” e “Fundação Luso-Americana”; introdução e organização editorial de Pedro Calafate, Lisboa, Setembro de 2006.
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INTRODUÇÃO GERAL
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Mudando de ângulo e depois da análise do conceito de hispanismo em António Sardinha, muito na linha da ideia de civilização ibérica pensada por Oliveira Martins, daremos também voz ao nacionalismo de Salazar que procurou encontrar um rosto para Portugal, colado ao que pensava ser a sua alma, rural e católica. Inimigo da neutralidade do estado perante a questão religiosa, que considerava só por si um sofisma, desde cedo se ancorou na escolástica de feição tomista, eleita por Leão XIII ao estatuto de doutrina da igreja, a qual, por isso, mas também por opção própria, permaneceu como a sua verdade. Conduziu o país guardando como ideário os princípios básicos do personalismo cristão, tal como os interpretou, os quais, a seu ver, não encontravam terreno fértil para se afirmarem no quadro das políticas de desenvolvimento do capitalismo liberal, nem nas correspondentes tendências para a massificação consumista e para as grandes concentrações urbanas. A sua preocupação, sobretudo nas primeiras décadas desse longo consulado, era mais a estabilidade do que o desenvolvimento sem termo, mais o valor intrínseco do trabalho como escola de formação moral do que a produtividade acelerada, mais o homem do que a acumulação ad infinitum do seu produto.
A estabilidade por que ambicionava era, em certo sentido, herdeira da concepção de paz, tal como a teorizaram os filósofos cristãos, nomeadamente São Tomás: paz no estado pela obediência ao poder e pelo cumprimento dos deveres de cada um, paz no trabalho pela diluição dos antagonismos dos grupos profissionais e pelo reconhecimento da noção moral de utilidade dos bens criados – pelo menos em termos doutrinais. Em última instância, a «paz na terra dada aos homens de boa vontade» não tinha apenas uma componente exterior ou meramente política e social, tinha uma forte componente ética, pois era a imagem da paz que o homem alcançaria pelo seu encontro com Deus, uma imagem ténue da paz eterna que se realiza pela harmonia interior da pessoa e pela intervenção do poder temporal ao nível das acções exteriores de cada um.
Para Salazar a riqueza, entendida como condição prática de valor inestimável, não estava ao serviço do gozo, não deveria ser a riqueza-egoísmo, mas sim a riqueza-sacrifício e dedicação. Por seu turno, o poder não era um meio de realização de interesses mas o exercício de uma função sagrada, que várias vezes referiu encarar «como um sacrifício». Da confluência de todos estes princípios nascia a «verdade portuguesa» e a «lusitanidade exemplar»11 que nem sempre conseguiu resistir ao confronto com a complexidade do mundo e com as tensões e polaridades da história. Aliás, voltaremos no final deste volume IV à mensagem de Salazar, pela pena do seu último ministro dos negócios estrangeiros, Franco Nogueira, através do seu Juízo Final (1992), onde traça uma perspectiva das encruzilhadas de Portugal nos últimos decénios do século XX.
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11 Eduardo Lourenço, o Labirinto da Saudade, Lisboa, 1982, p. 30
Etiquetas: Capitalismo, Salazar