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2006/10/24

Memórias das minhas Aldeias
Parte II – N.º 1 

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O corpo de Estanislau Xavier de Pina foi reclamado pela família, para logo lhe organizar o velório na própria igreja de Lourosa, dizem que moçárabe, entre o Alva e Oliveira do Hospital.

As autoridades consentiram, contra a garantia dada pelos sobrinhos mais velhos de que a família não levantaria a questão da morte dele como assassinato premeditado e executado pelo João Brandão, que era a versão já definitiva da voz do Povo, por todos em geral assumida como certa e indesmentível.

Quando a viúva chegou à igreja, por entre lágrimas copiosas mas logo seguidas de muita serenidade e firmeza, impôs ela aos seis sobrinhos reunidos que se cumprisse uma das últimas vontades expressas de Estanislau, de que nenhum deles tinha ouvido falar mas em que piamente acreditaram, porque a tia o dizia. Segundo ela, o tio manifestara-lhe por mais de uma vez, nos últimos anos, o desejo de ser sepultado à ilharga do seu “grande companheiro” das lidas guerreiras de 1829, Feliciano Cruz Fonseca, na paroquial de Santiago, à beira de Seia.

Os sobrinhos tinham-no ouvido sempre falar com tanta amizade, admiração e saudoso respeito do velho companheiro, que não estranharam – só anos mais tarde um deles chegou a pensar em maquiavelismo da tia… E, por isso, apressaram-se todos a resolver as formalidades para que, sendo Estanislau da freguesia e paróquia de Várzea, pudesse ser sepultado duas ou três paróquias além, na de Santiago.

Aliás não foi difícil de conseguir porque, nos meios conservadores e eclesiásticos daquelas aldeias, onde ainda estavam centrados os poderes efectivos locais, os nomes de ambos, de Feliciano e Estanislau, ainda abriam todas as portas e as suas vontades, mesmo póstumas, ou a de qualquer deles ainda eram ordens.

Os liberais continuavam socialmente na mó de baixo e assim continuariam enquanto o povo acreditasse que o Senhor Dom Miguel voltaria em breve.

Foi um funeral memorável, não obstante as tentativas, feitas por João Brandão e as suas cliques, de influenciar o povo conservador e os mais anti-liberais, para não participarem nas cerimónias e ajuntamentos, fazendo crer que haveria grosso sarrabulho, por meio de boatos cuidadosamente espalhados.

Tanto mais que o João Brandão se sentira também derrotado com a vitória moral póstuma da Revolução da Maria da Fonte (1846-47), uma vez suspensas as leis que haviam sido a principal causa dela, por proibirem os enterros nas igrejas.

As velas da reacção andavam enfunadas como jamais.

Ver dois dos seus inimigos históricos sepultados nos limites da mesma igreja, lado a lado, acompanhado o velório e o funeral do último deles por uma grande multidão de adeptos, nem medrosos nem escondidos, assustava-o como forte prenúncio da sua própria derrota próxima, que a todo o custo lutava por impedir, nem por isso deixando de sentir-se cada vez mais isolado e ostensivamente rejeitado.

Vãos, portanto, confirmava-se, todos os seus esforços para manipular o povo.

Realmente o povo não se assustou e pareceu que também ele, apesar da sua suposta “funda ignorância”, percebeu de instinto o significado político daquela oportunidade de manifestar-se. Na senda, aliás, ainda do movimento conservador e anti-liberal da Maria da Fonte que, quatro anos antes, mobilizara contra os setembristas todo o Norte e Centro do País, com grande expressão nas Beiras e só neutralizado – não propriamente vencido – pela grande determinação, tacto e sentido políticos da Rainha D. Maria II e seu principal e íntimo conselheiro, o rei consorte D. Fernando de Saxe-Coburgo Gotha.

De facto, perante a multidão que se juntou para seguir o cortejo fúnebre desde a igreja de Lourosa, o João Brandão sentiu-se impotente e desistiu, acabando ele próprio, para evitar uma humilhação total, por incorporar-se no acompanhamento, com os seus fiéis mais próximos, descaradamente mas discreto e ostensivamente respeitoso.

Depois, ao longo do percurso até Santiago, umas cinco ou seis léguas, durante dois dias e uma noite, as multidões foram sempre engrossando, sempre renovadas.

Começou a um domingo.

Ficou célebre.

Uns cento e tal anos depois, ainda por aquelas aldeias um ou outro mais entendido ou mais imaginativo contava isso na versão vingativamente sarcástica que lhe chegara aos ouvidos, transmitida pela cadeia de quatro ou cinco gerações sucessivas.

Missas se sucediam por cada paróquia que o cortejo atravessava – e foram umas sete! – com o respectivo pároco à frente dos paroquianos, à espera do cortejo, pronto para celebrar nova missa de corpo presente, ali mesmo, à beira do caminho, ou mais adiante, na igreja paroquial, no adro em frente, em jeito de missa campal, ou em qualquer dos santuários do percurso, de maior devoção, conhecidos pelas suas romarias anuais mais concorridas.

A viúva, sob pretexto do desvio grande que teria de ser feito, recusou a paragem para a missa na própria paróquia do falecido, mas realmente por temer um levantamento da população, que lhe constara se oporia à saída do féretro de Várzea, a aldeia natal, e exigia o seu enterramento junto dos familiares falecidos.

Mesmo esse diferendo resolveu-se com incrível facilidade, não chegou a constituir ameaça da ordem perfeita que presidiu a todo o cerimonial, tão espontânea que se diria muitíssimo bem prevista e inexcedivelmente organizada.

Durante a noite, a partir do lusco-fusco, acenderam-se as velas que a grande maioria trouxera consigo, não se sabe a que comando invisível obedecendo, e o espectáculo a certa altura chegou a ser estonteante.

De dia, os que ficavam acenavam com lenços de impecável limpeza aos que partiam, que por sua vez agitavam os seus aos que ficavam, até os verem desaparecer diluídos nos horizontes distantes.

Como um jeito ressurgido quase cento e cinquenta anos depois, em Fátima, com o sucesso e a expansão mundial que viria a ter, como é sabido.

Acompanharam o cortejo e o funeral, de princípio a fim, em todo o seu cerimonial, o previsto e o imprevisto, dois personagens de que muito bem conhecemos os pais.

Justificam por isso, e pela própria participação nos acontecimentos futuros, o relevo que a partir de agora vamos dar-lhes.

São eles Manuel Cruz, o neto mais velho de Feliciano Cruz, morto a tiro pela bala perdida dum liberal anónimo, no recontro de 1829 no Pindelo; e o neto mais novo de Veiga Santos, o liberal esturrado e maçon, de que pela primeira vez ouvimos falar ao cónego Xavier, na Sé de Viseu, dirigindo-se a Feliciano Cruz e à mulher, Ana Emília.

Durante mais de metade do tempo que levaram a fazer o percurso de Lourosa a Santiago, cavalgaram ambos, Manuel Cruz e Jacinto Veiga Santos, quase lado a lado, no meio do cortejo, sem darem por isso e às vezes até sem chegarem a apear-se dos cavalos durante as sucessivas celebrações eucarísticas.

Quando, finalmente, já na segunda metade do percurso, os dois se viram e reconheceram e, como velhos amigos, se cumprimentaram familiarmente, aproximando-se até quase caírem nos braços um do outro, teria sido uma festa, não fora a circunstância dolorosa do inesperado reencontro que a custo os conteve.

O seu entendimento era excelente desde sempre, desde miúdos, mas havia alguns meses que não se viam.

“Já viste o João Brandão?” – perguntou Manuel ao amigo, mal teve uma aberta.

E sem esperar resposta, no meio do grande silêncio que quase sempre acompanhou o cortejo, Manuel Cruz acrescentou, mal disfarçando um sorriso envenenado…

“Disseram-me ali atrás que o João Brandão anda de monco absolutamente caído. De tal modo perdeu a fé nos liberais, perante isto que aqui se vê, que já desistiu mesmo dum projecto antigo, o de ir a Viena de Áustria assassinar também o Senhor Dom Miguel!”

A.C.R.

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