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2006/11/09

Memórias das minhas Aldeias
Parte II – N.º 5 

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Quando os irmãos Manuel e Raul Cruz regressaram à Metrópole, da sua aventura de dez anos em Angola e no Reino do Congo, com várias deslocações a Cabo Verde e ao Brasil, entremeadas, pareceu aos primeiros conterrâneos, mal os viram, que eles chegavam velhos, ressequidos de secos e gastos, mais amarelos que chinos nunca bafejados pelo Sol.

Mas ricos!

Ao que tudo na estaleca deles apontava, soberbamente ricos!

Nunca por ali se vira nada de comparar com os trens que traziam, cada um seu, iguaizinhos os dois, combinados ambos os “Senhores” para não brilharem um mais que o outro, que ambos tinham de fazer, como irmãos, a melhor figura e iguais invejas, tal e qual minuciosamente haviam ajustado, durante os largos momentos de lazer e solidão da viagem sem fim.

Os trens mais lembravam verdadeiros coches da Corte que carruagens para ruas de aldeias ou vilórias e caminhos de rústicos campos ou descampados matagais.

Compreende-se o que ambos contavam dos saloios – diziam eles – que se iam juntando para vê-los desfilar, um trem atrás do outro, sobretudo em Coimbra, no caminho de Lisboa até Seia, durante uma semana, que o fabricante aconselhara muita calma, enquanto durasse a “rodagem”, pois então!

Já não podiam ver mais basbaques! – garantiam, logo, porém, acrescentando…

- Sem ofensa, que agora estamos aqui só entre amigos e queremos que todos vós partilheis connosco do nosso orgulho e do orgulho da nossa Terra!

Seria como dislate pior a emenda que o soneto, se uns e outros já tivessem recuperado o bom senso e o sentido de humor.

Todo o cuidado de Manuel e Raul com a língua e atitudes seria pouco, porque a avó Ana Emília, com os seus setenta e tais e o mesmo espírito afiado de sempre, não se poupava para os ridicularizar quando calhava, mesmo se misturava os ditos agrestes, que tentava suavizar, com sorrisos de amor e ternura que não mentiam.

Só perdeu a avó um bocado o controlo quando soube que uma dessas tardes iriam os dois rapazes, de carruagem-coche, buscar a Seia o supremo edil para o levar de visita ao solar da Ponte, a uma entrevista com o solarengo fidalgo que o actual edil, filho mais velho do “fundador”falecido e falecido antigo negreiro, queria por força fazer governador civil da Guarda, como o regime novo chamava ao fiscal do governo em cada distrito.

O supremo edil “fundador” da estirpe Veiga Santos tivera o mesmo sonho. Tentara, tentara, teimara, teimara, tentara, mas em vão. Seu filho, porém, convencera-se de que conseguiria onde o pai falhara, porque se sentia com mais e melhores armas que as do progenitor.

Tinha os amigos do pai e os que ele próprio fizera ou conquistara. Era novo; enviuvara havia um ano e meses; sentia-se másculo e apetecido, era rico, era poderoso e potente; já não era apenas o filho e “futuro” herdeiro pouco fiável do velho negreiro; estava plenamente em maré de jogar também o trunfo da sua disponibilidade e apetência para novo casamento, com a cabeça ainda fria, antes de perdê-la com a primeira dama ou demoiselle que se lhe metesse na cama, que as via mesmo perdidinhas por homem ou homens.

Sabia que também por esse lado “a revolução” dera cabo dos últimos diques sociais, os do pudor e da contenção de costumes e pensamentos mais íntimos. As antigas polícias sociais fora um vento que lhes dera. O edil acreditava que a vida podia vir a ser a mais agradável das bacanais, com a moderação dos novos “bons costumes” que começavam a instalar-se e a vigorar. Ser o filho mulato querido do “fundador” não tinha que ser socialmente uma desvantagem, como o seu currículo até ali demonstrava.

Mas a Senhora Dona Ana Emília não gostava do “mulato”, filho de distinta mulata do Lobito e do branco “por fora” Veiga Santos, o “fundador”.

Naturalmente que não lhe agradou ver os netos feitos boleias para o “mulato”. Pensou que estava a ficar velha, a perder fibra. Tanto que, ao ouvi-los, toda ela estremeceu por dentro e protestou ainda, mas sem conseguir mais que isto: que os netos, ao menos, não levassem as duas carruagens, pareceria mais um enterro ou um casamento. Uma bastava para exploração pelas más-línguas e para que no túmulo se remexesse de gozo o antigo “negreiro” e “fundador” da linha mulata e da linha branca da estirpe dos Veiga Santos, como a santa Senhora não quis ou não podia deixar de rematar.

Que ela nunca chegara a levar muito a sério o pai Veiga Santos, bem no fundo daquele mais fundo de si própria onde só consigo se encontrava a sós e com Deus, em conversas ao desafio, a que muitas vezes Feliciano também vinha assistir, mas em geral calado, embora sorrindo muito, sobretudo se Deus “castigava” Ana Emília com algum ralhete bem a propósito, ainda que sempre benevolente. “Demasiado!” – achava Feliciano em geral, com a ternura e cumplicidade de sempre relativamente à mulher.

O edil supremo voltou eufórico da entrevista com o conde – ele dispunha-se a pagar tudo por um conde, que só mais tarde os haveria a granel – e os manos Cruz não vinham menos entusiasmados.

Mal o trem parou à porta de Ana Emília, o filho mestiço do antigo Veiga Santos saltou fora e subiu a correr o escadório para casa dela, com os dois irmãos a correrem-lhe na cola, obrigados a vencer os degraus dois a dois.

- Então o conde aceitou! – sussurrou ela, desapontada, assim que lhes escancarou a porta.

- Os seus netos foram admiráveis, Senhora Dona Ana Emília! Apresentaram razões para o conde aceitar o meu convite, que nem a mim, que sou o Diabo, passavam pela cabeça! Fique ciente que eles sabem tanto da nossa política metropolitana como os mais pelados daqui!

- Então, quem sai aos seus não degenera – disse ela, para dizer alguma coisa, percebeu-se.

- Oh! Avó! – censurou Raul, levemente encavacado.

- E com quem os havemos de casar?... - soltou o edil, viria a perceber-se que sem a propósito algum… de propósito.

- Ora! – retorquiu ela, numa gargalhada taco a taco. – Com as suas filhas, pois então!

- Não seria mal pensado, não… A mais velha tem sete anos. É uma questão de um dos seus filhos esperar dois ou três lustros…

- A sério! – fingiu Ana Emília, como querendo repor seriedade na conversa – Mas há as filhas do conde, que já todas passam dos vinte…

- Mas feias e com pouca graça! – interveio Manuel, apoiado pelos risinhos do irmão, que ambos tinham entrevisto algumas delas espreitando entre portas dos corredores.

- E com pouco dote! – comentou Ana Emília, agora muito frontal e sem rir. – Que os dotes da nobreza já não são o que eram há trinta ou quarenta anos, sem os morgadios, não é?

- É – respondeu o edil, aproveitando, apressado subitamente, para pedir aos dois irmãos que o levassem a casa, que tinha visitas para o jantar.

Ia já a sair mas Veiga Santos ainda voltou atrás, num repente, para acrescentar.

- Senhora Dona Ana Emília, quero dizer-lhe que a carruagem foi um espanto de sucesso!... Olhe! Metade do nosso sucesso tem a ver com a carruagem, quer acreditar?... Ah! Quando souberem que são duas iguaizinhas… Então é que não lhe digo nada!

E tornou a desandar, agora definitivamente, enquanto a avó Ana Emília condescendia com um sorriso quase imperceptível e um ligeiríssimo encolher de ombros, pelas costas do edil, como se pedisse desculpa, não houvesse alguém atento ao desatino.

A.C.R.

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