2007/10/19
Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte VII – nº 13 – A IDOLATRIA DOS CHEFES
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A acta traduzia impecavelmente as decisões tomadas, mas omitia naturalmente o episódio final das explicações do presidente, como pôde no dia seguinte constatar Rufino, que leu a acta, como costuma dizer-se, verdadeiramente à lupa.
Mas Rufino sentia certo mal-estar pela sua reacção às explicações do presidente quanto às razões da ausência dele à última sessão do Conselho.
Quis, por isso, ter para com o presidente uma explicação, mais desenvolvida do que vinha na acta, quanto a várias implicações das decisões tomadas.
Em termos comezinhos, quis, poderia dizer-se, abrir-lhe o jogo todo.
Começou pelo financiamento que fosse necessário para a abertura dos previstos pólos da Universidade em Portugal Continental.
Queria – disse – dar-lhe a boa notícia. Havia recebido proposta do banco onde faziam maior movimento de depósitos e levantamentos, para reforçar os seus financiamentos à sociedade até aos montantes que fossem necessários para cobrir os encargos com a instalação dos novos pólos, bem como as despesas de funcionamento corrente de um ano inteiro de todos esses pólos.
“Sem necessidade de avales pessoais dos administradores!” – acrescentou.
E passou à questão da localização dos novos pólos.
Aí tudo se baseava, à partida, no slogan-maravilha…
“Levar a Universidade aos Estudantes”…
Em vez de obrigar os Estudantes a percorrerem centenas de quilómetros para chegarem à Universidade!
Os novos pólos não abririam todos de uma vez, mas quatro para já e os outros dois passado um ano.
“Veja se concorda, presidente, com o escalonamento… Está tudo estudado e previsto no relatório do grupo de trabalho que organizei para estudar o problema… Mas também, principalmente, no relatório que escrevi eu mesmo, sobre o nosso circuito de duas semanas pelo País todo, para obter concessões locais de apoios à criação dos pólos prioritários…”
“Tome os relatórios, presidente. Está tudo aí, dê-me a sua opinião amanhã mesmo. Importa-se?”
E passou sem mais demoras a outro ponto, que, ver-se-ia, era o que mais o preocupava, se não mesmo o único que ainda verdadeiramente o preocupava nessa fase.
Mesmo assim, não se permitiu nenhuns rodeios.
“Sabe presidente, começo a notar pressões de sócios novos, alguns com grandes participações no capital – subscritas e integralmente realizadas, como sabe! – porque se pensam com direito a participar desde já nos órgãos sociais…” – explicou Rufino.
“Querem então uma assembleia geral para eleições, não?...”
E sem esperar resposta prosseguiu.
“Mas não está estabelecido que, até ao fim do triénio para que foram eleitos os corpos sociais da cooperativa continuarão com as mesmas funções na nova sociedade?...”
“É verdade – retorquiu o secretário-geral.
“Mas também sabe, meu presidente, como trabalhámos os dois para convencer a notária a aceitar o novo pacto social com essa cláusula…
“O que nos custou!
“Foi arrancado à força, lembra-se?”
“Então, diga lá, senhor Secretário-Geral. O que é que quer?”
Pareceu a Rufino que o presidente falava alto, como querendo demonstrar a sua relativa indiferença ao assunto, talvez por saber que não se podia arrogar peso bastante para confiar, à partida, numa automática ou mesmo apenas fácil reeleição.
Em todo o caso, Rufino também não esquecia quanto o homem apreciava o lugar que, depois de reformado, representava para ele um penacho importante e vistoso, além de simulacro muito honroso de continuação de uma vida activa, perante a mulher, os filhos, as noras e genros e os netos e bisnetos, principalmente.
Rufino estava decididamente disposto a contemporizar com as fraquezas do “seu” homem…
“Seu” porque fora ele efectivamente quem o escolhera, a seu gosto, e o atirara, verdadeiramente atirado, para tantas responsabilidades como nunca tivera na vida. Mesmo enquanto fora, quase indefinidamente, “director-geral” do Ensino Secundário e depois do Ensino Superior, no ministério da Educação.
De resto, boa escolha fizera Rufino, porque o “seu” homem se revelara excelente contacto dentro do ministério, apto e habilíssimo para abrir e… fechar portas, como ninguém, fosse em que curva, esquina ou recanto fosse daqueles imensos corredores, esconderijos e alfurjas ou gabinetes de ministros e secretários de Estado.
Apesar de tudo… mais um quebra-cabeças, pensou Rufino consigo.
Mais tarde ou mais cedo a questão pôr-se-ia, com insistência e sem evasivas.
Por agora estava ainda em lume muito brando, não precisava ele de tomá-la demasiado a sério.
Em todo o caso, fora bem que a questão lhe lembrasse e tivesse decidido enfrentá-la, mesmo que só à experiência. O que lhe permitira pelo menos pressentir ou adivinhar os sentimentos e reacção do “seu” homem em causa, a quem tivera por isso a oportunidade de lisonjear mais uma vez o ego incomensurável. Mas depois de ter mais uma vez exibido que era só ele próprio quem mandava ali, humilhando ou exaltando quem ele, e só ele, queria e podia.
Porém, de súbito, também descobria outra coisa.
É que não importava apenas que ele fosse para todos o insubstituível, por ser o melhor zelador dos interesses gerais.
Mas igualmente importante era que todos o reconhecessem rodeado duma corte de igualmente insubstituíveis, nas funções para que ele os nomeara ou viesse a nomear. Sorriu pensando que essa não era, talvez, a “escola” do Doutor Salazar.
E sorriu ainda mais acentuadamente, porque essa seria outra diferença profunda que descobria em relação ao estilo do Homem que, nas sua entourage, ali na UL, quase todos adoravam como que cegamente, feito ídolo indiscutível de tantos, se não todos, com a excepção, embora muito respeitosa, dele próprio.
A.C.R.
Mas Rufino sentia certo mal-estar pela sua reacção às explicações do presidente quanto às razões da ausência dele à última sessão do Conselho.
Quis, por isso, ter para com o presidente uma explicação, mais desenvolvida do que vinha na acta, quanto a várias implicações das decisões tomadas.
Em termos comezinhos, quis, poderia dizer-se, abrir-lhe o jogo todo.
Começou pelo financiamento que fosse necessário para a abertura dos previstos pólos da Universidade em Portugal Continental.
Queria – disse – dar-lhe a boa notícia. Havia recebido proposta do banco onde faziam maior movimento de depósitos e levantamentos, para reforçar os seus financiamentos à sociedade até aos montantes que fossem necessários para cobrir os encargos com a instalação dos novos pólos, bem como as despesas de funcionamento corrente de um ano inteiro de todos esses pólos.
“Sem necessidade de avales pessoais dos administradores!” – acrescentou.
E passou à questão da localização dos novos pólos.
Aí tudo se baseava, à partida, no slogan-maravilha…
“Levar a Universidade aos Estudantes”…
Em vez de obrigar os Estudantes a percorrerem centenas de quilómetros para chegarem à Universidade!
Os novos pólos não abririam todos de uma vez, mas quatro para já e os outros dois passado um ano.
“Veja se concorda, presidente, com o escalonamento… Está tudo estudado e previsto no relatório do grupo de trabalho que organizei para estudar o problema… Mas também, principalmente, no relatório que escrevi eu mesmo, sobre o nosso circuito de duas semanas pelo País todo, para obter concessões locais de apoios à criação dos pólos prioritários…”
“Tome os relatórios, presidente. Está tudo aí, dê-me a sua opinião amanhã mesmo. Importa-se?”
E passou sem mais demoras a outro ponto, que, ver-se-ia, era o que mais o preocupava, se não mesmo o único que ainda verdadeiramente o preocupava nessa fase.
Mesmo assim, não se permitiu nenhuns rodeios.
“Sabe presidente, começo a notar pressões de sócios novos, alguns com grandes participações no capital – subscritas e integralmente realizadas, como sabe! – porque se pensam com direito a participar desde já nos órgãos sociais…” – explicou Rufino.
“Querem então uma assembleia geral para eleições, não?...”
E sem esperar resposta prosseguiu.
“Mas não está estabelecido que, até ao fim do triénio para que foram eleitos os corpos sociais da cooperativa continuarão com as mesmas funções na nova sociedade?...”
“É verdade – retorquiu o secretário-geral.
“Mas também sabe, meu presidente, como trabalhámos os dois para convencer a notária a aceitar o novo pacto social com essa cláusula…
“O que nos custou!
“Foi arrancado à força, lembra-se?”
“Então, diga lá, senhor Secretário-Geral. O que é que quer?”
Pareceu a Rufino que o presidente falava alto, como querendo demonstrar a sua relativa indiferença ao assunto, talvez por saber que não se podia arrogar peso bastante para confiar, à partida, numa automática ou mesmo apenas fácil reeleição.
Em todo o caso, Rufino também não esquecia quanto o homem apreciava o lugar que, depois de reformado, representava para ele um penacho importante e vistoso, além de simulacro muito honroso de continuação de uma vida activa, perante a mulher, os filhos, as noras e genros e os netos e bisnetos, principalmente.
Rufino estava decididamente disposto a contemporizar com as fraquezas do “seu” homem…
“Seu” porque fora ele efectivamente quem o escolhera, a seu gosto, e o atirara, verdadeiramente atirado, para tantas responsabilidades como nunca tivera na vida. Mesmo enquanto fora, quase indefinidamente, “director-geral” do Ensino Secundário e depois do Ensino Superior, no ministério da Educação.
De resto, boa escolha fizera Rufino, porque o “seu” homem se revelara excelente contacto dentro do ministério, apto e habilíssimo para abrir e… fechar portas, como ninguém, fosse em que curva, esquina ou recanto fosse daqueles imensos corredores, esconderijos e alfurjas ou gabinetes de ministros e secretários de Estado.
Apesar de tudo… mais um quebra-cabeças, pensou Rufino consigo.
Mais tarde ou mais cedo a questão pôr-se-ia, com insistência e sem evasivas.
Por agora estava ainda em lume muito brando, não precisava ele de tomá-la demasiado a sério.
Em todo o caso, fora bem que a questão lhe lembrasse e tivesse decidido enfrentá-la, mesmo que só à experiência. O que lhe permitira pelo menos pressentir ou adivinhar os sentimentos e reacção do “seu” homem em causa, a quem tivera por isso a oportunidade de lisonjear mais uma vez o ego incomensurável. Mas depois de ter mais uma vez exibido que era só ele próprio quem mandava ali, humilhando ou exaltando quem ele, e só ele, queria e podia.
Porém, de súbito, também descobria outra coisa.
É que não importava apenas que ele fosse para todos o insubstituível, por ser o melhor zelador dos interesses gerais.
Mas igualmente importante era que todos o reconhecessem rodeado duma corte de igualmente insubstituíveis, nas funções para que ele os nomeara ou viesse a nomear. Sorriu pensando que essa não era, talvez, a “escola” do Doutor Salazar.
E sorriu ainda mais acentuadamente, porque essa seria outra diferença profunda que descobria em relação ao estilo do Homem que, nas sua entourage, ali na UL, quase todos adoravam como que cegamente, feito ídolo indiscutível de tantos, se não todos, com a excepção, embora muito respeitosa, dele próprio.
A.C.R.
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