2007/10/25
Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte VII – N.º 14 – REVELAÇÕES DE UMA BIOGRAFIA
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Descoberta por Rufino.
A biografia do Doutor Salazar.
“Imaginada”, isto é, descoberta por ele, Rufino, passo a passo. Construída através de sucessivas iluminações súbitas, encadeadas umas nas outras. Surgidas de pequenos e grandes nadas, nuns dias especiais de espírito observador estridente, em plena actividade. E de forte inspiração. Mas com grandes intervalos sem actividade, passados porém os quais a imaginação, a criatividade instintiva e a inspiração lhe apareciam sempre mais esclarecidas e muito reforçadas, como que inéditas.
De modo que se tratara, e continuava a tratar-se, dum dos entretenimentos mais divertidos, absorventes e continuamente aprofundados de Rufino, ao longo de alguns anos.
Descobrira a fórmula muito cedo.
Mas também o garoto António de Oliveira Salazar lhe aparecera desde logo como um miúdo extraordinariamente precoce, talvez, se não com certeza, um daqueles sobredotados de que ainda hoje as escolas quase fogem como o diabo da Cruz.
A primeira revelação acabou por não ser muito positiva, até de algum modo decepcionante.
O caminho de ferro da Beira alta, construído nos anos oitenta para noventa do séc. XIX, passava à porta dos pais António de Oliveira e Maria do Resgate Salazar e fora inaugurado muito nas proximidades do seu nascimento, ocorrido em 1889.
Ainda hoje existe, na casa onde viveu e aonde regressava regularmente, por períodos de alguns dias, enquanto Ministro das Finanças e Primeiro Ministro, ainda hoje existe aí o modestíssimo quarto onde nasceu, com a cama em que foi dado à luz “o maior português de sempre”, dizem as sondagens.
Podemos imaginar o que pensava o pequeno António, vendo passar os comboios, de Lisboa para Paris e de Paris para Lisboa, isto é, de Santa Comba Dão para Paris e de Paris para Lisboa, passando por Santa Comba Dão?
Podemos imaginá-lo a olhar pelas janelas, para dentro das carruagens, quando a mãe o deixava ir à estação, raramente, nalguma das paragens breves do comboio ali ao pé de casa?
Rufino não achava difícil imaginar aquilo que o garoto pensaria de essencial. Para ajudar, Rufino calculava que até aos dez anos, por aí, nunca António terá andado no comboio que todos os dias lhe passava à porta pelo menos duas vezes, mas talvez quatro, seis ou oito, se não mais. E António sem conseguir imaginar o que ia lá dentro e muito menos as grandes terras por onde passava, donde vinha nem para onde ia. Mas mesmo isso, essa eventual fixação negativa no sonho, essa impossibilidade de António de sonhar, poderá ter-se tornado para sempre numa incapacidade de sonhar, terá modelado a personalidade de António ao invés do símbolo banalizado de último e maior progresso que o comboio ainda era, em 1890 ou 1900.
O símbolo dum progresso que se materializava por toda a Europa e América do Norte pelo menos desde 1850, cinquenta anos antes, mas que em Santa Comba Dão se apresentava como a última e mais fulgurante representação do Progresso.
Haverá detractores de Salazar a pensarem que a mentalidade dele terá ficado para sempre marcada por esse anacronismo, acreditava Rufino.
Sendo assim, Salazar tenderia a nunca sair da Idade do Comboio, tardiamente começada e revelada para ele e fechando-lhe por isso a mente, talvez, a outras Idades de outros progressos, mais em dia…
Mas também poderia ter produzido nele uma grande inclinação para todos os progressos, até uma espécie de fixação, sem fetichismos, na permanente aspiração aos novos progressos.
Rufino julgava que o resultado fora uma espécie de tensão constante na personalidade de Salazar, entre cada novo progresso e a conservação dos velhos (e ultrapassados) progressos.
Talvez o mais razoável seja pensar-se que a grande inteligência do jovem Salazar terá cedo sabido pôr as coisas, sem transe de nenhuma espécie, nos seus termos mais acertados. Ou seja, acabando por levá-lo a considerar o progresso como um movimento orgânico, feito em todos os tempos de quase permanentes e sucessivos avanços, às vezes com os inevitáveis recuos, nenhum dos quais pode ser tomado como um absoluto, mas, sem excessivos deslumbramentos, apenas como uma etapa da eterna e admirável relatividade de todas as coisas.
À maneira cristã e católica, pois, ou não fosse…
A biografia do Doutor Salazar.
“Imaginada”, isto é, descoberta por ele, Rufino, passo a passo. Construída através de sucessivas iluminações súbitas, encadeadas umas nas outras. Surgidas de pequenos e grandes nadas, nuns dias especiais de espírito observador estridente, em plena actividade. E de forte inspiração. Mas com grandes intervalos sem actividade, passados porém os quais a imaginação, a criatividade instintiva e a inspiração lhe apareciam sempre mais esclarecidas e muito reforçadas, como que inéditas.
De modo que se tratara, e continuava a tratar-se, dum dos entretenimentos mais divertidos, absorventes e continuamente aprofundados de Rufino, ao longo de alguns anos.
Descobrira a fórmula muito cedo.
Mas também o garoto António de Oliveira Salazar lhe aparecera desde logo como um miúdo extraordinariamente precoce, talvez, se não com certeza, um daqueles sobredotados de que ainda hoje as escolas quase fogem como o diabo da Cruz.
A primeira revelação acabou por não ser muito positiva, até de algum modo decepcionante.
O caminho de ferro da Beira alta, construído nos anos oitenta para noventa do séc. XIX, passava à porta dos pais António de Oliveira e Maria do Resgate Salazar e fora inaugurado muito nas proximidades do seu nascimento, ocorrido em 1889.
Ainda hoje existe, na casa onde viveu e aonde regressava regularmente, por períodos de alguns dias, enquanto Ministro das Finanças e Primeiro Ministro, ainda hoje existe aí o modestíssimo quarto onde nasceu, com a cama em que foi dado à luz “o maior português de sempre”, dizem as sondagens.
Podemos imaginar o que pensava o pequeno António, vendo passar os comboios, de Lisboa para Paris e de Paris para Lisboa, isto é, de Santa Comba Dão para Paris e de Paris para Lisboa, passando por Santa Comba Dão?
Podemos imaginá-lo a olhar pelas janelas, para dentro das carruagens, quando a mãe o deixava ir à estação, raramente, nalguma das paragens breves do comboio ali ao pé de casa?
Rufino não achava difícil imaginar aquilo que o garoto pensaria de essencial. Para ajudar, Rufino calculava que até aos dez anos, por aí, nunca António terá andado no comboio que todos os dias lhe passava à porta pelo menos duas vezes, mas talvez quatro, seis ou oito, se não mais. E António sem conseguir imaginar o que ia lá dentro e muito menos as grandes terras por onde passava, donde vinha nem para onde ia. Mas mesmo isso, essa eventual fixação negativa no sonho, essa impossibilidade de António de sonhar, poderá ter-se tornado para sempre numa incapacidade de sonhar, terá modelado a personalidade de António ao invés do símbolo banalizado de último e maior progresso que o comboio ainda era, em 1890 ou 1900.
O símbolo dum progresso que se materializava por toda a Europa e América do Norte pelo menos desde 1850, cinquenta anos antes, mas que em Santa Comba Dão se apresentava como a última e mais fulgurante representação do Progresso.
Haverá detractores de Salazar a pensarem que a mentalidade dele terá ficado para sempre marcada por esse anacronismo, acreditava Rufino.
Sendo assim, Salazar tenderia a nunca sair da Idade do Comboio, tardiamente começada e revelada para ele e fechando-lhe por isso a mente, talvez, a outras Idades de outros progressos, mais em dia…
Mas também poderia ter produzido nele uma grande inclinação para todos os progressos, até uma espécie de fixação, sem fetichismos, na permanente aspiração aos novos progressos.
Rufino julgava que o resultado fora uma espécie de tensão constante na personalidade de Salazar, entre cada novo progresso e a conservação dos velhos (e ultrapassados) progressos.
Talvez o mais razoável seja pensar-se que a grande inteligência do jovem Salazar terá cedo sabido pôr as coisas, sem transe de nenhuma espécie, nos seus termos mais acertados. Ou seja, acabando por levá-lo a considerar o progresso como um movimento orgânico, feito em todos os tempos de quase permanentes e sucessivos avanços, às vezes com os inevitáveis recuos, nenhum dos quais pode ser tomado como um absoluto, mas, sem excessivos deslumbramentos, apenas como uma etapa da eterna e admirável relatividade de todas as coisas.
À maneira cristã e católica, pois, ou não fosse…
A.C.R.
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