2007/07/26
Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte VI - N.º 21 - JOGOS DE GATAS E RATOS
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O Professor e Rufino estavam e redescobrir o gosto pela política.
Um porque fora antes da Revolução um Professor essencialmente político e tudo fizera, depois, para que os outros o esquecessem como tal; e o mais novo porque começava a reencontrar o gosto que chegara a sentir por ela, no seu tempo de Paris, através da admiração por dois dos maiores estadistas do séc. XX.
O Professor entendia terminada a sua quarentena relativamente à velha política ou política velha; sentia-se pronto para “a nova”, cada vez mais igual à de sempre e ainda mais propícia à arte de “mexer os cordelinhos”.
Rufino, por seu lado, tinha de admitir como etariamente tardia a sua redescoberta da política – mais três anos e estaria nos cinquenta – mas não tinha dúvidas de que a política chegava ainda a tempo e, sobretudo, na hora certa de facilitar-lhe a vida e a vida da Universidade, que se tornara a sua própria razão de viver e a garantia de sobrevivência duma geração, a sua geração, na memória dos homens e no património histórico da Nação.
Como quer que fosse, tanto o Professor como Rufino sentiam ter dado naquele dia, com a visita ao ministro da Educação, o avanço até à data mais decisivo no lançamento dos alicerces a que, sólida e definitivamente, ficava amarrado o futuro da Universidade Livre.
Assim o festejaram, essa noite, num jantar no Gambrinos, entre os quadros do “movimento” e a maioria dos futuros professores já apalavrados.
A pedido de Rufino, presidiu o Professor na qualidade de vice-Reitor, só ali tornada pública, pelo que logo foi muito cumprimentado por todos, com palmadinhas familiares dos cavalheiros nas costas e beijinhos “marcelistas” das damas nas faces mais ou menos levemente rosadas das libações moderadas.
Ainda poucos meses antes não seria possível uma tal festa, tão descontraída e com tantos sinais de amena restauração social e de forte confiança no porvir, por parte de gente tão variada e de idades tão desencontradas, dos vinte aos setenta, as meninas e senhoras todas com bem apurados vestidos e os homens encasacados e engravatados sem excepção.
Dir-se-ia que, com efeito, um marcelismo para pior tinha voltado, mas não quanto à beijoquice de cumprimentos agora generalizada entre bípedes dos dois sexos, que essa não a teria o PREC animado.
Isso da beijoquice fora fruto de outras circunstâncias…
Aconteceu logo a seguir à morte política de Salazar, era Portugal marcelista haveria pouco mais de um ano.
Estava um dia Rufino com um conjunto alargado de quadros superiores e médios do “movimento”, na sede, esperando pelos atrasos e atrasados do costume.
Rufino era dos tais tão, tão pontuais que mesmo quando querem e planeiam chegar atrasados não conseguem atrasar-se senão cinco ou dez segundos, quando muito, de tal modo incorporam, como que geneticamente, deixar-se condicionar a ser escravizados dos relógios.
A correr, chegou por fim a Marina acompanhada dum pequeno bando de três ou quatro moças como ela, também militantes que, sem avisar, desataram a cumprimentar todos beijando indiferentemente os dois sexos nas faces.
Era um gesto surpreendente que Rufino levou algum tempo a compreender, embora não se tivesse dado por achado logo à primeira, julgando ter percebido que seria uma moda nova e não querendo passar por saloio.
Com o tempo compreenderia tratar-se de facto e definitivamente do primeiro gesto supostamente revolucionário e “adesivo” da nova ordem política do marcelismo, lançado de cima para baixo, da classe alta para a média alta, logo copiado nos degraus inferiores, talvez como sinal simbólico de adesão e participação na anunciada “primavera marcelista” e de descomprometimento dos estratos sociais privilegiados como antigamente.
Um gesto que acabou por aparecer a Rufino tão oco quanto a própria “primavera” que o teria feito nascer.
As classes “oprimidas” pelos privilégios aproveitavam o que quer que aparecesse apropriado para sacudirem as rédeas que as prendiam e sujeitavam.
O gosto e a ânsia por se “libertarem” que sobretudo as raparigas iam revelando prenunciava grandes mudanças.
E que mudanças!
Nem do Vaticano II e das suas “liberdades” litúrgicas deixaram de aproveitar.
Rufino falava do que sabia.
E como sabia!
De certos esforços e truques, por exemplo, que tinha de desenvolver todas as semanas, ao sábado ou domingo, para tentar escapar, quase sempre sem êxito, à jovem casada, com já uma filha de dez anos ao lado, que à missa do preceito o perseguia implacavelmente para ir pôr-se atrás dele e, em vez do beijo da paz, o atacava com um outro beijo, sôfrego, lábios em cheio nos lábios dele, só uns segundos…
Por fim Rufino teve de mudar de paróquia, até que ela o descobriu e ele passou ao sistema de itinerância paroquial.
A.C.R.
Um porque fora antes da Revolução um Professor essencialmente político e tudo fizera, depois, para que os outros o esquecessem como tal; e o mais novo porque começava a reencontrar o gosto que chegara a sentir por ela, no seu tempo de Paris, através da admiração por dois dos maiores estadistas do séc. XX.
O Professor entendia terminada a sua quarentena relativamente à velha política ou política velha; sentia-se pronto para “a nova”, cada vez mais igual à de sempre e ainda mais propícia à arte de “mexer os cordelinhos”.
Rufino, por seu lado, tinha de admitir como etariamente tardia a sua redescoberta da política – mais três anos e estaria nos cinquenta – mas não tinha dúvidas de que a política chegava ainda a tempo e, sobretudo, na hora certa de facilitar-lhe a vida e a vida da Universidade, que se tornara a sua própria razão de viver e a garantia de sobrevivência duma geração, a sua geração, na memória dos homens e no património histórico da Nação.
Como quer que fosse, tanto o Professor como Rufino sentiam ter dado naquele dia, com a visita ao ministro da Educação, o avanço até à data mais decisivo no lançamento dos alicerces a que, sólida e definitivamente, ficava amarrado o futuro da Universidade Livre.
Assim o festejaram, essa noite, num jantar no Gambrinos, entre os quadros do “movimento” e a maioria dos futuros professores já apalavrados.
A pedido de Rufino, presidiu o Professor na qualidade de vice-Reitor, só ali tornada pública, pelo que logo foi muito cumprimentado por todos, com palmadinhas familiares dos cavalheiros nas costas e beijinhos “marcelistas” das damas nas faces mais ou menos levemente rosadas das libações moderadas.
Ainda poucos meses antes não seria possível uma tal festa, tão descontraída e com tantos sinais de amena restauração social e de forte confiança no porvir, por parte de gente tão variada e de idades tão desencontradas, dos vinte aos setenta, as meninas e senhoras todas com bem apurados vestidos e os homens encasacados e engravatados sem excepção.
Dir-se-ia que, com efeito, um marcelismo para pior tinha voltado, mas não quanto à beijoquice de cumprimentos agora generalizada entre bípedes dos dois sexos, que essa não a teria o PREC animado.
Isso da beijoquice fora fruto de outras circunstâncias…
Aconteceu logo a seguir à morte política de Salazar, era Portugal marcelista haveria pouco mais de um ano.
Estava um dia Rufino com um conjunto alargado de quadros superiores e médios do “movimento”, na sede, esperando pelos atrasos e atrasados do costume.
Rufino era dos tais tão, tão pontuais que mesmo quando querem e planeiam chegar atrasados não conseguem atrasar-se senão cinco ou dez segundos, quando muito, de tal modo incorporam, como que geneticamente, deixar-se condicionar a ser escravizados dos relógios.
A correr, chegou por fim a Marina acompanhada dum pequeno bando de três ou quatro moças como ela, também militantes que, sem avisar, desataram a cumprimentar todos beijando indiferentemente os dois sexos nas faces.
Era um gesto surpreendente que Rufino levou algum tempo a compreender, embora não se tivesse dado por achado logo à primeira, julgando ter percebido que seria uma moda nova e não querendo passar por saloio.
Com o tempo compreenderia tratar-se de facto e definitivamente do primeiro gesto supostamente revolucionário e “adesivo” da nova ordem política do marcelismo, lançado de cima para baixo, da classe alta para a média alta, logo copiado nos degraus inferiores, talvez como sinal simbólico de adesão e participação na anunciada “primavera marcelista” e de descomprometimento dos estratos sociais privilegiados como antigamente.
Um gesto que acabou por aparecer a Rufino tão oco quanto a própria “primavera” que o teria feito nascer.
As classes “oprimidas” pelos privilégios aproveitavam o que quer que aparecesse apropriado para sacudirem as rédeas que as prendiam e sujeitavam.
O gosto e a ânsia por se “libertarem” que sobretudo as raparigas iam revelando prenunciava grandes mudanças.
E que mudanças!
Nem do Vaticano II e das suas “liberdades” litúrgicas deixaram de aproveitar.
Rufino falava do que sabia.
E como sabia!
De certos esforços e truques, por exemplo, que tinha de desenvolver todas as semanas, ao sábado ou domingo, para tentar escapar, quase sempre sem êxito, à jovem casada, com já uma filha de dez anos ao lado, que à missa do preceito o perseguia implacavelmente para ir pôr-se atrás dele e, em vez do beijo da paz, o atacava com um outro beijo, sôfrego, lábios em cheio nos lábios dele, só uns segundos…
Por fim Rufino teve de mudar de paróquia, até que ela o descobriu e ele passou ao sistema de itinerância paroquial.
A.C.R.
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