2007/05/30
Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte V – N.º 21
“Convenci o meu pai!
“Ganhaste a aposta, João Mendes!
“Senhora Ema! Traga daí a melhor pinga que tiver nesses cascos. Copos para todos, hem! E bem cheios! Temos de emborcar à grande!”
Quem falava assim era Zezinho Cruz ou simplesmente Zezinho, nome por que todos o tratavam, com carinho e por respeito.
Ele tratava a todos por tu e todos a ele “por senhor”, de baixo para cima, sem que fosse muito mais velho que qualquer dos outros, mas por ser filho do maior comerciante de lãs daquelas freguesias e o pai dar emprego permanente aos chefes de várias famílias, como já o pai dele, o avô de Zezinho, ambos também senhores aliás de três ou quatro boas quintas de vinha, olival e souto, principalmente.
Só Ema, a tendeira, é que Zezinho tratava por senhora, mas por ser muito mais velha que ele, quase da geração de sua mãe, a senhora Dona Dores.
A senhora Dona Dores também participara na conversa do filho com o pai, para convencerem este na questão da “fábrica”. Sim, ela não se limitara a assistir, como das outras vezes; participara efectivamente, ajudando até o filho a continuar insistindo com o pai, quando Zezinho chegou a parecer-lhe prestes a desistir, porque a teimosia e renitência do marido começavam a afigurar-se invencíveis e o ânimo dele cada vez mais relutante.
Mas talvez fosse impressão sua.
Por isso, Zezinho ficou muito surpreendido com o ar ultra-decidido dela, quando a mãe interveio carregada de bom senso e até usando conhecimentos que não lhe suspeitava e demonstrando que compreendera quanto estava em jogo.
Tratava-se, afinal, de convencer o pai a montar uma fábrica. Mas talvez não devesse chamar-se-lhe fábrica, antes apenas uma espécie de oficina com teares manuais, não além de uma dúzia e meia, utilizando lã já em fio, comprado às fiações especializadas ou às secções especializadas de fiação das grandes fábricas generalistas.
Coisa pequena, sem grande investimento, e de pouco risco, portanto. Mas trabalho garantido para uma dúzia ou duas de chefes de família ou rapazes solteiros, em vias de casar, que já não queriam a vida de campo e da agricultura como ocupação exclusiva e que sem a fábrica teriam que emigrar dentro de pouco tempo, então, sim, deixando a terra definitivamente mais pobre.
O lucro dos proprietários não seria grande, mas seria algum, e o pai-empresário poderia ter, teria um pretexto para deixar o comércio de lãs, em que andava havia quarenta anos e que agora estava cada vez mais nas mãos de alguns tubarões.
Pois que mais, então?
Mais? Que o pai não acreditava naquilo, que já dera o que tinha a dar na sua juventude, quando havia teares manuais em cada casa, trabalhando à força de braços das mulheres de todas as casas, raramente ou nunca dos homens.
Mas os teares agora – objectavam Zezinho e a mãe – seriam mais potentes e de maior produção, só homens poderiam tirar deles o rendimento todo, em jornadas de trabalho limitadas a oito horas/dia, com salários mínimos garantidos; e, melhor ainda, com férias anuais pagas, impostas pelo Instituto Nacional do Trabalho e Previdência e que até poderiam ser pagas a dobrar, se os tecelões prescindissem das férias…
Outras vantagens mais…
Haveria trabalho para todos os tecelões e, no fim das oito horas de trabalho diário, todos deixavam a fábrica ao mesmo tempo, cada um para seu lado, para as suas casas ou para trabalharem no campo, nos seus bocados ou nos bocados doutros, que a fábrica fecharia às cinco da tarde, com muito sol ainda pela frente, na maior parte do ano… Que até as horas e os dias eram agora outra coisa, com a dita “hora de verão” estabelecida como coisa nova e para virar o mundo do trabalho do avesso, para melhor naturalmente…
Mas Zezinho Cruz, o líder condutor desta revolução de cima para baixo, só abalou as convicções e desconfianças do pai quando anunciou que tinha acabado de receber o pedido de fornecimento duns milhares de mantas de lã para Espanha, onde se esperava que o Outono daí a seis meses seria extremamente rigoroso para a população debilitada por já dois anos e tal de guerra, desorganização e morte.
O Outono chegou pontualmente a Espanha e rigoroso como os meteorologistas previam, de modo que o fornecimento também pontual das mantas foi um sucesso e quase uma obra de solidariedade cristã que deixou milhares de nacionalistas espanhóis gratos para sempre a Portugal.
Tanto mais que, com o fim da guerra, uns meses depois, os espanhóis desocupados foram em massa para a vida civil fazer filhos em barda às suas mulheres e noivas, filhos que nasceram durante o outro Inverno e aos quais deram imenso arranjo novas remessas de mantas made in Portugal/Seia.
O baby boom espanhol foi extraordinariamente proveitoso também para Portugal, esse boom do tipo que ao longo da História engulhos vários nos causou.
Mas o empresário Zezinho Cruz teve, com isto, uma inspiração publicitária da primeira apanha.
Passou a proclamar aos clientes e potenciais clientes que as suas mantas e tecidos de lã, em geral, não eram mais caros que os de outras origens, porque incorporavam todas as virtudes do artesanato e da tradição nacional de qualidade.
“Produzidos à mão em teares artesanais…”
Já ficando afogado em encomendas.
E o pai definitivamente convertido ficou.
As escolas primárias do concelho e adjacências deram à campanha um suplemento de alma sem preço: os professores levaram sucessivamente os alunos todos a visitar a única fábrica do País que produzia tecidos de lã industrialmente, pelos métodos tradicionais do artesanato de alta qualidade.
Foi mais uma confirmação de estar em curso a invenção e consolidação duma escola especificamente portuguesa de propaganda política e publicidade comercial, nos anos trinta...
O Secretariado Nacional da Propaganda deu o aval e apoiou a iniciativa como um modelo a seguir fielmente.
“Ganhaste a aposta, João Mendes!
“Senhora Ema! Traga daí a melhor pinga que tiver nesses cascos. Copos para todos, hem! E bem cheios! Temos de emborcar à grande!”
Quem falava assim era Zezinho Cruz ou simplesmente Zezinho, nome por que todos o tratavam, com carinho e por respeito.
Ele tratava a todos por tu e todos a ele “por senhor”, de baixo para cima, sem que fosse muito mais velho que qualquer dos outros, mas por ser filho do maior comerciante de lãs daquelas freguesias e o pai dar emprego permanente aos chefes de várias famílias, como já o pai dele, o avô de Zezinho, ambos também senhores aliás de três ou quatro boas quintas de vinha, olival e souto, principalmente.
Só Ema, a tendeira, é que Zezinho tratava por senhora, mas por ser muito mais velha que ele, quase da geração de sua mãe, a senhora Dona Dores.
A senhora Dona Dores também participara na conversa do filho com o pai, para convencerem este na questão da “fábrica”. Sim, ela não se limitara a assistir, como das outras vezes; participara efectivamente, ajudando até o filho a continuar insistindo com o pai, quando Zezinho chegou a parecer-lhe prestes a desistir, porque a teimosia e renitência do marido começavam a afigurar-se invencíveis e o ânimo dele cada vez mais relutante.
Mas talvez fosse impressão sua.
Por isso, Zezinho ficou muito surpreendido com o ar ultra-decidido dela, quando a mãe interveio carregada de bom senso e até usando conhecimentos que não lhe suspeitava e demonstrando que compreendera quanto estava em jogo.
Tratava-se, afinal, de convencer o pai a montar uma fábrica. Mas talvez não devesse chamar-se-lhe fábrica, antes apenas uma espécie de oficina com teares manuais, não além de uma dúzia e meia, utilizando lã já em fio, comprado às fiações especializadas ou às secções especializadas de fiação das grandes fábricas generalistas.
Coisa pequena, sem grande investimento, e de pouco risco, portanto. Mas trabalho garantido para uma dúzia ou duas de chefes de família ou rapazes solteiros, em vias de casar, que já não queriam a vida de campo e da agricultura como ocupação exclusiva e que sem a fábrica teriam que emigrar dentro de pouco tempo, então, sim, deixando a terra definitivamente mais pobre.
O lucro dos proprietários não seria grande, mas seria algum, e o pai-empresário poderia ter, teria um pretexto para deixar o comércio de lãs, em que andava havia quarenta anos e que agora estava cada vez mais nas mãos de alguns tubarões.
Pois que mais, então?
Mais? Que o pai não acreditava naquilo, que já dera o que tinha a dar na sua juventude, quando havia teares manuais em cada casa, trabalhando à força de braços das mulheres de todas as casas, raramente ou nunca dos homens.
Mas os teares agora – objectavam Zezinho e a mãe – seriam mais potentes e de maior produção, só homens poderiam tirar deles o rendimento todo, em jornadas de trabalho limitadas a oito horas/dia, com salários mínimos garantidos; e, melhor ainda, com férias anuais pagas, impostas pelo Instituto Nacional do Trabalho e Previdência e que até poderiam ser pagas a dobrar, se os tecelões prescindissem das férias…
Outras vantagens mais…
Haveria trabalho para todos os tecelões e, no fim das oito horas de trabalho diário, todos deixavam a fábrica ao mesmo tempo, cada um para seu lado, para as suas casas ou para trabalharem no campo, nos seus bocados ou nos bocados doutros, que a fábrica fecharia às cinco da tarde, com muito sol ainda pela frente, na maior parte do ano… Que até as horas e os dias eram agora outra coisa, com a dita “hora de verão” estabelecida como coisa nova e para virar o mundo do trabalho do avesso, para melhor naturalmente…
Mas Zezinho Cruz, o líder condutor desta revolução de cima para baixo, só abalou as convicções e desconfianças do pai quando anunciou que tinha acabado de receber o pedido de fornecimento duns milhares de mantas de lã para Espanha, onde se esperava que o Outono daí a seis meses seria extremamente rigoroso para a população debilitada por já dois anos e tal de guerra, desorganização e morte.
O Outono chegou pontualmente a Espanha e rigoroso como os meteorologistas previam, de modo que o fornecimento também pontual das mantas foi um sucesso e quase uma obra de solidariedade cristã que deixou milhares de nacionalistas espanhóis gratos para sempre a Portugal.
Tanto mais que, com o fim da guerra, uns meses depois, os espanhóis desocupados foram em massa para a vida civil fazer filhos em barda às suas mulheres e noivas, filhos que nasceram durante o outro Inverno e aos quais deram imenso arranjo novas remessas de mantas made in Portugal/Seia.
O baby boom espanhol foi extraordinariamente proveitoso também para Portugal, esse boom do tipo que ao longo da História engulhos vários nos causou.
Mas o empresário Zezinho Cruz teve, com isto, uma inspiração publicitária da primeira apanha.
Passou a proclamar aos clientes e potenciais clientes que as suas mantas e tecidos de lã, em geral, não eram mais caros que os de outras origens, porque incorporavam todas as virtudes do artesanato e da tradição nacional de qualidade.
“Produzidos à mão em teares artesanais…”
Já ficando afogado em encomendas.
E o pai definitivamente convertido ficou.
As escolas primárias do concelho e adjacências deram à campanha um suplemento de alma sem preço: os professores levaram sucessivamente os alunos todos a visitar a única fábrica do País que produzia tecidos de lã industrialmente, pelos métodos tradicionais do artesanato de alta qualidade.
Foi mais uma confirmação de estar em curso a invenção e consolidação duma escola especificamente portuguesa de propaganda política e publicidade comercial, nos anos trinta...
O Secretariado Nacional da Propaganda deu o aval e apoiou a iniciativa como um modelo a seguir fielmente.
E numa pequena aldeia do Interior mostrava-se "como é"!
A.C.R.
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