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2007/05/29

Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte V – N.º 20 

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No dia seguinte – dia de São Marcos – o “pessoal” foi chegando aos poucos ao terreiro, o largo principal, quase único, da povoação, à volta da capela e cenário naturalmente preferido dos festejos e festeiros.

Muitos dos homens não tinham chegado a deitar-se, principalmente os mordomos, agitando-se agora mais, entre estes, os que tinham a seu cargo tratar dos bezerros, um par deles e dois pares de chifres.

Comprar os novilhos ou vitelos fora a primeira “dor de cabeça” dos dois mordomos a quem fora destinada essa tarefa de primeira grandeza.

Em primeiro lugar porque, comprados e pagos, tinham que ser vendidos, em arrematação, por mais ou muito mais que o seu custo, e interessados que afluíssem à festa era preciso andar pelas redondezas atrás deles, nas antevésperas, convencendo-os da honra e proveito que era arrematar os vitelos de São Marcos.

Já acontecera um ano que não houvera interessados à altura e os vitelos acabaram, no dia seguinte ao da Festa, mortos e assados no “largo do forno” e comidos por toda a população, que ainda levou fartura de carne para suas casas.

Fora uma loucura desesperada dos mordomos, que nenhum dos que vieram depois desejaria sujeitar-se a repetir, porque o prejuízo, apesar da generosidade dos da terra e dalguns peregrinos vindos de mais longe, fora grande para as contas da grandiosa celebração do Santo.

Os bezerros não entrariam na capela, que era pequena, mas só desde poucos anos antes, porque o Prior da paróquia dera em considerar que era uma falta de respeito à Santa Eucaristia.

Os mordomos estavam ainda divididos quanto a esta decisão contra as tradições, mas não tinham argumentos desde que uma vez os bezerros se tinham borrado todos mesmo à saída da capela, chifres de todo floridos e prontos para a procissão.


Ainda havia os brejeiros ou mais dados à pilhéria muito gasta, dos que sugeriam clisteres para lhes despejarem os intestinos antes que fosse tarde.

Era cada vez mais desesperante, porque se não fosse à porta da capela – como aliás nunca mais acontecera – calhava sempre em qualquer ponto da procissão, no começo, a meio ou no fim, ou depois do fim.

Razão tinha o senhor Prior que aliás, depois da primeira vitória, não desistiria de acabar com o costume “pagão”, ele ou seu sucessor, meia dúzia de anos mais tarde, com o decidido e decisivo apoio do senhor Bispo da Diocese da Guarda, que teimava em “ regenerar” o culto.


Acrescia, pontificavam os entendidos, que o animal relacionado com São Marcos não era o boi mas o leão, “como em Veneza”.

O boi era atributo de São Lucas.

Porquê acontecera a troca, ninguém sabia e não era exclusiva da Folgosa do Salvador, estava documentado mas não interessava insistir.

Um chalaceiro pensava e sugeria alto que a encomenda da imagem, feita cinquenta anos antes num santeiro de Braga, fora de facto, por engano, encomenda de um São Lucas.

Depois não houvera remédio, senão chamar-lhe de São Marcos, para sempre, por muitos engulhos que tal causasse aos menos ignorantes ou menos distraídos.

No ano da Festa que estou a acompanhar, por notável excepção, a procissão pelas ruas todas da aldeia correu extraordinariamente bem e não houve a lamentar o mínimo incidente ou porcaria.

Os mordomos foram muito felicitados e respondiam alegremente aos que lhe perguntavam como fora aquilo…

“Tivemos os bichos sem comer quarenta e oito horas, demos-lhes só, à última hora, umas bolachas para se aguentarem de pé até ao fim da procissão…”

“Ó raios! Mas então não vão render na arrematação coisa que se veja, que devem ter perdido muito peso e não enganamos os arrematantes!” – berraram-lhes os mordomos do ano anterior, que para ali estavam rogando ao Senhor São Marcos, no seu íntimo mais íntimo, que tudo corresse pelo pior aos colegas deste ano, sendo possível…

Mas parecia castigo destes tão mal-intencionados…

Há mais de vinte anos que os bezerros não davam tanto lucro!

Quem os escolhera?... Quem os não escolhera?... Onde estaria o homem tão jeitoso naquela arte?... – perguntava o arrematante por todo o lado.

Trouxeram-lho passado um grande bocado. Era o moço Rufino, o da noitada da antevéspera em Seia e dos músculos das pernas treinadas à pedalada, para o efeito que só ele sabia. E fizeram ali mesmo negócio. O arrematante quis logo dar-lhe uns tantos por cento sobre o valor da sua compra e prometeu que lhe daria outros tantos por cada par de bezerros que lhe trouxesse daquela qualidade, fosse qual fosse a altura do ano.

Rufino saiu dali a correr, feliz com o dinheiro no bolso que tanto jeito lhe fazia, principalmente porque assim tinha com que comprar uma prenda para a afilhadita que ia sair na procissão, vestida de anjinho. Nas mãos, em cima duma pequena almofada, levava presa por alfinetes a coroa de prata da imagem de Nª Sª da Conceição do altar-mor.

Conseguiu ele apanhar a procissão e ainda teve tempo de dizer à afilhada, ao ouvido, a promessa da prenda que ia dar-lhe.

Ainda hoje! - soprou mais alto ao ouvido da pequenita - Ainda hoje, se apanharmos alguma venda aberta, depois da Festa! – garantiu enquanto ela procurava outra vez o seu alinhamento na procissão, muito mais compenetrada no seu papel de pagadora de promessas alheias, novamente este ano.

No seu caso, era a promessa feita por uma mãe, sua tia, de vestir de anjo uma miúda da aldeia, para a procissão de São Marcos, se São Marcos lhe curasse da escarlatina a filhita mais pequena.

A afilhada de Rufino ia cumprir essa promessa duma mãe muito feliz, que o Santo ouvira e tão bem entendera.

A.C.R.

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