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2007/03/28

Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte IV – N.º 17 

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O grande progresso mais recente era agora que os comerciantes brancos portugueses, em vez de instalarem os seus estabelecimentos dentro das sanzalas ou muito perto, procuravam de preferência um espaço mais amplo e arejado, a um ou dois quilómetros. Constituindo assim, em cada caso, uma espécie de pequena zona comercial, os nativos afluíam aí com gosto para espairecer e ver coisas novas, como iam às missões e à catequese, no domingo e às vezes sábado à tarde.

Melhor ainda se muito perto da gare do caminho-de-ferro que é também lugar de encontro de muitos curiosos e viciados do Terceiro Mundo…

Mas sobretudo, sobretudo, que fosse um local sem vistas para a sanzala mais próxima.

Em geral, se houvesse missão, católica ou protestante, também não deveria ficar longe da zona comercial.

E o acampamento militar, sendo caso disso, também ficava por perto, sempre em ponto ligeiramente mais alto que os restantes.

Habituado ainda à topografia das aldeias da Beira, “capitão” Gomes, depois das primeiras impressões, perguntava sempre…

- E o fontanário?

- E a igreja?

- E o cemitério?

Cemitério não havia, no sentido europeu.

Os negros continuavam a enterrar-se como e onde mandavam as suas tradições e os brancos achavam abrigo no terreiro da missão, à beira da igreja, num espaço reservado em todas para “campo santo”, como lhe chamavam os missionários, à boa maneira dos clássicos.

“Campo santo” de brancos, mas também para os nativos que preferissem as proximidades da igreja da missão que lhes condicionava e dera outro sentido às vidas.

Foi visitando um desses pouquíssimo povoados “campos santos” que Zé Gomes sentiu necessidade súbita de pensar como ser sepultado um dia, mas no cemitério da sua aldeia.

Não queria deixar nada ao acaso, não lhe estava no feitio.

Não fizera ainda vinte e cinco anos!

Mas… “ele há viver e morrer”…

Claro, não era a primeira vez que pensava no assunto e já tinha as suas ideias sobre ele, porque a idade dos pais o fizera ultimamente começar a lembrar-se com mais frequência da morte.

Embora ambos estivessem ainda na casa dos cinquenta.

Mas nesses tempos a esperança de vida dos portugueses, homens e mulheres, não chegava aos sessenta anos, vejam lá.

Já decidira, queria um jazigo de família, mas os pais não deveriam saber disso. O irmão mais chocarreiro haveria de lembrar-se de dizer que ele, Zé, estava com pressa de os ver mortos a todos, avós, pais, tios e irmãos.

E como arranjaria um jazigo para tanta gente?

Um dinheirão, com certeza!

Não lhe faltava e isso dava-lhe um pretexto para andar de pressa.

Como podia dar-lhe para não ter pressa.

Viera para África com dois sonhos, que neste tempo de luta desenfreada e sem tréguas, quase esquecera: voltar à sua aldeia com dinheiro bastante para construir o mais belo dos jazigos para a família, os avós e os pais nos lugares de honra, a casa dos mortos a ressumar dignidade; e construir a casa das suas vidas, para todos enquanto vivessem e tão bela e grandiosa pelo menos como a casa mais imponente e invejável que conhecia, a Casa das Obras, em Seia, o solar dos Stokler Mendonça Arraes.

Do jazigo já tinha algumas ideias, todos os elementos decorativos e religiosos já estavam na sua cabeça, incluindo outros adornos alusivos à vida da família e à sua própria vida tão curta e tão intensa e sofrida, como “o capitão” gostava de imaginá-la. A África, a sua vida de África, teria de ficar simbolizada na fachada do jazigo, em forma de capela, por elementos da fauna e da flora, talvez uma serpente no meio da vegetação também caracteristicamente africana e tropical.

Quanto à Casa das Obras, fiava mais fino.

Bem, apesar de já ter muito mais do que alguma vez imaginara vir a ter, não acreditava ainda que chegasse a possuir dinheiro bastante para mandar construir nada de tão grandioso e opulento como o solar da Casa das Obras, com o seu magnífico terreiro em frente e o soberbo jardim das magnólias ao lado.

Começava a descobrir a deliciosa nostalgia e o entusiasmo pelas origens, mas seria tudo assim tão descabido e desmedido?

A.C.R.

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