2007/03/19
Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte IV – N.º 13
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Uma manhã, o “capitão” Gomes apareceu ao coronel, na sua tenda do acampamento do contingente militar europeu, levando-lhe o Ilustre Amâncio, “representante diplomático” de Portugal, enfarpelado como devia ser e de acordo com as normas da diplomacia na zona equatorial.
Mas, em todo o caso, farpela reforçada com um velho soberbo laço – em admirável estado de conservação – que a mulher preta acabara por atrever-se a arrancar do fundo duma chapeleira de cartão muito usada, para com extraordinária ternura o ir ajeitar à volta do cachaço do seu homem, com inegável elegância.
Depois ela, sorrindo orgulhosa, arrastou o homem para o pé dum caco de espelho, pendurado sobre um velho lavatório de ferro basto enferrujado e, forçando-o a mirar-se no caco de espelho, gritou repetidamente…
- Bué de estalo! Bué de estalo!...
O coronel não deixava de abrir a boca de espanto e foi-a abrindo cada vez mais – discretamente mesmo assim, porque era um senhor, à maneira da velha Flandres – mas, às primeiras palavras torrenciais de Amâncio, acabou por achar-se de todo siderado, pela natureza do desarrincanço que desatou a sair-lhe da boca, ainda Gomes não tivera tempo de chegar ao melhor da sua apresentação do compatriota. Depois, teria sido um não mais acabar, se o coronel não aproveitasse uma aberta para mandar buscar os papéis a assinar “entre as duas Potências”, e que de facto foram assinados depois de o Ilustre “representante” de Portugal os ter lido demoradamente e com muita concentração, sempre sem pedir qualquer explicação nem opor objecção alguma.
Os textos eram conhecidos havia dias pelas duas partes, depois de muito discutidos por intermédio de Gomes que fizera numerosas corridas a cavalo entre a sanzala de Amâncio, o acampamento e a sanzala.
À despedida, o coronel acompanhou os visitantes à porta da sua tenda, onde se separaram com muitas vénias e mesuras, da parte do Ilustre, e sorrisos de ostensivo triunfo, da parte do coronel.
Efectivamente, Mckenzie sentia-se inchado do valor diplomático da “declaração” que acabava de assinar, mas de facto redigida com supostos ardis por Zé Gomes.
Como não se sentia seguro dos ardis, Zé Gomes apressou-se a voltar sozinho à tenda do coronel, porque queria descobrir onde guardaria ele a “declaração”, uma vez que já congeminara uma maneira de fazê-la desaparecer. Não em proveito próprio, mas porque podia ser usada contra Portugal, achava ele, “pensando melhor”.
Em todo o caso, não pôde o “capitão” Gomes fazer nada dessa vez, porque o coronel se achava acompanhado por um personagem que o próprio Zé Gomes lhe apresentara dias antes, mas que de pressa parecia ter-se-lhe tornado indispensável.
Era um vietnamita originário da colónia francesa da Indochina, vindo de lá com todos os outros imigrados indochineses e usando o nome de Nguyen Van Than, na geração seguinte substituído aliás por um nome de guerra e clandestinidade, futuramente famoso, o consabido nome de Ho Chi-Minh.
Ninguém poderia, na altura, adivinhá-lo e os motivos de glória para tanto pareceriam gratuitos ou improcedentes, de tal modo os êxitos do marxismo eram então, por volta de 1889, mais que imprevisíveis e ainda incertas as suas probabilidades de expansão à escala mundial.
Tratava-se, de facto, do futuro pai do mais famoso comunista asiático de todos os tempos, logo a seguir ao “imensamente grande” Mao Tsé-Tung, o chinês, ou fosse aquele de facto o indochinês mundialmente conhecido simplesmente por Ho Chi-Minh.
Nesse tempo, não estava Ho Chi-Minh sequer para nascer em pessoa, quanto mais para a História. E o pai era assíduo frequentador de colonialistas franceses, homem de confiança do governo francês da Indochina que despachava os vietnamitas para o Congo capitalista, e homem completamente rendido aos belgas, principalmente o coronel e o engenheiro-director todo-poderoso do caminho-de-ferro, como chefe comprovadamente drástico que era de compatriotas seus a trabalharem na via férrea capitalista do Baixo Congo.
Poderão não estar enganadas as “minhas memórias”?
Pelo menos assim mo asseguram outros de cujas memórias também me venho servindo.
Legitimamente, de resto, porque a verdade histórica é uma coisa e outra são as “memórias das minhas Aldeias”, memórias de todos e de ninguém em particular, mas quantas vezes mais seguras e profundas, mais reveladoras e mais expressivas, mais clarificadoras e com menos lacunas que as “verdades” propriamente históricas, que não raro passam de facto ao lado do real sentido da História…
A.C.R.
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