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2007/03/05

Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte IV – N.º 07 

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O telegrama cifrado de Stanley para Manuel Cruz, chegado dois dias depois de findar a Conferência e dando notícias do sucesso dela, plenamente conseguido, continha porém notícias ainda mais importantes para a soldadagem e auxiliares, a tropa da milícia, porque os aliviava completamente dos seus receios quanto à desmobilização e consequente desemprego. Mas também cessava, para muitos, a angústia dum projecto de vida profundamente assumido, que já não teria de ser abandonado a meio.

Ah! Quando soubessem que tudo prometia, afinal, correr pelo melhor…

O “capitão” Gomes deveria assumir plenamente o comando da milícia, em nome do Rei Leopoldo II da Bélgica, doravante Rei também e Senhor do novo Estado, o Estado Livre do Congo, acabado de criar.

Os órgãos e instrumentos da soberania passavam a ser da responsabilidade total do Rei, não da Bélgica, mas do Rei pessoalmente, um Rei à maneira medieval e pós-renascentista, pois que, no fundo, como os melhores comentadores explicavam, e em Berlim ficara estabelecido, o Congo, isto é, o Estado Livre do Congo, não passava de uma propriedade pessoal do Rei.

No fim do séc. XIX, à beira do séc. XX, o regresso do feudalismo em cheio!

Natural, pois, que a milícia desaparecesse como tal e fosse plenamente integrada nas forças armadas do novo Estado, reconhecido telegraficamente por todos os Estados soberanos da Terra, nos oito dias que se seguiram ao termo da Conferência de Berlim.

Na verdade, também, e apesar de todas as aparências formais, começavam agora as maiores oportunidades dos belgas também.

Teriam eles unhas e iniciativa para aproveitá-las?

As dúvidas eram muitas, porque poucos belgas pareciam dispostos aos riscos que isso implicava.

Por isso talvez, as oportunidades dos portugueses continuariam, por muito tempo, ainda em alta.

O “capitão” Gomes foi dos primeiros a compreendê-lo.

Com ele combinou Manuel Cruz – formalmente, não, mas implicitamente, sim – que a real decisão sobre a sua cessação de funções seria essa tarde comunicada à tropa, no acampamento, com a leitura do telegrama, a fazer pelo próprio Manuel Cruz.

Não faltou um único homem!

Um desvario de aplausos de negros, portugueses e belgas acompanhou toda a leitura, a partir do momento em que compreenderam que o futuro de todos estava assegurado, não ia passar por solavanco algum.

Então, quando Manuel Cruz, para acabar, acrescentou a parte final da carta, foi o pleno delírio. Por aí se dizer que a “milícia” – todos os seus membros continuariam a conhecê-la por tal, durante muito tempo – que a “milícia”, insistiu Manuel, deveria aguardar, no mesmo regime de acampamento que até aí, a chegada do primeiro contingente de tropas europeias, a cujo comando a milícia passaria então a obedecer. Tanto que os fundos necessários ao funcionamento dela, incluindo todos os salários, passariam também a ser responsabilidade do Rei, e pagos através da estrutura administrativa colonial a instalar em breve em todas as localidades importantes do Congo, como Boma, Matadi, Basankusu ou Kinshasa.

Foi então mais que delírio, foi uma colossal explosão, uma série de explosões que só terminaram quando os negros, fazendo calar tudo o mais, irromperam a cantar a brabançonne*, na mais perfeita harmonia marcial.

Houve uma sensação generalizada de viver-se um momento único.

Com a sua argúcia rara, o “capitão” Gomes viu naquela explosão emocional, a que ninguém deixou de associar-se, o símbolo da união de três povos, os nativos, os portugueses e os belgas, fossem flamengos ou valões, símbolo à volta do qual acabava de fazer-se a suprema unidade em que ia forjar-se a construção e consolidação da nova realidade política de repercussão mundial, que dali pela primeira vez se pretendia fazer ecoar pelo mundo inteiro.

Muitos dos valentes, com bastas provas dadas, choravam copiosamente, a começar pelos belgas.

Antes de partir para o seu hotelzito em Boma, Manuel Cruz fez questão de despedir-se dos presentes, sem excepção, a começar pelos soldados nativos, apertando a todos a mão, um por um.

Quando quis dirigir-se aos brancos, já encontrou belgas e portugueses muito dispersos. Mesmo assim ainda deu com um razoável grupo de belgas.

Mas todos os belgas foram recusando apertar-lhe a mão, dando sucessivamente a entender, por palavras e por gestos de repugnância ostensiva, muito sérios, que não podiam fazê-lo sem ele ter ido lavar-se primeiro, depois de apertar as mãos de tantos e tantos pretos, a toda “a pretalhada”.

Foi a primeira manifestação colectiva e pública do feroz racismo dos belgas (tanto de flamengos como de valões), o qual, no plano social como no privado, iria caracterizar fundamentalmente o domínio belga do Congo, quase até ao fim, em 1961.

Estranha e surpreendente sensação para o português, que nunca veio a compreender aquela falta de senso político dos novos colonizadores.

A.C.R.

*Hino oficial da Bélgica

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