2007/02/26
Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte IV – N.º 04
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Uma manhã, em maré de recordações autobiográficas, Zé Gomes desatou a falar, meio encavacado, é certo, da sua “experiência” de caminhos-de-ferro, através daquilo que o pai, um “apaixonado do progresso” – disse o filho – lhe havia contado do seu trabalho na empreitada da Linha do Norte. A rir e como que a medo foi adiantando que o pai o fizera praticar com ele nos artifícios dos preparatórios para o traçado duma linha sobre as cartas geográficas.
Primeiro, no quintal da casa, no Vimieiro, e depois, alargando quanto possível o raio de acção dos supostos aparelhos de mira, já em terrenos vizinhos, para lá bastante da casa onde moravam.
O pai trabalhava então no troço de via férrea da Pampilhosa, apenas a vinte e tal quilómetros de casa, e, como comprara um cavalito, quase todos os domingos ia a casa, forçando o filho a seguir-lhe as lições, depois da missa, porque se lhe metera na cabeça que o moço tinha de vir a ser ajudante qualificado de engenheiros dos caminhos-de-ferro, a seus olhos as mais prodigiosas encarnações da Ciência e do progresso.
Porque, como Stanley… também ele tinha a certeza de os caminhos-de-ferro serem o futuro, nas suas mais radiosas expectativas.
E ainda o caminho-de-ferro não passara em Santa Comba Dão!
Mas passaria, havia de passar, seguramente em breve.
Ele Zé Gomes, porém, não tivera paciência para esperar por essa grande oportunidade que em poucos anos traria a Santa Comba Dão a expressão máxima do progresso, então já algo requentado por toda a Europa…
Zé Gomes, tendo-lhe chegado notícias entusiásticas das grandes oportunidades que aconteciam em África, particularmente no Norte de Angola/Foz do Zaire, não hesitou minimamente e convenceu o pai a pagar-lhe a passagem para o porto de Matadi, onde não deixaria também de haver, com certeza, caminhos-de-ferro a construir. Como se adivinhasse. A carta de chamada passou-lha um grande comerciante congolês de Tazem. Stanley ouviu, ouviu e não quis acreditar em tanta premonição, tanta futurologia a posteriori, demasiado oportunista, afigurava-se-lhe. Desconfiava profundamente do rapaz, em quem via ou julgava adivinhar um arrivista do pior, ainda que sem negar alguns indícios de verdadeiro génio organizador e grande sentido das oportunidades a não perder, que o rapaz começara a revelar, mal partidos de Matadi, onde o acaso os fizera encontrarem-se.
O facto é que Stanley não desencorajou o rapaz que, não obstante a sua atenção permanente às movimentações da rapaziada “dos tiros”, bem carecida de mão de ferro, foi a passo e passo desenhando o seu traçado do futuro primeiro caminho-de-ferro do Congo, sobre as cartas do “comando” que Stanley e Manuel Cruz se resignaram a confiar-lhe, depois de o sentirem convictamente empertigado.
Quase um ano depois de sair de Matadi, o destacamento chegou ao pool de Kinshasa. Mas, segundo Stanley, teriam de acelerar os trabalhos concretizados até ali, porque o esperavam a ele na Europa, com as declarações dos sobas a favor da AIC, para uma conferência internacional muito importante que teria lugar daí a menos de dois anos, promovida por Bismark e, sob a batuta dele, todos os agentes dos Estados europeus imperialistas, democráticos e não democráticos.
Era a primeira vez que o americano revelava a Manuel, tão explicitamente, o calendário próximo do seu programa e intenções, não obstante Manuel conhecesse havia muito para que eram as declarações dos sobas, que Stanley esperava obter com tal dispêndio de dinheiro e outros recursos que não podia acreditar-se não houvesse por trás de tudo, os maiores desígnios de alta política, movidos por forças excepcionais de grandes Estados e grandes estadistas.
Stanley decidiu que não iriam além de Kinshasa mais que cem a cento cinquenta quilómetros, para completar os objectivos de submissão dos sobas que se propusera e era indispensável atingir para apresentar ao Rei Leopoldo II antes de começar a suposta grande conferência.
Quando voltaram a Matadi, completado o giro ao Norte de Kinshasa e o regresso ao ponto de partida, agora distanciando-se em importância cada vez mais e mais rapidamente do porto de Boma, Stanley completara largamente o seu programa de “recolha de assinaturas” dos sobas. E sobretudo tinha à sua espera, chegados nos últimos três dias, três telegramas da AIC – Associação Internacional do Congo, a impor-lhe que regressasse à Europa no primeiro vapor que passasse, pois a conferência estava marcada para fins de 1885, daí a quase um ano, em Berlim, mas havia muito que conversar e negociar antes.
Exigia-se-lhe que não perdesse tempo a partir e, por fim, que deixasse a tropa entregue aos portugueses que seriam regularmente e suficientemente abastecidos de fundos para a manutenção e desenvolvimento dela, até um efectivo de duzentos homens que havia de constituir o principal apoio às primeiras forças do exército colonial logo que constituído, na devida oportunidade.
Tudo em cifrado, claro.
E tudo como previsto, lembrou-se Manuel, mal soube.
Mas não tinha vontade alguma de continuar envolvido no projecto da força militar a que dera total colaboração desde o início. Agora que Stanley, aquele fantástico camarada, ia embora, para muito provavelmente não voltar – pensava Manuel – precisava ele de cortar os laços que o prendiam ao projecto da AIC.
Talvez Zé Gomes pudesse substituí-lo!
Foi uma inspiração que lhe deu de momento.
E por que não?
Revelara-se um táctico excepcional.
E talvez não se tivesse revelado como estratega só porque não lhe haviam cabido até então responsabilidades dessa ordem.
Tanto que o próprio Stanley, embora depois de muito instado, acabou por concordar com a indicação de Zé Gomes, pois não tinha registado, ao longo da “grande marcha”, um único erro cometido pelo “capitão” Gomes, como todos já lhe chamavam, ou que ele não tivesse reparado prontamente.
Facto era inquestionavelmente que o “arrivista” e “cínico” Zé revelara, em apenas dois anos, toda a sua fibra, mesmo aos olhos dum Stanley desconfiado por sistema. Habituara-se ele sem dúvida ao génio surpreendente dalguns daqueles homens morenos e pequenitos, mas que eram em muitas circunstâncias tão desenrascados que facilmente se tornavam perigosos e temíveis improvisadores.
Por isso se sentira Stanley obrigado a impor-lhes condições.
A.C.R.
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Uma manhã, em maré de recordações autobiográficas, Zé Gomes desatou a falar, meio encavacado, é certo, da sua “experiência” de caminhos-de-ferro, através daquilo que o pai, um “apaixonado do progresso” – disse o filho – lhe havia contado do seu trabalho na empreitada da Linha do Norte. A rir e como que a medo foi adiantando que o pai o fizera praticar com ele nos artifícios dos preparatórios para o traçado duma linha sobre as cartas geográficas.
Primeiro, no quintal da casa, no Vimieiro, e depois, alargando quanto possível o raio de acção dos supostos aparelhos de mira, já em terrenos vizinhos, para lá bastante da casa onde moravam.
O pai trabalhava então no troço de via férrea da Pampilhosa, apenas a vinte e tal quilómetros de casa, e, como comprara um cavalito, quase todos os domingos ia a casa, forçando o filho a seguir-lhe as lições, depois da missa, porque se lhe metera na cabeça que o moço tinha de vir a ser ajudante qualificado de engenheiros dos caminhos-de-ferro, a seus olhos as mais prodigiosas encarnações da Ciência e do progresso.
Porque, como Stanley… também ele tinha a certeza de os caminhos-de-ferro serem o futuro, nas suas mais radiosas expectativas.
E ainda o caminho-de-ferro não passara em Santa Comba Dão!
Mas passaria, havia de passar, seguramente em breve.
Ele Zé Gomes, porém, não tivera paciência para esperar por essa grande oportunidade que em poucos anos traria a Santa Comba Dão a expressão máxima do progresso, então já algo requentado por toda a Europa…
Zé Gomes, tendo-lhe chegado notícias entusiásticas das grandes oportunidades que aconteciam em África, particularmente no Norte de Angola/Foz do Zaire, não hesitou minimamente e convenceu o pai a pagar-lhe a passagem para o porto de Matadi, onde não deixaria também de haver, com certeza, caminhos-de-ferro a construir. Como se adivinhasse. A carta de chamada passou-lha um grande comerciante congolês de Tazem. Stanley ouviu, ouviu e não quis acreditar em tanta premonição, tanta futurologia a posteriori, demasiado oportunista, afigurava-se-lhe. Desconfiava profundamente do rapaz, em quem via ou julgava adivinhar um arrivista do pior, ainda que sem negar alguns indícios de verdadeiro génio organizador e grande sentido das oportunidades a não perder, que o rapaz começara a revelar, mal partidos de Matadi, onde o acaso os fizera encontrarem-se.
O facto é que Stanley não desencorajou o rapaz que, não obstante a sua atenção permanente às movimentações da rapaziada “dos tiros”, bem carecida de mão de ferro, foi a passo e passo desenhando o seu traçado do futuro primeiro caminho-de-ferro do Congo, sobre as cartas do “comando” que Stanley e Manuel Cruz se resignaram a confiar-lhe, depois de o sentirem convictamente empertigado.
Quase um ano depois de sair de Matadi, o destacamento chegou ao pool de Kinshasa. Mas, segundo Stanley, teriam de acelerar os trabalhos concretizados até ali, porque o esperavam a ele na Europa, com as declarações dos sobas a favor da AIC, para uma conferência internacional muito importante que teria lugar daí a menos de dois anos, promovida por Bismark e, sob a batuta dele, todos os agentes dos Estados europeus imperialistas, democráticos e não democráticos.
Era a primeira vez que o americano revelava a Manuel, tão explicitamente, o calendário próximo do seu programa e intenções, não obstante Manuel conhecesse havia muito para que eram as declarações dos sobas, que Stanley esperava obter com tal dispêndio de dinheiro e outros recursos que não podia acreditar-se não houvesse por trás de tudo, os maiores desígnios de alta política, movidos por forças excepcionais de grandes Estados e grandes estadistas.
Stanley decidiu que não iriam além de Kinshasa mais que cem a cento cinquenta quilómetros, para completar os objectivos de submissão dos sobas que se propusera e era indispensável atingir para apresentar ao Rei Leopoldo II antes de começar a suposta grande conferência.
Quando voltaram a Matadi, completado o giro ao Norte de Kinshasa e o regresso ao ponto de partida, agora distanciando-se em importância cada vez mais e mais rapidamente do porto de Boma, Stanley completara largamente o seu programa de “recolha de assinaturas” dos sobas. E sobretudo tinha à sua espera, chegados nos últimos três dias, três telegramas da AIC – Associação Internacional do Congo, a impor-lhe que regressasse à Europa no primeiro vapor que passasse, pois a conferência estava marcada para fins de 1885, daí a quase um ano, em Berlim, mas havia muito que conversar e negociar antes.
Exigia-se-lhe que não perdesse tempo a partir e, por fim, que deixasse a tropa entregue aos portugueses que seriam regularmente e suficientemente abastecidos de fundos para a manutenção e desenvolvimento dela, até um efectivo de duzentos homens que havia de constituir o principal apoio às primeiras forças do exército colonial logo que constituído, na devida oportunidade.
Tudo em cifrado, claro.
E tudo como previsto, lembrou-se Manuel, mal soube.
Mas não tinha vontade alguma de continuar envolvido no projecto da força militar a que dera total colaboração desde o início. Agora que Stanley, aquele fantástico camarada, ia embora, para muito provavelmente não voltar – pensava Manuel – precisava ele de cortar os laços que o prendiam ao projecto da AIC.
Talvez Zé Gomes pudesse substituí-lo!
Foi uma inspiração que lhe deu de momento.
E por que não?
Revelara-se um táctico excepcional.
E talvez não se tivesse revelado como estratega só porque não lhe haviam cabido até então responsabilidades dessa ordem.
Tanto que o próprio Stanley, embora depois de muito instado, acabou por concordar com a indicação de Zé Gomes, pois não tinha registado, ao longo da “grande marcha”, um único erro cometido pelo “capitão” Gomes, como todos já lhe chamavam, ou que ele não tivesse reparado prontamente.
Facto era inquestionavelmente que o “arrivista” e “cínico” Zé revelara, em apenas dois anos, toda a sua fibra, mesmo aos olhos dum Stanley desconfiado por sistema. Habituara-se ele sem dúvida ao génio surpreendente dalguns daqueles homens morenos e pequenitos, mas que eram em muitas circunstâncias tão desenrascados que facilmente se tornavam perigosos e temíveis improvisadores.
Por isso se sentira Stanley obrigado a impor-lhes condições.
A.C.R.
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