2007/02/19
Memórias das minhas Aldeias
Esquecimentos da História
Parte IV – N.º 01
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Nos bolsos desde Boma, Manuel Cruz levava consigo a última carta que lhe chegara do irmão Raul, uma longuíssima carta, a compensar o irmão mais velho do seu silêncio de alguns meses. Não porque não acontecesse nada lá na Metrópole, mas exactamente o contrário, explicava Raul. Isto é, por ter andado enormemente ocupado com muitas e importantes coisas que, anunciava Raul logo no princípio, a abrir-lhe o apetite, haviam de surpreender agradavelmente Manuel.
Raul encontrara finalmente a mulher de todos os seus sonhos e apaixonara-se doidamente por ela!
A palavra não era particularmente inspirada ou original, mas Raul assegurava que a sua paixão era retribuída na mesma medida. A ponto de não perder a ocasião para lamentar… “Pena que não tenha uma irmã por quem pudesses apaixonar-te também. Apenas um irmão mais velho…”
Como descobrira Raul aquele tesouro, de seu nome Francisca Mariana?
Vivia em Arganil ou muito próximo, num antigo mosteiro de frades crúzios, cujo mosteiro principal fora Santa Cruz de Coimbra, tão importante que aí estava sepultado o primeiro Rei de Portugal e que de Santa Cruz praticamente surgira a primeira Universidade portuguesa.
O avô paterno da deusa arrematara o mosteiro de Arganil na venda pública dos bens das Ordens Religiosas uns quarenta e tal anos antes. Transformado em residência solarenga da família Varela, mesmo assim ficaria sempre conhecido como o Mosteiro.
Também esse avô, como tantos outros, e já o próprio pai dele, fizera fortuna abastecendo tropas inglesas e portuguesas, em tempos de guerra, durante as três Invasões Francesas. Sem porém deixar de acorrer a necessidades das tropas francesas, quando muito carecidas e melhores pagadoras, o que também não era uma originalidade por aí além, nem era objecto de graves labéus se os operadores cuidavam de salvaguardar algumas aparências. Sobretudo se a esse ramo do negócio os operadores em causa sabiam juntar a reparação e construção de estradas e caminhos, por onde todos os beligerantes acabavam por ter de passar, o que também foi o caso na rede viária do Alva, de que Arganil era o pólo-chave.
Chamar-se-lhes-ia hoje empreendedores de sucesso, a esses operadores de negócios de grande iniciativa e excelente sentido das oportunidades que já vimos abundarem entre os beirões daqueles tempos, dos quais se podia dizer com muita propriedade que jamais deixavam seus créditos por mãos alheias.
Até porque, de facto, não perdoavam uma cobrança, insignificante que fosse.
O que quer dizer, no caso presente, que também por esse lado Raul viria a casar bem, muito bem mesmo.
Porque, quanto ao resto, nem se fala!
Francisca Mariana tinha os dezanove anos mais gentis que ambicionar se poderia, além de pose e maneiras perfeitas, a denunciarem as tradições aristocráticas da ascendência materna, muito apreciadas e cultivadas pela burguesia ascendente em geral e a de riba´Alva em particular, que também aqui se via e auto-estimava no papel de sucessora e herdeira das classes dirigentes do antigamente, as quais lhe vendiam as propriedades ao desbarato e lhe entregavam as filhas ou filhos sem preconceitos estranhos, nem necessidade de grandes justificações.
Terá sido essa facilidade de encaixe das afinidades sociais de um e de outro que tão rapidamente ajustou as cepas diversas de Raul Fonseca e Francisca Mariana Varela?
Talvez, mas sobretudo, creio, a pronta capacidade de decisão, largueza de meios e segurança de si ostentadas por Raul, que fora apresentado a Francisca Mariana um Domingo, à saída da missa na capela do Mosteiro, e que dois dias depois mandava entregar-lhe, por mão própria, uma carta…
Uma carta!
E que carta!
Uma declaração de amor empolgante e uma surpreendente proposta de casamento, sem esconder nada do currículo vertiginoso próprio, como quem não podia perder tempo, desde pai duma mulatinha a ex-negreiro muito aplicado e ex-industrial de sucesso em Angola, grande proprietário rural nas Beiras e afortunado proprietário urbano em Coimbra e Lisboa!
A carta foi logo discutidíssima entre a filha, que não parava de chorar e rir, a mãe, o pai e o irmão que acabava de chegar de Amarante, aonde fora acertar exactamente os últimos pormenores do seu próprio casamento.
A.C.R.
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Nos bolsos desde Boma, Manuel Cruz levava consigo a última carta que lhe chegara do irmão Raul, uma longuíssima carta, a compensar o irmão mais velho do seu silêncio de alguns meses. Não porque não acontecesse nada lá na Metrópole, mas exactamente o contrário, explicava Raul. Isto é, por ter andado enormemente ocupado com muitas e importantes coisas que, anunciava Raul logo no princípio, a abrir-lhe o apetite, haviam de surpreender agradavelmente Manuel.
Raul encontrara finalmente a mulher de todos os seus sonhos e apaixonara-se doidamente por ela!
A palavra não era particularmente inspirada ou original, mas Raul assegurava que a sua paixão era retribuída na mesma medida. A ponto de não perder a ocasião para lamentar… “Pena que não tenha uma irmã por quem pudesses apaixonar-te também. Apenas um irmão mais velho…”
Como descobrira Raul aquele tesouro, de seu nome Francisca Mariana?
Vivia em Arganil ou muito próximo, num antigo mosteiro de frades crúzios, cujo mosteiro principal fora Santa Cruz de Coimbra, tão importante que aí estava sepultado o primeiro Rei de Portugal e que de Santa Cruz praticamente surgira a primeira Universidade portuguesa.
O avô paterno da deusa arrematara o mosteiro de Arganil na venda pública dos bens das Ordens Religiosas uns quarenta e tal anos antes. Transformado em residência solarenga da família Varela, mesmo assim ficaria sempre conhecido como o Mosteiro.
Também esse avô, como tantos outros, e já o próprio pai dele, fizera fortuna abastecendo tropas inglesas e portuguesas, em tempos de guerra, durante as três Invasões Francesas. Sem porém deixar de acorrer a necessidades das tropas francesas, quando muito carecidas e melhores pagadoras, o que também não era uma originalidade por aí além, nem era objecto de graves labéus se os operadores cuidavam de salvaguardar algumas aparências. Sobretudo se a esse ramo do negócio os operadores em causa sabiam juntar a reparação e construção de estradas e caminhos, por onde todos os beligerantes acabavam por ter de passar, o que também foi o caso na rede viária do Alva, de que Arganil era o pólo-chave.
Chamar-se-lhes-ia hoje empreendedores de sucesso, a esses operadores de negócios de grande iniciativa e excelente sentido das oportunidades que já vimos abundarem entre os beirões daqueles tempos, dos quais se podia dizer com muita propriedade que jamais deixavam seus créditos por mãos alheias.
Até porque, de facto, não perdoavam uma cobrança, insignificante que fosse.
O que quer dizer, no caso presente, que também por esse lado Raul viria a casar bem, muito bem mesmo.
Porque, quanto ao resto, nem se fala!
Francisca Mariana tinha os dezanove anos mais gentis que ambicionar se poderia, além de pose e maneiras perfeitas, a denunciarem as tradições aristocráticas da ascendência materna, muito apreciadas e cultivadas pela burguesia ascendente em geral e a de riba´Alva em particular, que também aqui se via e auto-estimava no papel de sucessora e herdeira das classes dirigentes do antigamente, as quais lhe vendiam as propriedades ao desbarato e lhe entregavam as filhas ou filhos sem preconceitos estranhos, nem necessidade de grandes justificações.
Terá sido essa facilidade de encaixe das afinidades sociais de um e de outro que tão rapidamente ajustou as cepas diversas de Raul Fonseca e Francisca Mariana Varela?
Talvez, mas sobretudo, creio, a pronta capacidade de decisão, largueza de meios e segurança de si ostentadas por Raul, que fora apresentado a Francisca Mariana um Domingo, à saída da missa na capela do Mosteiro, e que dois dias depois mandava entregar-lhe, por mão própria, uma carta…
Uma carta!
E que carta!
Uma declaração de amor empolgante e uma surpreendente proposta de casamento, sem esconder nada do currículo vertiginoso próprio, como quem não podia perder tempo, desde pai duma mulatinha a ex-negreiro muito aplicado e ex-industrial de sucesso em Angola, grande proprietário rural nas Beiras e afortunado proprietário urbano em Coimbra e Lisboa!
A carta foi logo discutidíssima entre a filha, que não parava de chorar e rir, a mãe, o pai e o irmão que acabava de chegar de Amarante, aonde fora acertar exactamente os últimos pormenores do seu próprio casamento.
A.C.R.
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