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2007/02/09

Memórias das minhas Aldeias
Parte III – N.º 15 

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De facto, nem um só dos recrutados para o serviço do destacamento “Zaire-acima!”, fossem soldados, sargentos ou cabos (na altura, claro!), nem um só, repete-se, deixou também de aprender a ler, escrever e contar (somar, subtrair, multiplicar e dividir), com grande fluência. Em seis ou sete meses apenas. Neles se incluem os que antes haviam passado pelas escolas e catequeses das missões mas já tinham esquecido quase tudo, por falta de prática e de continuidade na aplicação dos parcos mas bem fundados conhecimentos então adquiridos, porventura mais sólidos e menos parcos que os actualmente adquiridos com mais quatro ou cinco anos de escolaridade obrigatória.

Henry Morton Stanley – que não podia estar ao par disto – achava algo estranho o regozijo de Manuel por estas constatações, mas também acabou por participar no gosto de ver os recrutas, ao fim dos treinos diários, aproveitarem os descansos para tirar dúvidas uns aos outros e desenvolverem-se surpreendentemente no entendimento e assimilação da sua língua, o português.

Aconteceu a olhos vistos.

Como se os treinos e exercícios militares fossem um permanente jogo de desafios sucessivos que os tornavam merecedores de ascenderem à compreensão e aprofundamento da língua.

Alguns negros sofriam mesmo a dor dum problema que os acicatava repetidamente.

Por que não haviam de aprender a ler e escrever também nas suas línguas nativas ou, pelo menos, na língua que era a dominante, e quase exclusiva de todos, como nas escolas das missões?

A explicação que acabou por lhes ser dada aquietou-os: os seus mestres não conheciam suficientemente a língua deles para os ensinarem a ler e escrever nela.

Ninguém poderia adivinhar então, mas todos os incorporados como soldados ou pequenos quadros militares da milícia de Stanley e Manuel Cruz vieram a constituir a base dos primeiros quadros da futura administração colonial belga, como do futuro exército da colónia. E até nem foram muito poucos os que chegaram a quadros superiores na administração ou no exército coloniais.

Estou a antecipar, sem necessidade…

A não ser para demonstrar que nenhum esforço era inútil ou imerecido com aquela gente, como já os missionários, desde uma porção de anos antes, no Ambriz, tinham repetidamente insistido com Manuel e Raul.

Finda a festa de encerramento da recruta, Henry e Manuel foram festejar a sós na grande tenda comum em que tinham sonhado, estudado, vivido, comido, dormido e planeado esses seis meses. Isto é, quando não andavam em operações lá fora, no meio dos recrutas, pouco a pouco solidamente transformados em soldados completos pelo treino árduo, por necessidade imperativa e pela força duma vocação neles descoberta e potenciada…

Como isso?

Graças, antes de mais, a dois homens em perfeita sintonia um com o outro, Henry Morton Stanley e Manuel Cruz Fonseca, movidos estranhamente pela mesma formidável fé.

Feitos o balanço do dia e o apanhado de toda a situação, decidiram eles que o destacamento militarizado, por ambos construído, partiria no dia seguinte para o desconhecido…

Para o desconhecido depois de desmantelado o acampamento e de arrumadas as mais diversas bagagens e os mais diversos equipamentos nos animais de carga; batedores à frente, a cavalo; e homens de armas na retaguarda, preparados para todas as surpresas.

Tudo segundo regras que de ora em diante iam ser as suas grandes normas de vida e de sobrevivência, indispensáveis ao sucesso que perseguiam todos juntos.

Henry Stanley e Manuel Cruz reservaram para si o porte e manejo do equipamento científico e técnico que lhes daria a qualquer momento as coordenadas das posições sucessivas do destacamento nos mapas da região.

Stanley fazia, naturalmente, questão de não voltar a perder-se com a sua “tropa” nas terras e florestas de África. Não tinha dúvidas, pois, que a missão em que estava investido agora obrigava a uma rigorosa determinação das coordenadas de todos os lugares que iriam visitar… ou atacar e submeter.

Não conseguia, porém, negar a si próprio que a maior razão da sua tranquilidade estava em levar os portugueses consigo. Os portugueses e a tropa que eles haviam treinado. Não só militarmente mas igualmente a entenderem-se todos na mesma língua, de que todos, todos os dias, aprendiam pelo menos uma boa dúzia de novos termos e locuções.

Em língua europeia!

Mas como eles se entendiam mesmo para lá da língua!

Era um entendimento ainda mais profundo, em termos de percursos históricos feitos em comum!

Conheciam-se e conviviam, ia para quatro séculos!

Enquanto o destacamento partia de Boma, para “um destino desconhecido”, essa tarde, passavam todos pelo meio de longas filas de gente que se despedia agitadamente de cada lado dos caminhos. Henry Stanley impressionou-se particularmente com vê-los acenar em desespero aos soldados e ver as mulheres que choravam com os filhos ao colo a chorarem também pelos pais, todos em altos gritos.

Manuel Cruz explicou-lhe.

“Lembram-se ainda, ou por ouvirem dizer, que, noutros tempos, os homens mas também as mulheres novas, partiam para muito longe, além do mar, para a escravatura, e não mais voltavam!”

Henry Stanley ouviu, pareceu ainda mais impressionado, e um bocado depois voltou para junto de Manuel já desanuviado e segredou-lhe.

“É preciso enganar essa gente, Manuel. Você tem de fazer constar que vamos conquistar terras longe daqui e muito ricas. Que depois mandamos as mulheres e os filhos irem ter todos com os maridos e pais.”

Não me contaram o que fez Manuel.

O certo é que em poucos minutos os choros e gritos deixaram de ouvir-se.

Manuel julgou então compreender melhor.

“Zaire-acima!”

Q.b.

A.C.R.

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