2007/02/05
Memórias das minhas Aldeias
Parte III – N.º 13
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Se eram boas notícias, porque não lhas dera logo?
Antes de partir para a Bélgica, ano e meio antes, Henry Stanley desfizera rapidamente o acampamento, pagando-lhes e mandando os negros às suas vidas, com excepção do intérprete (o “língua”), e instalando os raros belgas que não regressavam consigo a Bruxelas nos poucos, pequenos e mal amanhados albergues de Boma, todos de famílias portuguesas.
Foi num desses insignificantes albergues que, ao outro dia, Manuel Cruz foi procurar Stanley, que o acolheu sem a exuberância da véspera mas, digamos, com um interesse mais explícito.
De certo modo, Stanley chegou a parecer-lhe ridículo. Manuel julgou, de facto, perceber aos poucos que o anglo-americano trazia uma missão consigo que lhe dava aquele ar de segurança de si e de confiança no futuro que antes não demonstrara.
Talvez pelo desastre da sua primeira chegada a Boma – desculpou-o.
Então porque estaria agora tão calmo e tão radiante?
De súbito, Stanley largou umas dicas surpreendentes, como se falasse sozinho.
E Manuel Cruz compreendeu que ele se tinha agora por uma figura destinada a fazer História.
A calma e serenidade que nele radiavam seria a calma artificialmente serena dos loucos?
Tudo isso misturado com evidente presunção.
A presunção de vir a ser uma figura histórica.
E não será certo – reflectia Manuel – que todas as figuras históricas começam por ser simplesmente presunçosas figuras?
A primeira conversa deles, essa manhã, não o esclareceu.
Mas deu-lhe assunto para não pensar noutra coisa até ao dia seguinte, à mesma hora.
Stanley queria retomar as expedições exploratórias, agora para exploração de uma área bastante conhecida já, em especial dos contemporâneos do comércio de escravos, – “como você mesmo, Manuel, segundo me tem dito”. – Não na busca de grandes novidades, mas para aprofundar certas questões susceptíveis de resultados surpreendentes e perfeitamente inovadores.
Para logo tentar ser mais explícito…
“A Europa – proclamou Stanley, com uma exaltação evidente, mas mesmo assim contida – … A Europa toda espera que eu me decida! Digo-lhe mais, no Vaticano reza-se a esta hora para que Deus me ilumine!”
Manuel Cruz recusava-se intimamente a acreditar. Aquele teria mesmo chalado?... Era evidente que sim. Manuel quis considerar como prova disso que Henry, de toda a evidência, evitasse ficar a sós consigo, tanto que queria que almoçassem juntos, mas arranjou um pretexto para almoçarem acompanhados por dois belgas em quem mais confiava.
Durante o almoço falou-se apenas de coisas de homens e mulheres, roçando quase sempre a pornografia e a chalaça erótica. Com o consumo de cerveja em crescimento acelerado, para o fim do almoço as familiaridades inconvenientes atingiram o provocatório, a ponto de Henry começar a insistir em saber como era a grega na intimidade. À terceira insistência, Manuel levantou-se bruscamente, virando a mesa diante de si sobre os outros convivas. E retirou-se furioso, aos berros, de cabeça perdida.
Dormiu dezasseis horas seguidas, mas acordou senhor de si, totalmente recomposto. Já só lhe restava na cabeça o interesse, por quanto se tinha passado, na conversa com Henry e na sua exaltação religiosa quanto às expectativas da Europa à espera de que ele, Henry, se decidisse.
Que Henry Stanley se decidisse para quê, como, com quê e porquê?
E Henry Stanley abriu-se, como se fosse outro homem.
Nem bêbado, nem exaltado sem controlo.
Decidira-se! Precisava dos portugueses!
Absolutamente, trovejou, e pronto a tudo para consegui-los.
Arrastou Manuel para a saleta mais recôndita do alberguezito e expôs-lhe, em segredo o seu plano. Nem os belgas de confiança com os quais se haviam embebedado juntos na véspera, podiam por enquanto cheirar fosse o que fosse do assunto.
Quantos sobas e sobetas ao longo do Zaire, conhecia Manuel?
Até Kinshasa e para lá de Kinshasa, tanto para Norte quanto fosse necessário, seriam mil?
E quanto tempo para visitá-los a todos?
E apara quê tantos? – perguntou Manuel.
A propósito, Manuel contou a história das origens do nome Kinshasa. Henry fartou-se de rir. E comentou, “mas então, se eles são assim perdidos por cachaça, com cachaça à farta teremos deles o que quisermos!”
“E que quer você deles, Henry amigo?”
Como se não ouvisse, Henry absorvido nos seus pensamentos comentou com firmeza e a segurança de quem muito havia pensado o projecto.
“Vamos ter de levar connosco trinta ou quarenta, talvez cinquenta homens bem armados e bem treinados. Eu forneço as armas, o calçado, as roupas, os mantimentos, o dinheiro. E você, Manuel, é capaz de fazer deles excelentes soldados. Mas só quero negros habituados a serem comandados por portugueses… Desde… sim, disse-mo você, desde Diogo Cão!”
“E os belgas?... Para que servem os belgas?” – questionou Manuel, já seguro de que para Henry os belgas pouco contavam.
“Bem… Talvez para levarem as malas dos portugueses!” – fuzilou Stanley às gargalhadas.
A.C.R.
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Se eram boas notícias, porque não lhas dera logo?
Antes de partir para a Bélgica, ano e meio antes, Henry Stanley desfizera rapidamente o acampamento, pagando-lhes e mandando os negros às suas vidas, com excepção do intérprete (o “língua”), e instalando os raros belgas que não regressavam consigo a Bruxelas nos poucos, pequenos e mal amanhados albergues de Boma, todos de famílias portuguesas.
Foi num desses insignificantes albergues que, ao outro dia, Manuel Cruz foi procurar Stanley, que o acolheu sem a exuberância da véspera mas, digamos, com um interesse mais explícito.
De certo modo, Stanley chegou a parecer-lhe ridículo. Manuel julgou, de facto, perceber aos poucos que o anglo-americano trazia uma missão consigo que lhe dava aquele ar de segurança de si e de confiança no futuro que antes não demonstrara.
Talvez pelo desastre da sua primeira chegada a Boma – desculpou-o.
Então porque estaria agora tão calmo e tão radiante?
De súbito, Stanley largou umas dicas surpreendentes, como se falasse sozinho.
E Manuel Cruz compreendeu que ele se tinha agora por uma figura destinada a fazer História.
A calma e serenidade que nele radiavam seria a calma artificialmente serena dos loucos?
Tudo isso misturado com evidente presunção.
A presunção de vir a ser uma figura histórica.
E não será certo – reflectia Manuel – que todas as figuras históricas começam por ser simplesmente presunçosas figuras?
A primeira conversa deles, essa manhã, não o esclareceu.
Mas deu-lhe assunto para não pensar noutra coisa até ao dia seguinte, à mesma hora.
Stanley queria retomar as expedições exploratórias, agora para exploração de uma área bastante conhecida já, em especial dos contemporâneos do comércio de escravos, – “como você mesmo, Manuel, segundo me tem dito”. – Não na busca de grandes novidades, mas para aprofundar certas questões susceptíveis de resultados surpreendentes e perfeitamente inovadores.
Para logo tentar ser mais explícito…
“A Europa – proclamou Stanley, com uma exaltação evidente, mas mesmo assim contida – … A Europa toda espera que eu me decida! Digo-lhe mais, no Vaticano reza-se a esta hora para que Deus me ilumine!”
Manuel Cruz recusava-se intimamente a acreditar. Aquele teria mesmo chalado?... Era evidente que sim. Manuel quis considerar como prova disso que Henry, de toda a evidência, evitasse ficar a sós consigo, tanto que queria que almoçassem juntos, mas arranjou um pretexto para almoçarem acompanhados por dois belgas em quem mais confiava.
Durante o almoço falou-se apenas de coisas de homens e mulheres, roçando quase sempre a pornografia e a chalaça erótica. Com o consumo de cerveja em crescimento acelerado, para o fim do almoço as familiaridades inconvenientes atingiram o provocatório, a ponto de Henry começar a insistir em saber como era a grega na intimidade. À terceira insistência, Manuel levantou-se bruscamente, virando a mesa diante de si sobre os outros convivas. E retirou-se furioso, aos berros, de cabeça perdida.
Dormiu dezasseis horas seguidas, mas acordou senhor de si, totalmente recomposto. Já só lhe restava na cabeça o interesse, por quanto se tinha passado, na conversa com Henry e na sua exaltação religiosa quanto às expectativas da Europa à espera de que ele, Henry, se decidisse.
Que Henry Stanley se decidisse para quê, como, com quê e porquê?
E Henry Stanley abriu-se, como se fosse outro homem.
Nem bêbado, nem exaltado sem controlo.
Decidira-se! Precisava dos portugueses!
Absolutamente, trovejou, e pronto a tudo para consegui-los.
Arrastou Manuel para a saleta mais recôndita do alberguezito e expôs-lhe, em segredo o seu plano. Nem os belgas de confiança com os quais se haviam embebedado juntos na véspera, podiam por enquanto cheirar fosse o que fosse do assunto.
Quantos sobas e sobetas ao longo do Zaire, conhecia Manuel?
Até Kinshasa e para lá de Kinshasa, tanto para Norte quanto fosse necessário, seriam mil?
E quanto tempo para visitá-los a todos?
E apara quê tantos? – perguntou Manuel.
A propósito, Manuel contou a história das origens do nome Kinshasa. Henry fartou-se de rir. E comentou, “mas então, se eles são assim perdidos por cachaça, com cachaça à farta teremos deles o que quisermos!”
“E que quer você deles, Henry amigo?”
Como se não ouvisse, Henry absorvido nos seus pensamentos comentou com firmeza e a segurança de quem muito havia pensado o projecto.
“Vamos ter de levar connosco trinta ou quarenta, talvez cinquenta homens bem armados e bem treinados. Eu forneço as armas, o calçado, as roupas, os mantimentos, o dinheiro. E você, Manuel, é capaz de fazer deles excelentes soldados. Mas só quero negros habituados a serem comandados por portugueses… Desde… sim, disse-mo você, desde Diogo Cão!”
“E os belgas?... Para que servem os belgas?” – questionou Manuel, já seguro de que para Henry os belgas pouco contavam.
“Bem… Talvez para levarem as malas dos portugueses!” – fuzilou Stanley às gargalhadas.
A.C.R.
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