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2007/01/31

Memórias das minhas Aldeias
Parte III – N.º 11 

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Zaire, ou um som muito próximo, foi o que aos portugueses de Diogo Cão terá parecido que os negros chamavam ao rio quando lhes perguntaram como se chamava ele, rio, apontando para a água que corria para o Oceano aos pés deles. E os negros responderam que aquilo era água ou, na língua deles, qualquer coisa muito parecida com Zaire, que assim ficou para sempre o nome novo do grande, imenso rio, “rio de água”.

Só tarde percebemos o logro.

Um tipo de equívoco que, naturalmente, terá ocorrido muitas vezes em casos assim de relacionamento linguístico.

Parece ter sido algo que aconteceu com o futuro nome de Kinshasa, hoje capital da República do Congo, que já existia antes da colonização belga; que os indígenas continuaram a chamar Kinshasa durante todo o tempo que o Congo foi Congo Belga; mas que os Belgas substituíram por Léopoldville durante o seu domínio, em homenagem ao Rei fundador da colónia.

Afinal, parece que outro nome, este de Kinshasa, tem dedo dos portugueses, apesar da sua aparência de nome indígena. Segundo uma tradição conhecida de antigos colonos portugueses do Congo, a origem seria cachaça, um nome português muito popular e generalizado da aguardente vínica.

Segundo aquela tradição, Kinshasa terá começado por estar localizada no sítio duma primeira missão onde missionários portugueses distribuíam goles de cachaça aos negros para lhes “amolecerem” as resistências à cristianização, se não mesmo para lhes abrirem as inteligências à cristianização. Depois, foi necessária uma pequena corruptela e aí ficava cachaça convertida em Kinshasa. Com entreténs deste tipo terá talvez Manuel Cruz também passado o seu tempo à espera de Henry Morton Stanley.

Embora de pressa tenha constatado que era fácil passar o tempo ali, com a comodidade também duma espécie de riquexó que uns pretos inventaram para eles, com o que lhes facilitavam muito as deslocações e proporcionavam um transporte cómodo e sobretudo barato.

Não tinha em Boma missão como a do Ambriz, cujas recordações jamais deixavam Manuel, mas passou a frequentar, com alguma assiduidade, a pequena missão portuguesa e católica de Boma, onde as suas recordações missionárias do Ambriz eram escutadas com enlevo pelos religiosos regulares e leigos de Boma, tendo ele apenas o cuidado de não abusar para se não tornar maçador e indesejado ou apenas tolerado.

Mas o trabalho e as ocupações absorviam grande porção do tempo que sobrava das não mais de cinco horas de sono diário dos religiosos, mais três ou quatro horas também diárias que padres e leigos gastavam no culto comum e em orações ou devoções estritamente pessoais e ainda umas cinco ou seis em estudo, leituras e aulas.

Em todo o caso, o convívio com o “garoto” Veiga Santos e com o seu “amo” Artur Nogueira da firma Hatlon Cookson foi, durante toda a estada em Boma, o que mais entreteve e ocupou Manuel Cruz, admirador não muito ostensivo mas profundo da inteligência e ousadia de ambos e, sobretudo, da sua permanente disposição para a aventura.

Apesar da contenção calculada de Manuel, os três tornaram-se em pouco tempo verdadeiros camaradas. Imaginavam-se muitas vezes companheiros de Diogo Cão que na sua 1ª viagem por aquelas andanças de África (1482-1484) descobrira o estuário do Zaire, subindo o rio até às primeiras cataratas que detiveram o navegador, obrigando-o a voltar à foz, não sem ter deixado na margem um padrão que ainda lá está, além das inscrições na Pedra de Ialala. Não é de estranhar que, no seu deambular pelos sonhos de um passado tão movimentado, muitas vezes se sentissem presos em Boma e sem janelas por onde espreitar decididamente os meandros de que Manuel Cruz lhes falava e os fazia entrever, iluminando-lhes até de significados e vistas novas os meandros que tinham deixado na Europa, eles próprios ou os pais.

Quando Manuel Cruz lhes contou as lendas da origem dos nomes Zaire e Kinshasa, como muitas outras, foi-os na verdade amarrando doce mas firmemente àqueles lugares e à História especulativa deles que lhes contou.

Fê-los, na verdade, descobrir o fascínio e o feitiço de África, sem os deixar esquecer, antes pelo contrário, o fascínio e os feitiços de Portugal e da sua origem e da sua génese portuguesa.

Sem querer, sem psicologia, sem pedagogia, por pura paixão e encantamento.

Que Manuel era homem de paixões, que não tolerava viver sem paixão, perto dos sessenta anos.

Encontrara na grega a paixão que agora o alimentava mais que qualquer outra.

Ninguém o sabia ao certo, nem talvez o marido dela, porque Manuel era terrivelmente discreto.

Mas apesar da grega, encontrara ainda outra paixão, o para si intrigante mistério da vida e dos não menos misteriosos projectos de Stanley, dito “o inglês”, dito “o americano”, dito jornalista e aventureiro, frequentador de altas esfera inacessíveis.

É falso o que diziam em tempos os passionalistas, que ninguém pode viver ao mesmo tempo duas paixões.

Manuel sabia-se prisioneiro de duas paixões, simultâneas e igualmente fortes, a da grega e a paixão pela África. Compatibilizava-as por enquanto, embora estivesse certo de que chegaria o momento em que uma teria de ceder todo o espaço à outra.

Se veria qual, quando a opção viesse a ser inevitável.

Enquanto tal não sucedesse, Manuel acreditava poder vivê-las como se fossem uma só paixão, em que uma alimentava e enriquecia a outra.

Muito mais que isso temeria ele que a morte duma das paixões matasse a outra também.

Um grupo de uma dúzia de belgas – mais os flamengos que os valões – ficara em Boma a aguardar que Stanley regressasse da Europa, como no final de contas o próprio Manuel Cruz, a quem os valões chamavam Monsieur De La Croix.

Tinham-se habituado todos a encontrar-se quase diariamente, desde a partida de Stanley, em casa do casal grego, sempre impecavelmente acolhedor e do qual aliás partira o convite para que dispusessem todos os dias da sua casa, sem o menor constrangimento.

Com frequência acontecia mesmo ficarem todos para jantar, casos em que alguns deles tinham mesmo adquirido a sem-cerimónia de assaltar a cozinha, não para ajudar a dona da casa, que confessava repudiar a culinária, mas para espevitarem os cozinheiros negros e seus ajudantes a aprender receitas europeias e a melhorar as receitas da cozinha indígena.

A hospitalidade era tão generosa que por vezes Manuel Cruz perguntava a si próprio, e só a si próprio, se o grego não estaria a querer redimir-se da péssima impressão que inicialmente deixara a todos e sobretudo ao chefe, a Stanley, além da total confiança na mulher que também pretenderia demonstrar, o que Manuel fazia por não entender.

E assim a bela descontracção prosseguiu até Stanley chegar um dia, inteiramente de surpresa, menos de ano e meio depois da sua partida para a Europa.

Como se o fascínio e o feitiço de África tivessem tomado conta do formidável explorador e aventureiro anglo-americano.

A.C.R.

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