2007/01/16
Memórias das minhas Aldeias
Parte III – N.º 4
(<--)João Nogueira casara a dois passos da sua terra natal, em São Romão, com uma senhora filha terceira ou quinta de lavradores remediados, dotados do suficiente para as criarem acima da média das mais famílias locais, mas pouco para lhes darem a educação que elas mereciam e justificavam.
Desde tempos, que os mais antigos consideravam imemoriais, mas não tanto assim, desde tempos antigos que as terras cultivadas da veiga baixa da vila de São Romão beneficiavam da rega pelas águas do Alva. Estas chegavam à várzea na levada que ainda hoje funciona, com origem num açude construído para o efeito no rio, pouco acima da Senhora do Desterro, e vencendo os primeiros duzentos metros por uma vala quase toda cavada na rocha, a qual pouco adiante se divide em vários canais mais reduzidos.
Graças à água do Alva assim transportada e que nunca falhava, ao longo do ano todo, e graças também à boa qualidade dos terrenos e às excelentes práticas dos lavradores, a veiga de São Romão passava por ser dos espaços onde os preços da terra, fossem de compra e venda, fossem de arrendamento, eram dos mais altos em todo o distrito da Guarda, logo abaixo dos preços das terras de vinha no Alto Douro beirão. Por isso, os sogros de João Nogueira eram tidos como abastados, visto serem proprietários de bons bocados na veiga. Muito capital, mas pouco rendimento.
A respeito da vala de rega do Alva para a baixa de São Romão, até à Assamassa, formara-se uma lenda intrigante.
Contava o Zézinho Pinto – voltarei a falar dele adiante, na altura mais apropriada, porque ele sozinho dá muito pano para mangas – contava o Zézinho Pinto da Folgosa do Salvador que fora a Universidade de Coimbra que pagara a construção da vala, também conhecida por “a levada”.
Tinha-o ouvido ao avô Cruz.
Parece que a Universidade era na altura a grande proprietária da veiga baixa de São Romão.
Datas?... Valores da transacção?...Rendimentos dos prédios?... Nomes dos negociadores?...
Nada consta dos documentos arquivados na Universidade já compulsados, dizem eruditos e investigadores.
E o povo, que diz?
Pouco, e o que porventura soube já esqueceu.
A não ser que, em tempos, a população de São Romão ameaçou abrir um túnel, para desviar para o rio Seia toda a água do Alva, que continuaria a desembocar no Mondego, mas por outro caminho, regando tudo na veiga de São Romão a Celorico e deixando seco o que era e afinal ainda é o vale do Alva.
Aparentemente, essa história nada teria a ver com a vala de rega de São Romão, mas o Zézinho Pinto dizia que talvez tivesse. Descobrira – não se sabe como, mas ele era um leitor compulsivo de livros de História e muito criativo – descobrira que tudo aconteceu num tempo em que foram simultaneamente Reitor da Universidade e Geral da Companhia de Jesus dois irmãos, ambos intelectuais famosos no seu tempo e de grande prestígio, nascidos em São Romão.
Um e outro – Zézinho Pinto dava-o como certo – teriam conseguido obter a pacificação dos habitantes de São Romão e a sua desistência definitiva da intenção de desviarem o Alva, em troca da construção da vala de rega, que o Geral jesuíta teria desenhado e o Reitor mandado pagar pelos fundos secretos da Universidade. Ficara o pároco de São Romão e os seus sucessores, tempos em fora, como garantes do cumprimento do acordo para todo o sempre, por parte da gente da vila.
Um dia perguntei ao P.e Lourenço, se ele sabia desse compromisso que, de acordo com a lenda, também era dele, pároco da vila durante muitos anos. O excelente P.e Lourenço sorriu e disse apenas, continuando a sorrir… “Não me foi transmitida notícia do compromisso quando tomei posse, nem pelo Senhor Bispo, nem pela Junta de Freguesia, mas assumi-o logo como certo, creia, porque me ligou mais profundamente à tradição… E porque é bonito!... E depois, saiba, os povos capazes de construir lendas do seu passado são os que mais se orgulham dele e com mais facilidade e dignidade se inspiram dele também, para valorizar o presente e ter confiança no futuro. Nunca são povos deprimidos e sem norte. Conhece bem esta gente?...” E, sem esperar resposta, concluiu… “Não pode gostar tanto deles como eu, porque os conheço melhor, há muito mais anos e em situações de maior intimidade. Mas tenho a certeza de que há-de apaixonar-se por eles, vai ver!”
A fala passou-se há vinte e tal anos e a profecia cumpriu-se, por excesso e não por defeito.
Mas que tem tudo isto a ver com João Nogueira?
Tem que esta conversa sobre a levada começou por dizer-se com quem João Nogueira, de Maceira, casara, uma senhora de São Romão filha de pais abastados da veiga baixa da vila e duma família onde o primogénito, em cada geração, vinha sempre a desempenhar o cargo de “distribuidor das águas da levada” e por morte do anterior, dizia-se que graças aos méritos de um antepassado que interviera de modo exemplar na criação da levada, como teriam reconhecido os seus contemporâneos. E não se teriam limitado a reconhecê-lo, decidiram premiá-lo também estipulando-lhe uma remuneração em percentagem do que pagavam anualmente os utentes das águas, em vida sua e dos primogénitos da família que em cada geração se fossem sucedendo. Não era grande coisa, até porque obrigava a zelar pela limpeza da levada, mas dava a quem exercia o cargo o reconhecimento geral, que reflectia também o prestígio de quantos o haviam desempenhado antes, sempre com grande zelo e proficiência, como assegurava a tradição.
No tempo de que falamos, esse pequeno proveito líquido mas grande honra tinha cabido ao futuro sogro de João Nogueira.
A.C.R.
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