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2007/01/18

Memórias das minhas Aldeias
Parte III – N.º 5 

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Chamava-se Marta de Jesus a mulher de João Nogueira.

Cada novo dia mais este se convencia de que em São Romão nunca passariam da cepa torta, mesmo com as terras da veiga baixa da vila.

Tinham já três filhos quando ele embarcou para Angola, disposto a fixar-se no Ambriz, que lhe haviam garantido oferecer mais oportunidades que qualquer outro porto desde Ponta Negra ao Lobito, salvo talvez Luanda ou Benguela e o próprio Lobito. Tentou informar-se com comerciantes vindos de lá havia menos tempo e todos lhe disseram que as coisas estavam a mudar muito em África desde a supressão do negócio de escravos e que era agora muito mais difícil ganhar dinheiro em pouco tempo. Um, porém, houve que lhe assegurou saber de dois irmãos das Folgosas que tinham acabado de montar uma fábrica – ele nem sabia de quê – com dinheiro ganho já em África e que estavam a sair-se bem, também sem dizer que o dinheiro para a fábrica o tinham os dois irmãos ganho, mas nos bons tempos, a comprar e vender escravos.

A primeira carta que João Nogueira escreveu do Ambriz à mulher encheu-a de alegrias e receios. Alegrias porque a carta transbordava de confiança no futuro, a ponto de o seu João já falar nas três primeiras lojas de conta própria que havia de abrir dentro de um ano, o mais tardar; encheu-se ela também de receios porque, seguro na sua confiança e como se uma nova alma, vontade mais decidida e ambição sem freio lhe tivessem nascido em África, o seu João lhe falava, pela primeira vez, em vi-la buscar e aos filhos logo que, depois das lojas abertas, tivesse construído uma casa boa, suficientemente grande para acolhê-los aos cinco - e os que viessem a nascer, insinuava ele – com anexos para cinco ou seis criados pretos para todo o serviço doméstico, incluindo cozinha, lavandaria, limpeza da casa, passar a ferro, passajar a roupa, toda a costura, o serviço de mesa a todas as refeições e o serviço de banhos.

A carta terminava, com muita ternura contida, porque os dois filhos mais velhos já liam com muito despacho, apesar dos seus cinco e seis anos – méritos da mãe e, apesar de tudo, das cartilhas que precederam a famosa do João de Deus, poeta mais que famoso – e ele João Nogueira não queria que os garotos viessem a perceber o que o pai só podia dizer em entrelinhas à mãe, não fosse a carta cair nas mãos dos filhos.

Antes porém de em definitivo terminar, porque só então lhe ocorreu, João ainda aditou um post-scriptum, pedindo à mulher que fosse observando à sua volta, pois que mais tarde ou mais cedo havia de precisar de dois ou três conterrâneos, homens ainda novos, mas não muito novos, capazes de aprenderem rapidamente os segredos dos negócios, que ele lhes ensinaria, para serem seus lugar-tenentes nas lojas que havia de abrir, já sabia onde e com que novidades.

Também “espertos de inteligência”, completava ele. O bastante, acrescentava, a lerem e a escreverem correctamente, o bastante para as contas das lojas e o bastante para aprenderem a língua dos pretos, como ele próprio que contava dentro de três ou quatro semanas já não precisar da ajuda de ninguém para se entender com os indígenas, nos mínimos pormenores, fosse sobre o que fosse. Se para a língua se julgasse preciso, podia-se recorrer à ajuda da missão, que lá estava para umas lições pagas com generosidade.

Bem, João Nogueira não terminava a carta ainda por aí.

De facto, pedia-lhe que não se risse dos seus cuidados. Lembrasse-se ela de que as suas vidas e as esperanças de futuro deles assentavam a partir de então em certas coisas totalmente novas. A mais importante, pensava João, e dizia-o, era terem de lidar com pretos para poderem viver dos pretos. Ao mesmo tempo que os brancos os ensinavam a viver melhor, seguindo os “maravilhosos exemplos das missões”, de que com extraordinária exaltação citava o caso do padre superior da missão do Ambriz, que conhecemos, ao qual atribuía a formidável descoberta de como o próprio comércio era espantoso instrumento de civilização e cristianização profundas. “Por isso, minha querida, não te rias dos meus zelos, confia nas minhas esperanças e apoia-me com os teus grandes dons para juntos levarmos a cabo os sonhos que Deus me inspira!” – terminava ele num verdadeiro arroubo da sua ambição, seguro na sua fé de que nada lhes seria negado se fossem a família mais unida e empreendedora que alguma vez tinha saído daquelas faldas da Serra.

As cartas seguintes não fugiam a estes tópicos e nenhuma das esperanças e certezas da primeira aparecia nelas menos segura ou menos exuberante. Foi mais ou menos uma longa carta assim por mês e todas com pormenores demonstrativos da gradual mas efectiva realização dos projectos e propósitos anunciados na primeira.

Passou de um ano nisto, até que, à décima quinta carta, as novidades foram radicais. João Nogueira chegaria no barco seguinte a Lisboa e oito dias depois a São Romão, de carruagem, para levar consigo Marta de Jesus, no propósito de voltar ao Ambriz, de pressa, com ela e com os filhos. A casa nova já esperava por todos, mobilada e decorada, e os criados negros, cuidadosamente escolhidos, também. Não se demorariam em São Romão, depois da sua chegada, mais de seis meses, o tempo só de prepararem roupas novas e novos apetrechos para a viagem e a vida em África, de contratarem rendeiros seguros para as propriedades, e de ele próprio contratar, como empregados para as lojas, os rapazes que ela tivesse escolhido a preceito, os futuros lugar-tenentes da confiança de ambos, repetia.

Ela tinha de facto pensado muito no pedido do marido e julgava ter acabado por acertar em cheio. Mas não falara do caso a ninguém, como mandava o pudor, e teria de ser o seu João a tratar de tudo com os rapazes, confirmando ou não a escolha dela.

Marta de Jesus julgava ter entrevisto, por meias palavras, os propósitos mais profundos do marido, escolher os melhores para construírem juntos o arranque para o grande futuro da África portuguesa. Só dele podia ser, portanto, a escolha final para se cumprir o sonho do grande homem que o marido era, estava segura.

Por sabê-lo, não hesitava. Marta de Jesus em levar toda a família com ambos, para o pior e o melhor.

Deus mandava!

Não havia que hesitar nem tremer.

A.C.R.

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