2007/01/12
Memórias das minhas Aldeias
Parte III – N.º 3
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Manuel e Raul pensaram ambos que o padre superior talvez não tivesse percebido, porque aquilo não vinha nada a propósito.
O problema deles não era de consciência mas do preço a pedir ao Nogueira e do lucro a obter, comentaram eles entre si, de certo modo já de consciência amolecida pelas conversas livres e os grandes negócios, como se entre lucro e consciência, não pudesse haver conflitos…
Antes, porém, da questão do preço a pedir, lembrou Raul, estavam os projectos deles de regresso à Europa, com demora ao menos suficiente para procurarem esposas que quisessem acompanhá-los a África, uma vez casados.
A sorrir, o padre superior foi dizendo: “para vós isso não há-de ser difícil que ides ricos, sois novos e já ricos, além de bem parecidos e de maneiras impecáveis e impecáveis cristãos, cheios de iniciativas e força para o trabalho árduo.”
- Nem tanto, nem tanto, senhor padre, que temos ambos a questão dos nossos mulatinhos.
O padre superior ficou calado uns bons segundos, talvez dois ou três minutos, parecia alheado.
- Estava esquecido! – disse – Estava mesmo… de tal modo confio em vós e que cumpris rigorosamente o que prometeis. Não são pequenos problemas para cristãos como vós. Mas levando-os convosco, tal como decidistes, penso que o risco acabará por jogar a vosso favor.
- Sim, decidimos, padre. Está assente entre mim e o Manuel. Mas olhe que às vezes assaltam-me fortes, fortíssimas dúvidas e hesitações. Temos ambos dias de grandes tormentos de consciência, senhor padre superior. Eu digo-lhe, como se estivesse a confessar-me a vossa reverência, que há dias e dias seguidos que não sei como hei-de fazer, nem o que hei-de fazer à minha vida. Se depois vêm dias seguidos em que nem sequer penso no caso, é como se Deus, sabendo que eu não conseguiria resistir mais tempo, me mandasse o esquecimento para me salvar de piores tentações.
- Meu filho!
- Sim, pai, é assim exactamente como digo. É Deus que me manda o esquecimento para me salvar, mas nunca sei se não torna o tormento a repetir-se e se voltarei a ter capacidade para resistir. Sabe?... Hoje penso muitas vezes se não seria assim também o tormento dos negreiros antigos, igualmente moldados pelas suas consciências de cristãos ou católicos…
- Ora! Ora! – quase lhe gritou em desespero o irmão, que tinha os olhos rasos de lágrimas de ouvi-lo
– Não me atormentes ainda mais a mim, ao menos. Se o problemas é igual, então por que te atormentas, pois que tu e eu também fomos negreiros e ganhámos muito dinheiro a despachar escravos para o Brasil e as Antilhas! Não foram só os negreiros antigos que tiveram problemas de consciência e conseguiram ignorá-los…
- É verdade. Mas fizemos as penitências que os confessores nos ditaram e estamos perdoados por Deus e pela Igreja. Mas com as crianças da nossa própria carne, não haverá perdão para as nossas almas, se as abandonarmos à sorte delas! São nossa responsabilidade também desde que as gerámos nas pretas por quem nos perdemos!
- Lembrai-vos – interrompeu o padre superior - de que, no caso da escravatura, o pecado ou o crime não eram só dos negreiros; havia igualmente os intermediários e havia os sobas ou os reis africanos que arrancavam à força os negros às suas aldeias e às suas famílias com a cumplicidade dos sobas locais e dos feiticeiros. Se Deus perdoa aos sobas como perdoa aos reis, que têm o seu poder do próprio Deus… Sim, Deus perdoa aos sobas que são pequenos reis, mas também terá de perdoar aos intermediários e a todos os participantes da cadeia de intermediários do comércio de escravos e aos compradores finais deles. Bem… Claro que isto é um sofisma. É um sofisma de que bastante se abusou. A ponto de ter-se transformado para muitos numa espécie de crendice. Só comportamentos como os de Raul e Manuel acabando perdoados pela penitência e o arrependimento, podem aceitar-se como normas de salvação e redenção. Os próprios reis estão sujeitos às mesmas condições. Não serão perdoados por serem reis, mas pelo seu comportamento como cristãos obedientes à Igreja. Só pela Igreja vem a salvação a todo o católico, qualquer que seja a sua condição na sociedade ou no Estado.
Pareceu que ia terminar ali, mas não.
- Elas, as mães dos vossos filhos, são também cristãs e firmes na sua Fé em Deus e na Igreja. Têm pretendentes da sua raça, prontos a esquecer-lhes os passos em falso. A missão acolhe-os a todos, mas não podem ficar aqui os mulatinhos, como recordação permanente desse passado. Elas aceitam, com desgosto, mas aceitam, que os leveis convosco, porque vos pertencem. E, vamos lá, porque serão sempre, junto de vós, a melhor recordação vossa do amor que elas vos sacrificaram.
- Senhor padre, interrompeu Manuel, acenando com a cabeça, num esforço para assegurar que tinham compreendido. É por isso que estamos agora aqui a procurá-lo para lhe dar conhecimento da proposta que acabam de fazer-nos e para nos aconselhar. Nada faremos sem o seu acordo.
- Desembuche lá!
- Imediatamente. Temos quase dez anos de África terrivelmente desgastantes, pelo trabalho e pelo clima. Dava-nos jeito descansar um ou dois anos para recuperar forças e talvez saúde, que de facto sentimos abalada. Nem uma vez só consultámos um médico a valer. Só feiticeiros que nos receitam as mezinhas crónicas e ainda assim os menos incompetentes e os que só têm feitiços para impingir.
- Então nunca vieram aos padres enfermeiros da missão!
- Sim, viemos, é verdade. E alguma coisa adiantaram. Garantiram que estamos óptimos. Mas é altura de ir à Europa confirmar. O senhor João Nogueira quer-nos comprar a fábrica, porque vendeu o barco que esta tarde fez dele um herói para toda a população do Ambriz.
- A quem? – perguntou o padre, ainda de boca aberta.
- Ao senhor comendador que, com os filhos, vai instalar carreiras de vapores para Ponta Negra, Boma, Matadi, Luanda e o Lobito, veja só as grandezas. Parece uma boa ocasião. Ainda não pedimos dinheiro pela fábrica. Mas atendendo ao que lá investimos e aos lucros dum negócio que desenvolvemos com pleno sucesso, teremos de pedir forte… Concorda?
- Valores é convosco. A ocasião é realmente excepcional. Vocês e o senhor João Nogueira puseram o Ambriz a mexer de alto a baixo, como há cinco anos não era possível imaginar. E agora vêm ainda os filhos do comendador! Peçam. Peçam forte. E lembrem-se da missão, mais uma vez, com a vossa generosidade de sempre!
Os manos saíram dali sentindo-se autorizados e mesmo animados a pedir muito forte. Fazendo contas bem simples acertaram pedir ao Nogueira, no dia seguinte, o valor necessário para nos bancos lhes assegurar anualmente, à taxa de juro corrente, um rendimento igual, por largo, a metade dos lucros de cada um nos últimos dois anos.
Pareceu-lhes astronómico.
Era cerca do quíntuplo do que tinham investido no negócio, havia quatro anos.
E o João Nogueira deve ter achado tão razoável que aceitou, sem a mínima hesitação, como se fosse uma pechincha.
O Ambriz começava a parecer-se, aos olhos de muitos, como uma fantástica árvore das patacas, incluindo para a missão e os seus imensos beneficiários.
A.C.R.
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Manuel e Raul pensaram ambos que o padre superior talvez não tivesse percebido, porque aquilo não vinha nada a propósito.
O problema deles não era de consciência mas do preço a pedir ao Nogueira e do lucro a obter, comentaram eles entre si, de certo modo já de consciência amolecida pelas conversas livres e os grandes negócios, como se entre lucro e consciência, não pudesse haver conflitos…
Antes, porém, da questão do preço a pedir, lembrou Raul, estavam os projectos deles de regresso à Europa, com demora ao menos suficiente para procurarem esposas que quisessem acompanhá-los a África, uma vez casados.
A sorrir, o padre superior foi dizendo: “para vós isso não há-de ser difícil que ides ricos, sois novos e já ricos, além de bem parecidos e de maneiras impecáveis e impecáveis cristãos, cheios de iniciativas e força para o trabalho árduo.”
- Nem tanto, nem tanto, senhor padre, que temos ambos a questão dos nossos mulatinhos.
O padre superior ficou calado uns bons segundos, talvez dois ou três minutos, parecia alheado.
- Estava esquecido! – disse – Estava mesmo… de tal modo confio em vós e que cumpris rigorosamente o que prometeis. Não são pequenos problemas para cristãos como vós. Mas levando-os convosco, tal como decidistes, penso que o risco acabará por jogar a vosso favor.
- Sim, decidimos, padre. Está assente entre mim e o Manuel. Mas olhe que às vezes assaltam-me fortes, fortíssimas dúvidas e hesitações. Temos ambos dias de grandes tormentos de consciência, senhor padre superior. Eu digo-lhe, como se estivesse a confessar-me a vossa reverência, que há dias e dias seguidos que não sei como hei-de fazer, nem o que hei-de fazer à minha vida. Se depois vêm dias seguidos em que nem sequer penso no caso, é como se Deus, sabendo que eu não conseguiria resistir mais tempo, me mandasse o esquecimento para me salvar de piores tentações.
- Meu filho!
- Sim, pai, é assim exactamente como digo. É Deus que me manda o esquecimento para me salvar, mas nunca sei se não torna o tormento a repetir-se e se voltarei a ter capacidade para resistir. Sabe?... Hoje penso muitas vezes se não seria assim também o tormento dos negreiros antigos, igualmente moldados pelas suas consciências de cristãos ou católicos…
- Ora! Ora! – quase lhe gritou em desespero o irmão, que tinha os olhos rasos de lágrimas de ouvi-lo
– Não me atormentes ainda mais a mim, ao menos. Se o problemas é igual, então por que te atormentas, pois que tu e eu também fomos negreiros e ganhámos muito dinheiro a despachar escravos para o Brasil e as Antilhas! Não foram só os negreiros antigos que tiveram problemas de consciência e conseguiram ignorá-los…
- É verdade. Mas fizemos as penitências que os confessores nos ditaram e estamos perdoados por Deus e pela Igreja. Mas com as crianças da nossa própria carne, não haverá perdão para as nossas almas, se as abandonarmos à sorte delas! São nossa responsabilidade também desde que as gerámos nas pretas por quem nos perdemos!
- Lembrai-vos – interrompeu o padre superior - de que, no caso da escravatura, o pecado ou o crime não eram só dos negreiros; havia igualmente os intermediários e havia os sobas ou os reis africanos que arrancavam à força os negros às suas aldeias e às suas famílias com a cumplicidade dos sobas locais e dos feiticeiros. Se Deus perdoa aos sobas como perdoa aos reis, que têm o seu poder do próprio Deus… Sim, Deus perdoa aos sobas que são pequenos reis, mas também terá de perdoar aos intermediários e a todos os participantes da cadeia de intermediários do comércio de escravos e aos compradores finais deles. Bem… Claro que isto é um sofisma. É um sofisma de que bastante se abusou. A ponto de ter-se transformado para muitos numa espécie de crendice. Só comportamentos como os de Raul e Manuel acabando perdoados pela penitência e o arrependimento, podem aceitar-se como normas de salvação e redenção. Os próprios reis estão sujeitos às mesmas condições. Não serão perdoados por serem reis, mas pelo seu comportamento como cristãos obedientes à Igreja. Só pela Igreja vem a salvação a todo o católico, qualquer que seja a sua condição na sociedade ou no Estado.
Pareceu que ia terminar ali, mas não.
- Elas, as mães dos vossos filhos, são também cristãs e firmes na sua Fé em Deus e na Igreja. Têm pretendentes da sua raça, prontos a esquecer-lhes os passos em falso. A missão acolhe-os a todos, mas não podem ficar aqui os mulatinhos, como recordação permanente desse passado. Elas aceitam, com desgosto, mas aceitam, que os leveis convosco, porque vos pertencem. E, vamos lá, porque serão sempre, junto de vós, a melhor recordação vossa do amor que elas vos sacrificaram.
- Senhor padre, interrompeu Manuel, acenando com a cabeça, num esforço para assegurar que tinham compreendido. É por isso que estamos agora aqui a procurá-lo para lhe dar conhecimento da proposta que acabam de fazer-nos e para nos aconselhar. Nada faremos sem o seu acordo.
- Desembuche lá!
- Imediatamente. Temos quase dez anos de África terrivelmente desgastantes, pelo trabalho e pelo clima. Dava-nos jeito descansar um ou dois anos para recuperar forças e talvez saúde, que de facto sentimos abalada. Nem uma vez só consultámos um médico a valer. Só feiticeiros que nos receitam as mezinhas crónicas e ainda assim os menos incompetentes e os que só têm feitiços para impingir.
- Então nunca vieram aos padres enfermeiros da missão!
- Sim, viemos, é verdade. E alguma coisa adiantaram. Garantiram que estamos óptimos. Mas é altura de ir à Europa confirmar. O senhor João Nogueira quer-nos comprar a fábrica, porque vendeu o barco que esta tarde fez dele um herói para toda a população do Ambriz.
- A quem? – perguntou o padre, ainda de boca aberta.
- Ao senhor comendador que, com os filhos, vai instalar carreiras de vapores para Ponta Negra, Boma, Matadi, Luanda e o Lobito, veja só as grandezas. Parece uma boa ocasião. Ainda não pedimos dinheiro pela fábrica. Mas atendendo ao que lá investimos e aos lucros dum negócio que desenvolvemos com pleno sucesso, teremos de pedir forte… Concorda?
- Valores é convosco. A ocasião é realmente excepcional. Vocês e o senhor João Nogueira puseram o Ambriz a mexer de alto a baixo, como há cinco anos não era possível imaginar. E agora vêm ainda os filhos do comendador! Peçam. Peçam forte. E lembrem-se da missão, mais uma vez, com a vossa generosidade de sempre!
Os manos saíram dali sentindo-se autorizados e mesmo animados a pedir muito forte. Fazendo contas bem simples acertaram pedir ao Nogueira, no dia seguinte, o valor necessário para nos bancos lhes assegurar anualmente, à taxa de juro corrente, um rendimento igual, por largo, a metade dos lucros de cada um nos últimos dois anos.
Pareceu-lhes astronómico.
Era cerca do quíntuplo do que tinham investido no negócio, havia quatro anos.
E o João Nogueira deve ter achado tão razoável que aceitou, sem a mínima hesitação, como se fosse uma pechincha.
O Ambriz começava a parecer-se, aos olhos de muitos, como uma fantástica árvore das patacas, incluindo para a missão e os seus imensos beneficiários.
A.C.R.
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