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2007/01/11

Memórias das minhas Aldeias
Parte III – N.º 2 

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A primeira coisa que João Nogueira fez logo que conseguiu ver-se livre da multidão que o aclamava, e não sem grandes dificuldades, foi procurar Manuel e Raul Cruz.

Era essa outra característica essencial da sua vocação para os negócios: quando tinha a certeza do caminho a seguir, na sua progressão imparável, não demorava estritamente nada a correr em frente pelo caminho imaginado.

Encontrou-os João Nogueira na fábrica, sentados à volta duma mesa, no grande escritório que Manuel reservara para si, juntamente com os três capatazes mulatos das três secções fabris e o capataz comercial da fábrica e o da expedição.

Eram todos antigos recomendados do padre superior, davam excelente conta de si nas funções que lhes estavam distribuídas, tinham casado com criadas da missão, onde os cinco também foram baptizados e educados os numerosos filhos que as mulheres em poucos anos pariram, como o seriam também os mais rebentos que ainda viriam a ter.

Sendo os capatazes primos-irmãos entre si, a fábrica acabava por constituir-se em perfeita unidade familiar múltipla, que não tinha provado mal, pelo contrário, como se a disciplina de raiz duma grande família indígena e a educação comum, no catolicismo da missão, fossem a argamassa fundamental daquela comunidade de trabalho que nem os próprios patrões realizavam quanto tinha de exemplar.

João Nogueira mal batera à porta, antes de entrar num repente, e vendo-os reunidos, ia a retirar-se, rápido como entrara, mas Manuel apressou-se a correr a abraçá-lo sem fim, imoderadamente, logo seguido do irmão, pelo enorme sucesso dessa tarde, a que também tinham assistido, mas de longe, sem poderem chegar-lhe ao perto.

Manuel mandou os capatazes irem à sua vida e ainda não tinham acabado de sentar-se os três, quando João Nogueira disse, com um grande sorriso:

- Vendi o meu barco!

- Quê? Você vendeu o seu barco?

- E que vai fazer quem lho comprou? – perguntou Raul, sempre pragmático, indo logo ao fundo do que mais lhes interessava.

- Sim! – corroborou Manuel – E o nosso acordo para o transporte da nossa produção para os mercados do interior?

- Descansem! – sossegou-os João Nogueira – Ao comprador até lhe dá jeito cumprir o meu contrato convosco. Sempre sois um cliente certo para cobrir os riscos da carreira em que se meteu.

- Quem é ele?...

- Pergunto, acrescentou Manuel, para saber se é firma em que possamos confiar.

- O mais fiável que podeis querer. É a firma do próprio comendador vosso grande amigo e parceiro político e de milícia…

- O quê! Com o currículo dele, todo o seu passado e, vamos lá, que também a idade, vai meter-se em empresas novas! É um homem do diabo. Não consegue parar!

- Não te esqueças dos filhos. Vieram agora da Europa, educados na Bélgica, são novos, vêm cheios de ideias, o negócio e carreiras do barco vão ser explorados por eles, um é engenheiro de máquinas e ao outro chamaram-no economista, já os ouvi mesmo falar doutro vapor a comprarem, para a cabotagem até Bona, Ponta Negra e depois Luanda e o Lobito. Julgo que projectam uma verdadeira companhia de navegação!

- O pai está cheio de dinheiro, imagino… E pagou-vos o barco bem puxado…

- Nada mal, quatro vezes e meia o que ele custou.

- Safa!

- Sim, nada mal – repetiu –. Pensava até fazer-vos uma proposta. Compro-vos a fábrica e o negócio todo dela, não quero concorrência, por isso teríeis que vos comprometer a não abrir outra daqui até ao Zaire e até ao… bem, até Luanda.

- Admitindo que estávamos interessados… – não conseguia disfarçar a surpresa e queria ganhar tempo antes de se comprometer com o que quer que fosse – Tenho de falar com o Raul, amanhã damos-lhe uma resposta. Mas desde já lhe digo que ainda tal coisa nos não passara pela cabeça, vender, fosse a quem fosse.

- Nenhuma, nenhuma abordagem mesmo?

- Não… Quer dizer, houve aqui há um ano, mas era-nos pessoa desconhecida, repelimos logo a hipótese, nem de valores se chegou a falar.

- Então amanhã cá me tendes para vos ouvir. Tá bem?

- E saiu, rápido como entrara, cheio de salamaleques até à porta, que Raul foi abrir, também cheio de amabilidades, como se quisesse ajudá-lo a engolir o preço alto que no dia seguinte o irmão havia de impor ao Nogueira e de que Raul já tinha na cabeça uma ideia arredondada.

Manuel e Raul seguiram logo para a missão.

Os padres tinham aí inaugurado uma prática que só quase cem anos depois se estenderia à Europa e à generalidade da Cristandade, promovida e oficializada pelo Concílio Vaticano II. Ou seja a missa vespertina. Isto é, a missa dominical de preceito, mas celebrada de véspera, à tarde, por isso vespertina, na tarde de sábado, para facilitar o cumprimento do mandamento da Igreja aos fiéis com obrigações absolutamente imperativas que não lhes permitissem cumpri-lo ao domingo.

É verdade, a missão do Ambriz e outras da mesma congregação em África, poucos anos havia, com o consentimento e até estímulo do superior-geral, dirigidos aos padres superiores das diversas missões, tinham estabelecido uma celebração eucarística de tarde, todos os sábados. E era tão concorrida, embora a título excepcional, que cada vez mais católicos a frequentavam com regularidade, acabando os padres por perceber ou convencer-se de que a lei de excepção estava a ser abusivamente interpretada por muitos. E viriam a resolver a questão disciplinar, digamos assim, pela via que a Igreja utiliza muitas vezes.

Isto é, deixando essa questão à consciência de cada um, pretos e brancos.

Foi o que o padre superior também respondeu aos dois irmãos, quando ainda essa tarde de sábado vieram consultá-lo sobre a venda da fábrica e o negócio altamente lucrativo dela, tinha o padre acabado de celebrar a missa vespertina da semana.

A.C.R.

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