2006/12/20
Memórias das minhas Aldeias
Parte II – N.º 17
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O que é que poderia voltar a encorajá-los?
O comendador e os seus jovens amigos de tão recente data sentiam-se efectivamente perdidos.
Fora completamente inesperado aquele banho de água gelada das últimas palavras do padre superior.
Aparentemente não se discutiam as potencialidades dos negócios, mas quanto ao resto…
Manuel fazia cada vez mais finca-pé na ideia de que, sem segurança garantida contra a eventualidade de incursões inglesas, seguindo aliás a opinião dominante na associação local mais representativa de colonos da Metrópole, não seria possível atrair os investimentos necessários aos empreendimentos previstos.
Ponto assente para os três, comendador e jovens amigos.
Conclusão: isto é, inviabilidade do projecto, uma vez que nenhum julgava possível convencer o padre superior a dar o seu e apoio à milícia, como o governador exigia.
Beco sem saída nem remédio.
Definitivamente!
O que, porém, Manuel achava mais desanimador era a resignação com que o comendador e o próprio Raul lhe pareciam aceitar a renúncia do padre superior e, portanto, a liquidação de perspectivas do próprio projecto de negócios, que a seus olhos assumira entretanto as proporções de formidável aventura. Tornara-se um desafio que não lhe era possível evitar, nem poderia jamais perder.
Num jeito súbito muito seu, Manuel decidiu levar os companheiros às do cabo, jogando tudo por tudo.
- Senhor comendador! – e levantou-se para continuar com uma exaltação e firmeza maiores do que alguma vez lhe tinham visto – Sem a milícia a funcionar, regresso imediatamente à Metrópole, não quero saber de mais nada. Volto para onde me entendam e falem a mesma língua que eu. Podia ir pôr os nossos projectos ao serviço de belgas, franceses e ingleses. Ou alemães. Mas não vou. Tenho outras ideias. Sabe o senhor comendador o que faz mais falta na Metrópole, dizem todos os políticos, segundo as gazetas, nos seus arrazoados do Parlamento e da palhaçada eleitoralista?... Iniciativa! Gente com capacidade de iniciativa! Gente capaz de arriscar forte! Eu e o Raul temos tudo isso e temos dinheiro. E somos capazes de juntar muito mais! Se os políticos falam verdade, diz-me o instinto, todos juntos, os homens portugueses de iniciativa e com testículos, não tardará que agarremos os países mais ricos da Europa… a Inglaterra, a França, a Bélgica, a Prússia, a Holanda, a Áustria, a Catalunha… a Lombardia. Construiremos o império africano mais rico, mais rico do que foi o império do Brasil. Deixaremos definitivamente a cauda da Europa!
Tinha, pensava ele, jogado todos os seus trunfos.
Mas, talvez na dúvida, quis explicar melhor ainda.
- Portanto, senhor comendador… – acrescentou. – Peço-lhe que transmita isto ao senhor governador, pela via mais rápida que puder, porque é muito urgente. Ou o senhor governador retira a exigência de sujeitarmos a milícia ao senhor padre superior, ou não haverá milícia, porque o padre superior não quer nada com ela. Mas… sem milícia que nos garanta a ocupação do território, vêm os ingleses ocupá-lo, mais tarde ou mais cedo, e não haverá investimentos de colonos portugueses. Os ingleses acabarão por ocupar tudo, mesmo tudo, senhor comendador, e deixará de haver Angola. Para Portugal e os portugueses, claro, como compreende.
Raul estava estarrecido com os extremos a que chegava a habitual audácia do irmão. Vira-o muitas vezes jogar forte nos negócios de ambos de escravos, com os escravocratas, negros e brancos, mas nunca o vira arriscar tanto, verdadeiramente tudo, como agora.
Porém, mais o surpreendeu ainda a reacção do comendador, mal que Manuel acabara de pintar o seu quadro, tão negro quanto cheio de expectativas grandiosas.
- De acordo! – proclamou ele – Irei a Luanda no vapor de amanhã. Já amanhã! Juro-lhe que trarei o sim incondicional do governador, como trarei, se vier a ser necessário alguma vez, os sins igualmente incondicionais de todos os governadores que sejam nomeados depois deste. Far-lhes-ei compreender que finalmente temos aqui Homens! Os homens que são precisos para afrontar os novos tempos de África. O tempo é dos negociantes e industriais. E dos empreiteiros de estradas e caminhos de ferro. Os missionários fizeram imenso, aportuguesaram aquela Angola e o Congo que os militares e diplomatas conquistaram e delimitaram. Mas a partir de agora vamos ter de fazer disto um Império! Carecemos só de empreendedores visionários! Já os temos! São vocês, minha gente.
A cisão de dois mundos ou duas eras, de que o comendador acabava de dar-se conta, entre o passado que findava e o futuro que ali começava, estava apenas anunciada mas Manuel compreendeu, naquele instante preciso, que essa cisão ia marcar o futuro de Angola – e de Portugal talvez - trazer enfim horizontes novos, ainda insuspeitos, mas radicalmente novos.
Em que preciso sentido, não saberia dizê-lo, nem de perto nem de longe. Sentindo-se completamente às escuras, via porém tudo luminoso, da luz fortíssima que de súbito passara a iluminar sem qualquer sombra o seu próprio ideário e lhe punha o corpo em chama, tinha a certeza. Via o caminho todo iluminado à sua frente, com tal claridade e segurança que a esperada resposta do governador nem o inquietava ou punha em ânsias, nem lhe trazia receio algum de que o futuro pudesse vir a ser diferente daquilo que os três mosqueteiros já sonhavam.
O futuro estava ali, de ora em diante, à mão de semear.
A.C.R.
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O que é que poderia voltar a encorajá-los?
O comendador e os seus jovens amigos de tão recente data sentiam-se efectivamente perdidos.
Fora completamente inesperado aquele banho de água gelada das últimas palavras do padre superior.
Aparentemente não se discutiam as potencialidades dos negócios, mas quanto ao resto…
Manuel fazia cada vez mais finca-pé na ideia de que, sem segurança garantida contra a eventualidade de incursões inglesas, seguindo aliás a opinião dominante na associação local mais representativa de colonos da Metrópole, não seria possível atrair os investimentos necessários aos empreendimentos previstos.
Ponto assente para os três, comendador e jovens amigos.
Conclusão: isto é, inviabilidade do projecto, uma vez que nenhum julgava possível convencer o padre superior a dar o seu e apoio à milícia, como o governador exigia.
Beco sem saída nem remédio.
Definitivamente!
O que, porém, Manuel achava mais desanimador era a resignação com que o comendador e o próprio Raul lhe pareciam aceitar a renúncia do padre superior e, portanto, a liquidação de perspectivas do próprio projecto de negócios, que a seus olhos assumira entretanto as proporções de formidável aventura. Tornara-se um desafio que não lhe era possível evitar, nem poderia jamais perder.
Num jeito súbito muito seu, Manuel decidiu levar os companheiros às do cabo, jogando tudo por tudo.
- Senhor comendador! – e levantou-se para continuar com uma exaltação e firmeza maiores do que alguma vez lhe tinham visto – Sem a milícia a funcionar, regresso imediatamente à Metrópole, não quero saber de mais nada. Volto para onde me entendam e falem a mesma língua que eu. Podia ir pôr os nossos projectos ao serviço de belgas, franceses e ingleses. Ou alemães. Mas não vou. Tenho outras ideias. Sabe o senhor comendador o que faz mais falta na Metrópole, dizem todos os políticos, segundo as gazetas, nos seus arrazoados do Parlamento e da palhaçada eleitoralista?... Iniciativa! Gente com capacidade de iniciativa! Gente capaz de arriscar forte! Eu e o Raul temos tudo isso e temos dinheiro. E somos capazes de juntar muito mais! Se os políticos falam verdade, diz-me o instinto, todos juntos, os homens portugueses de iniciativa e com testículos, não tardará que agarremos os países mais ricos da Europa… a Inglaterra, a França, a Bélgica, a Prússia, a Holanda, a Áustria, a Catalunha… a Lombardia. Construiremos o império africano mais rico, mais rico do que foi o império do Brasil. Deixaremos definitivamente a cauda da Europa!
Tinha, pensava ele, jogado todos os seus trunfos.
Mas, talvez na dúvida, quis explicar melhor ainda.
- Portanto, senhor comendador… – acrescentou. – Peço-lhe que transmita isto ao senhor governador, pela via mais rápida que puder, porque é muito urgente. Ou o senhor governador retira a exigência de sujeitarmos a milícia ao senhor padre superior, ou não haverá milícia, porque o padre superior não quer nada com ela. Mas… sem milícia que nos garanta a ocupação do território, vêm os ingleses ocupá-lo, mais tarde ou mais cedo, e não haverá investimentos de colonos portugueses. Os ingleses acabarão por ocupar tudo, mesmo tudo, senhor comendador, e deixará de haver Angola. Para Portugal e os portugueses, claro, como compreende.
Raul estava estarrecido com os extremos a que chegava a habitual audácia do irmão. Vira-o muitas vezes jogar forte nos negócios de ambos de escravos, com os escravocratas, negros e brancos, mas nunca o vira arriscar tanto, verdadeiramente tudo, como agora.
Porém, mais o surpreendeu ainda a reacção do comendador, mal que Manuel acabara de pintar o seu quadro, tão negro quanto cheio de expectativas grandiosas.
- De acordo! – proclamou ele – Irei a Luanda no vapor de amanhã. Já amanhã! Juro-lhe que trarei o sim incondicional do governador, como trarei, se vier a ser necessário alguma vez, os sins igualmente incondicionais de todos os governadores que sejam nomeados depois deste. Far-lhes-ei compreender que finalmente temos aqui Homens! Os homens que são precisos para afrontar os novos tempos de África. O tempo é dos negociantes e industriais. E dos empreiteiros de estradas e caminhos de ferro. Os missionários fizeram imenso, aportuguesaram aquela Angola e o Congo que os militares e diplomatas conquistaram e delimitaram. Mas a partir de agora vamos ter de fazer disto um Império! Carecemos só de empreendedores visionários! Já os temos! São vocês, minha gente.
A cisão de dois mundos ou duas eras, de que o comendador acabava de dar-se conta, entre o passado que findava e o futuro que ali começava, estava apenas anunciada mas Manuel compreendeu, naquele instante preciso, que essa cisão ia marcar o futuro de Angola – e de Portugal talvez - trazer enfim horizontes novos, ainda insuspeitos, mas radicalmente novos.
Em que preciso sentido, não saberia dizê-lo, nem de perto nem de longe. Sentindo-se completamente às escuras, via porém tudo luminoso, da luz fortíssima que de súbito passara a iluminar sem qualquer sombra o seu próprio ideário e lhe punha o corpo em chama, tinha a certeza. Via o caminho todo iluminado à sua frente, com tal claridade e segurança que a esperada resposta do governador nem o inquietava ou punha em ânsias, nem lhe trazia receio algum de que o futuro pudesse vir a ser diferente daquilo que os três mosqueteiros já sonhavam.
O futuro estava ali, de ora em diante, à mão de semear.
A.C.R.
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