2006/12/15
Memórias das minhas Aldeias
Parte II – N.º 15
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Quando os três chegaram a Luanda, navegando à vista da costa desde que clareou o dia, os funcionários que os aguardavam impacientes acompanharam-nos imediatamente ao Palácio do Governo, numa verdadeira corrida para aparecerem à hora que o governador fixara.
A surpresa foi completa.
O governador, com ar pomposo q.b., queria mostrar-lhes um projecto de despacho que autorizava a criação no Ambriz, a título experimental, da primeira milícia de Angola. O projectado regulamento era em grande parte copiado da regulamentação das antigas milícias dissolvidas pelo liberalismo, em 1834. Como elas, ficaria a nova milícia sujeita a um regime militar atenuado, mas dependente da autoridade militar central da colónia, neste caso sita em Luanda.
O governador quis ler o projecto em voz alta aos seus convocados, de fio a pavio, e sugeriu que também os três o lessem e relessem a seguir cuidadosamente, o discutissem entre si e depois lhe pedissem os esclarecimentos todos a ele governador, que, ao dá-los, algumas vezes viria a meter os pés pelas mãos, ainda que quase sempre com arte consumada.
Mas lá conseguiram chegar todos à conclusão de que lhes parecia muito bem a intenção, os propósitos a atingir e a solução encontrada para tudo pôr em obra, incluindo a garantia de algum financiamento a assegurar pelo governo, em associação com a população e as forças vivas locais e visando o fornecimento de armas e munições, algum equipamento e alguma instrução militar.
Tudo desde que…
Tudo desde que – objectaram os visitantes, Manuel à cabeça – também ficasse bem claro o poder da futura milícia para convocar, como soldados rasos ou simples auxiliares sem qualificação militar, alguns negros perfeitamente identificáveis e com residência cabalmente registada, sujeitos à mais rigorosa disciplina.
O governador não sabia como resolver a questão mas garantiu que ia resolvê-la um desses dias, ali mesmo, em reunião com os responsáveis militares de Luanda, por forma a satisfazer as necessidades de mobilização de auxiliares civis negros, apresentadas pela “embaixada dos cidadãos do Ambriz”, como logo lhes chamou.
- E sem de modo algum estabelecer precedentes para a inclusão de “brancos e negros ou mulatos em pé de igualdade” nas forças armadas da Nação – lembrou-se o governador de precisar também, perante algumas objecções dos “embaixadores”, quando já se despediam, à saída do Palácio.
- E não podemos exagerar… – aproveitou ele ainda para explicar – Não é uma nova unidade militar convencional que se quer criar mas uma unidade de auto-defesa da população, no espírito das milícias antigas, escorreitas e sem militarismo, dedicadas e com meios mínimos, reunidos localmente. Não foi o senhor, Manuel Cruz, que as explicou assim?
Posto em sentido, muito sério, Manuel Cruz confirmou.
- Fui, sim, meu governador! – disse com o aprumo de recruta excelente que fora em Coimbra, na sua unidade de cavalaria.
Não vou fazer perder tempo ao leitor com descrições da cidade de Luanda de meados do séc. XIX. De resto, os três companheiros que seguimos até aqui não pareciam nada interessados na paisagem urbana à sua volta. Não obstante ser a de uma verdadeira pequena cidade colonial importante, com o seu centro social e administrativo anunciando já pretensões de Luanda a capital da colónia unificada, futura província ultramarina, futuro estado da comunidade portuguesa de estados, futuro Estado independente com assento na ONU.
Por tudo isso e os cerca de dez mil habitantes que teria por altura da visita da embaixada que o governador acabava de receber; como pela grandeza e beleza da paisagem do lado do mar e da Ilha de Luanda; como ainda pelo valor económico das actividades ali desenvolvidas e como base militar da ocupação do território e base histórica da conquista do sul do Cuanza, até ao Cunene, após a derrota da dinastia que governara o reino de Angola, Luanda não tinha termo de comparação em qualquer outro lugar de Angola e do reino do Congo, incluindo o baixo Zaire, de Kinshasa até à foz.
Mas nada disso, naquela hora, atraía minimamente os três emissários do padre superior da missão católica do Ambriz. Eles discutiam animadamente, entre si, era a interpretação a fazer do que Manuel pela segunda ou terceira vez acabava de contar-lhes. Tratava-se daquilo que o governador deixara escapar, enquanto Manuel ficava para trás com ele, durante alguns minutos, antes de se reunirem todos outra vez e finalmente os três juntos saírem para a rua.
Manuel começara por contar aos companheiros que decidira enfrentar o governador a sós com ele. Perguntou-lhe se acreditava em tudo aquilo dos regulamentos e despachos que lhes mostrara.
Apanhando-o de chofre, Manuel percebeu que o embaraçara e decidiu aproveitar para espetar a farpa mais fundo.
“Senhor governador, ou Vossa Excelência nos dá carta branca ou nem daqui a vinte anos temos milícia!”
Para sua surpresa ainda maior, depois de um curtíssimo silêncio, o governador recuperou o fôlego e quase sussurrou: “Confio cegamente no padre superior. Se ele os apoiar… Diga-lhe isto. Organizem-se imediatamente à maneira da milícia que seu avô comandou na Beira. Treinem com quaisquer armas. Daqui a três meses mando-lhes fundos para adquirirem outras melhores e pagarem algumas despesas. O despacho virá um dia para legalizar tudo e repor a ordem burocrática. Contacte-me por cartas confidenciais, mande-mas por mão própria. Nem mais uma palavra. Adeus. Boa viagem!”
A discussão entre os três chegou a ser violenta, porque os companheiros de Manuel não conseguiam compreender tanto segredo e a súbita viragem do governador, em conversa à parte apenas com um dos três “embaixadores”. Teriam ficado num impasse, se o comendador não tivesse dito, já a bordo outra vez.
“Manuel! Você é capaz de repetir tudo isso que o governador lhe disse, diante do padre superior?”
“Sou! Claro que sou. E ponho por escrito as palavra exactas que ele me sussurrou aos ouvidos, só para as não esquecer nem adulterar.”
“E jura sobre os santos Evangelhos que são a verdade pura?”
“Juro!”
E depois de uma hesitação, Manuel completou.
“Juro, mas vós, e o padre superior também, juram igualmente não repeti-las nem contar nada a ninguém. Concordam?”
“Concordamos!” – exclamaram os dois.
“Unidos até à morte!” – disseram depois os três, juntos todos num abraço só, com um vozeirão assustador.
E desandaram para o bilhar que os esperava, livre e arrumadinho, a chamar por eles no salão da primeira classe do barco.
A.C.R.
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Quando os três chegaram a Luanda, navegando à vista da costa desde que clareou o dia, os funcionários que os aguardavam impacientes acompanharam-nos imediatamente ao Palácio do Governo, numa verdadeira corrida para aparecerem à hora que o governador fixara.
A surpresa foi completa.
O governador, com ar pomposo q.b., queria mostrar-lhes um projecto de despacho que autorizava a criação no Ambriz, a título experimental, da primeira milícia de Angola. O projectado regulamento era em grande parte copiado da regulamentação das antigas milícias dissolvidas pelo liberalismo, em 1834. Como elas, ficaria a nova milícia sujeita a um regime militar atenuado, mas dependente da autoridade militar central da colónia, neste caso sita em Luanda.
O governador quis ler o projecto em voz alta aos seus convocados, de fio a pavio, e sugeriu que também os três o lessem e relessem a seguir cuidadosamente, o discutissem entre si e depois lhe pedissem os esclarecimentos todos a ele governador, que, ao dá-los, algumas vezes viria a meter os pés pelas mãos, ainda que quase sempre com arte consumada.
Mas lá conseguiram chegar todos à conclusão de que lhes parecia muito bem a intenção, os propósitos a atingir e a solução encontrada para tudo pôr em obra, incluindo a garantia de algum financiamento a assegurar pelo governo, em associação com a população e as forças vivas locais e visando o fornecimento de armas e munições, algum equipamento e alguma instrução militar.
Tudo desde que…
Tudo desde que – objectaram os visitantes, Manuel à cabeça – também ficasse bem claro o poder da futura milícia para convocar, como soldados rasos ou simples auxiliares sem qualificação militar, alguns negros perfeitamente identificáveis e com residência cabalmente registada, sujeitos à mais rigorosa disciplina.
O governador não sabia como resolver a questão mas garantiu que ia resolvê-la um desses dias, ali mesmo, em reunião com os responsáveis militares de Luanda, por forma a satisfazer as necessidades de mobilização de auxiliares civis negros, apresentadas pela “embaixada dos cidadãos do Ambriz”, como logo lhes chamou.
- E sem de modo algum estabelecer precedentes para a inclusão de “brancos e negros ou mulatos em pé de igualdade” nas forças armadas da Nação – lembrou-se o governador de precisar também, perante algumas objecções dos “embaixadores”, quando já se despediam, à saída do Palácio.
- E não podemos exagerar… – aproveitou ele ainda para explicar – Não é uma nova unidade militar convencional que se quer criar mas uma unidade de auto-defesa da população, no espírito das milícias antigas, escorreitas e sem militarismo, dedicadas e com meios mínimos, reunidos localmente. Não foi o senhor, Manuel Cruz, que as explicou assim?
Posto em sentido, muito sério, Manuel Cruz confirmou.
- Fui, sim, meu governador! – disse com o aprumo de recruta excelente que fora em Coimbra, na sua unidade de cavalaria.
Não vou fazer perder tempo ao leitor com descrições da cidade de Luanda de meados do séc. XIX. De resto, os três companheiros que seguimos até aqui não pareciam nada interessados na paisagem urbana à sua volta. Não obstante ser a de uma verdadeira pequena cidade colonial importante, com o seu centro social e administrativo anunciando já pretensões de Luanda a capital da colónia unificada, futura província ultramarina, futuro estado da comunidade portuguesa de estados, futuro Estado independente com assento na ONU.
Por tudo isso e os cerca de dez mil habitantes que teria por altura da visita da embaixada que o governador acabava de receber; como pela grandeza e beleza da paisagem do lado do mar e da Ilha de Luanda; como ainda pelo valor económico das actividades ali desenvolvidas e como base militar da ocupação do território e base histórica da conquista do sul do Cuanza, até ao Cunene, após a derrota da dinastia que governara o reino de Angola, Luanda não tinha termo de comparação em qualquer outro lugar de Angola e do reino do Congo, incluindo o baixo Zaire, de Kinshasa até à foz.
Mas nada disso, naquela hora, atraía minimamente os três emissários do padre superior da missão católica do Ambriz. Eles discutiam animadamente, entre si, era a interpretação a fazer do que Manuel pela segunda ou terceira vez acabava de contar-lhes. Tratava-se daquilo que o governador deixara escapar, enquanto Manuel ficava para trás com ele, durante alguns minutos, antes de se reunirem todos outra vez e finalmente os três juntos saírem para a rua.
Manuel começara por contar aos companheiros que decidira enfrentar o governador a sós com ele. Perguntou-lhe se acreditava em tudo aquilo dos regulamentos e despachos que lhes mostrara.
Apanhando-o de chofre, Manuel percebeu que o embaraçara e decidiu aproveitar para espetar a farpa mais fundo.
“Senhor governador, ou Vossa Excelência nos dá carta branca ou nem daqui a vinte anos temos milícia!”
Para sua surpresa ainda maior, depois de um curtíssimo silêncio, o governador recuperou o fôlego e quase sussurrou: “Confio cegamente no padre superior. Se ele os apoiar… Diga-lhe isto. Organizem-se imediatamente à maneira da milícia que seu avô comandou na Beira. Treinem com quaisquer armas. Daqui a três meses mando-lhes fundos para adquirirem outras melhores e pagarem algumas despesas. O despacho virá um dia para legalizar tudo e repor a ordem burocrática. Contacte-me por cartas confidenciais, mande-mas por mão própria. Nem mais uma palavra. Adeus. Boa viagem!”
A discussão entre os três chegou a ser violenta, porque os companheiros de Manuel não conseguiam compreender tanto segredo e a súbita viragem do governador, em conversa à parte apenas com um dos três “embaixadores”. Teriam ficado num impasse, se o comendador não tivesse dito, já a bordo outra vez.
“Manuel! Você é capaz de repetir tudo isso que o governador lhe disse, diante do padre superior?”
“Sou! Claro que sou. E ponho por escrito as palavra exactas que ele me sussurrou aos ouvidos, só para as não esquecer nem adulterar.”
“E jura sobre os santos Evangelhos que são a verdade pura?”
“Juro!”
E depois de uma hesitação, Manuel completou.
“Juro, mas vós, e o padre superior também, juram igualmente não repeti-las nem contar nada a ninguém. Concordam?”
“Concordamos!” – exclamaram os dois.
“Unidos até à morte!” – disseram depois os três, juntos todos num abraço só, com um vozeirão assustador.
E desandaram para o bilhar que os esperava, livre e arrumadinho, a chamar por eles no salão da primeira classe do barco.
A.C.R.
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