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2006/11/28

Memórias das minhas Aldeias
Parte II – N.º 11 

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O superior da missão convidou-os para comerem com a comunidade e para dormirem lá também, que poderiam ao outro dia, logo que madrugasse, ver o mercado semanal que, a escassos metros dali, se realizava regularmente de mês a mês.

Assegurou ele que o mercado era mais movimentado mesmo que a muito badalada feira semanal do Ambriz…

Manuel e Raul aceitaram com gosto os convites e, sem quererem ou pouco fazendo para isso, foram as conversas, tanto ao almoço como ao jantar, deslizando para o campo de maiores interesses dos dois visitantes.

Sem escândalo aliás, nem motivo de prevenções para os padres, que ficaram absolutamente tranquilos sobre a educação dos dois rapazes, quando, logo ao almoço, os viram acompanhar com simples naturalidade, de quem estava habituado, a oração em voz alta que o padre superior rezou antes de se sentarem todos à mesa. Como também ele reparou que ambos se persignavam sem um gesto hesitante.

Desde esse instante, todos, visitantes e visitados, ficaram completamente seguros e à vontade uns com os outros.

Não havia dúvidas, eram sem excepção da mesma “nação” e da mesma gente.

Da mesma “igualha”, digamos.

Da mesma sociedade, enfim.

Digamos também que, nalguns aspectos, os padres presumiam um pouco.

Mas, seja dito francamente, o defeito era mais dos visitantes que dos visitados, que não se tinham ainda (possivelmente jamais), como os visitantes se tinham já, por socialmente superiores a tudo ou capazes de, em qualquer lado, superar tudo e todos.

Esse “tudo” e “todos”, isso sim, é que muito presumivelmente decorre da juventude, ambições e força da vida curta, mas calejada, dos manos Cruz.

Anddiamo! Que a vida é curta e cobra caro os cheques em branco que nos passa.

Embora aquela noite, ao jantar, abundante mas demasiado simples, não fosse possível ocorrer aos convivas que já estavam compensando a curteza da vida, ao planearem um futuro que em muito já pertenceria um dia, não a eles mas a outras vidas.

Ao jantar, com efeito, acabaram por falar claramente de negócios, uma vez que sobre religião não encontraram ponto de desacordo ou da mais leve controvérsia. E até porque, em certo momento, Manuel apercebeu-se de que era mais fácil entender os planos e projectos religiosos da missão, falando de negócios, que falando abertamente de religião.

O que não é nem se afigura paradoxal aos olhos de boa gente batida deste mundo.

Isto é, atendendo à profunda dignidade das transacções comerciais e do acto de transaccionar comercialmente, em si mesmo.

Dizem eles, “gente” batida.

Os padres não o diziam nem pensavam sequer, tinham-no por natural, era como se…

Com toda a simplicidade.

Foram eles que sugeriram o verdadeiro caminho, a Manuel e Raul Cruz.

- Os senhores têm dinheiro… – começou o padre superior por dizer.

Eles mesmo o tinham dado a entender, contando que se haviam desligado por inteiro e definitivamente do tráfico negreiro e, logicamente, amealhado algum capital, que o “patrão” lhes liquidara fielmente ao denunciarem por mútuo acordo o contrato com Veiga Santos, sobejamente conhecido aliás de todos os convivas e com prestígio de excelente cumpridor dos seus ajustes, como todos mui convictamente confirmaram.

- Ah! Se todos os negreiros tivessem sido como ele!... – sintetizou o padre superior, obviamente sem reticências porventura enganadoras e dando, evidentemente, por ainda mais óbvia a desnecessidade de prolixas explicações.

- Sim, os senhores têm dinheiro… - repetiu retomando o fio à meada -. Porque não hão-de instalar aqui uma fábrica de óleo de palma?

Perante a estranheza dos seus interlocutores e companheiros, o padre superior explicou minuciosamente e com evidente gosto.

- Pois, pois. Uma fábrica de óleo de palma. Vejam. A palma… Quero dizer, a castanha de palma de que se extrai o óleo é abundantíssima em toda a região, até ao Ambrizete, a Norte, e mesmo até ao Zaire, que foi o nome que deu ao rio o Diogo Cão e é o nome que do lado de cá, a Sul, lhe damos sempre. É só apanhá-la das palmeiras, o que os nativos fazem com pouca despesa. Mais caras são as máquinas. Deveriam seleccionar-se as mais modernas, realmente caras, essas. Com o óleo fabricariam o sabão que agora se importa da Europa e chega caríssimo.

Ao falar de sabão, era evidente a obsessão do padre superior por limpeza… Raul veio a descobrir que a higiene era uma espécie de apostolado leigo dele, que entretanto ia continuando…

- Vejam… Os nativos comprariam o sabão com o que os senhores, claro, lhes dessem pela apanha da castanha de palma. A tecnologia do fabrico do sabão é muito simples, meus senhores. E a castanha de palma não pertence verdadeiramente a ninguém, em particular. Mas os meus amigos poderiam vender-lhes e comprar-lhes muitas outras coisas. Os senhores sabem-no melhor que eu, porque há muitos anos conhecem essa forma de negociar. Ganhariam ainda mais, com o negócio do sabão e do óleo de palma, para a indústria e a alimentação, e prestariam um formidável empurrão ao emprego desta pobre gente. Que passaria a ter mais motivos para se deixar civilizar e catequizar! Tudo redundaria, afinal, num excepcional impulso para o desenvolvimento geral, de brancos, pretos… e mulatos, que vão sendo cada vez em maior número. Brancos e pretas cada vez mais desenfreados e poderá ser que a fábrica também ocupe alguns, pretas e brancos, e lhes tire tempo e energias para para andarem por aí a perder-se e disparatar, a enrolar-se que “é um ver se te avias!” Que Deus nos ajude!

A última ninguém percebeu. A não ser talvez que o padre superior não visse senão a intervenção divina como saída para a proliferação de mulatos e mulatas, para mais, gente que, dada a História curta da invenção recente do mulato, por portugueses incultos, em África e no Brasil, nada podia saber, ou pouquíssimo, daquilo em que o mulato viria a dar, desse o que desse e desse por onde desse.

Além de que, por acréscimo, também não nascera o Gilberto Freyre, criador da doutrina-religião do luso-tropicalismo.

Mas a verdade é que os portugueses emigrados em Africa, como os da América, no Brasil e Antilhas, tinham percebido desde logo a simpática e muito sexy doutrina-religião do luso-tropicalismo, séculos antes do Gilberto Freyre a descobrir. Exímios e com incansável empenho, eles praticaram-na largamente, durante esses séculos todos, sem saberem ler nem escrever.

Na verdade, quando lá chegaram as teorias, já o luso-tropicalismo estava à espera delas, mas com todas as armadilhas montadas. Sobretudo para as belgas ardentes, quando descobriram o luso-tropicalismo no futuro Congo Belga, em versão flamenga ou valã, praticada com os negros que elas chegaram a preferir mesmo aos colonos brancos, portugueses e gregos solteiros, que abundavam por lá mas – confidenciavam elas a quem queria ouvi-las – se lavavam menos que os pretos. Desculpas.

A.C.R.

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