2006/11/17
Memórias das minhas Aldeias
Parte II – N.º 8
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Manuel e Raul tiraram daqui outras consequências, mais centradas nos seus próprios interesses.
É que, apesar de tudo, em Angola esses problemas de ocupação administrativa do território não se punham como nas margens do Zaire. Tanto quanto conheciam, de Maquela do Zombo, ou São Salvador, até ao Ambriz e Ambrizete, ele e o irmão não haviam dado por lacunas da ocupação administrativa ou da rede judicial e notarial, no espaço reconhecido como sujeito ao protectorado português.
Uma conclusão honesta mas fruto de excesso de boa vontade e do optimismo patriótico português?
Daí tiraram também outra conclusão para si próprios, que não confessaram logo um ao outro.
Foi só depois dalgum tempo de reflexão que Raul ousou quebrar o silêncio, porque já não aguentava mais.
- Não te parece que, em vez de nos estabelecermos aqui, em Boma, seria melhor irmos para São Salvador ou para o Ambriz?
Manuel sorriu-se por constatar o avanço que o irmão já levava, pois nunca haviam falado de estabelecerem-se definitivamente com negócio próprio. Ou talvez tivesse sido alguma desatenção sua, pensou, preferindo fazer que não entendera, desta feita.
Raul percebeu e pareceu-lhe que corava, coisa que lhe acontecia com frequência quando falava com o irmão. Já fora muito pior. Tempo houvera que o irmão o intimidava muito mais. Agora menos e acontecia muito mais raramente. Ainda assim, também era verdade que a sua timidez se lhe tornara sempre mais insuportável. Estava certo, porém, de que se venceria a si próprio por completo um dia. Mas quando? Sabia que tudo era melhor, e que a timidez quase se lhe sumia, quando amava.
Estranho e contra tudo o que se diz.
Pois não era?
Apaixonado, sim, era invencível.
O amor tornava-o imune às fraquezas mais correntes do seu temperamento.
O sexo com as negras não tinha qualquer efeito, descobrira desde o princípio. Com elas sofria sempre a timidez em força. E não é que pareciam gostar?
Conclusão: tinha, tinham de enriquecer de pressa para de pressa poder apaixonar-se pela mulher da sua vida, quem quer que ela fosse, a branca dos seus sonhos de tantas noites em vigílias.
Seria aquela de Boma, mulher do arrogante colono grego, com o Parténon na barriga?
Poderia ter chegado a ser ela?
Imaginou de súbito que o irmão percebera o perigo e se apressara a sair e fazê-lo sair de Boma, não fosse um dos dois ou os dois a perderem a cabeça, que ela não era para menos.
Sim, porque – Raul não tinha dúvida – também Manuel sofrera o choque, estivera quase a deixar-se fulminar. Mas com o seu habitual auto-domínio, prontamente tomara a decisão de se safarem ambos do perigo, sem perda de tempo. Ainda bem! – regozijou-se Raul intimamente, porque caso se apaixonassem ambos pela grega e fosse “de caixão à cova”, como ela impunha e merecia, era o fim duma bela amizade fraterna, simplesmente o mais provável. Raul saiu a cantarolar de ao pé do irmão, que notou o súbito regozijo do mano, mas sem minimamente fazer ideia dos motivos e pensamentos dele.
E deitaram-se ambos furiosamente ao trabalho.
Raul perguntar-se-ia algumas vezes se a fúria do irmão teria a mesma origem que a sua.
Seria só por ganhar dinheiro pelo dinheiro, ou porque também ele queria amar e ser amado violentamente?
Mas nele aquilo não teria nada a ver com timidez, porque nunca o irmão manifestara o mínimo sintoma da insuportável “doença”, em tantos anos de absoluta transparência entre ambos, sem nada se esconderem um ao outro ou quase nada.
Quando Manuel e Raul chegaram ao Ambriz, passados poucos dias, já o caso deles era muito comentado e, sem o saberem, já gozavam duma aura como não seriam capazes de imaginar: sim, tinham fugido de Boma para não se traírem nem traírem uma muito funda amizade de irmãos, apaixonados ambos por uma grega muito mais bela que a Helena de Tróia e ainda mais tentadora que a Vénus de Milo, com ou sem braços!
Era demais para a pasmaceira habitual do Ambriz!
Idos de Boma por mar, Manuel e Raul acharam logo o Ambriz tão insignificante ou mais que o então mais importante porto do Zaire, que tinham deixado, e com uma actividade comercial que imediatamente se lhes afigurou em franca modorra.
Mas adivinhando talvez a decepção de ambos, também logo alguém houve que quis amenizar-lhes as primeiras impressões, assegurando-lhes que o interior circundante do Ambriz tinha um potencial consumidor que justificava algum empenho de gente nova e ambiciosa. Porque quanto “ao resto”, o comércio de escravos, havia unanimidade, era chão que tinha dado uvas. Os ingleses, segundo aquele primeiro interlocutor, não deixavam nenhum incauto pôr pé em ramo verde.
Como eles o sabiam!
Mas também traziam consigo, bem frescas, as lições da “praça” de Boma, que haviam de conduzi-los e valer-lhes.
Sim, os ingleses eram o grande problema para os negócios, no Ambriz, como já calculavam os irmãos Cruz, que assim viriam a ficar ali conhecidos. Mas, de certo modo, por outras razões, que não tardariam a descobrir.
Os ingleses de há muito acusavam os governos portugueses de não controlarem eficazmente a região do Ambriz, povoação e rio adiante, quer no que respeitava ao hinterland e seus sobas, sempre dispondo, se lhes convinha, de reservas aparentemente inesgotáveis de “peças” para transaccionar; quer quanto a facilidades de embarque da “mercadoria” nos barcos que afluíam sem dificuldades ao porto do Ambriz, completamente desprovido de artilharia de costa ou de quaisquer outros meios impeditivos das incursões dos barcos negreiros e anti-negreiros.
Exigiam, por isso, os governos ingleses que Portugal ocupasse efectivamente o território, como aconteceu no fim do absolutismo e nos começos do liberalismo, para de todo controlar e impedir o comércio de escravos.
Ora os ingleses ameaçavam Portugal, a intervalos regulares.
Se Portugal não ocupava efectivamente o território, desembarcavam eles e assumiam as responsabilidades, para o que os portugueses, pelos vistos, não tinham meios nem disposição – diziam ou mandavam os ingleses dizer.
Era sob esta ameaça que viviam permanentemente os comerciantes e actividades produtivas do Ambriz e da região em redor, desde bons trinta anos antes da chegada dos irmãos Cruz.
Mais dia menos dia, os ingleses apareceriam para executar a velha sentença, fartos talvez de pensar que a Aliança anglo-lusa de mais de quatro séculos só servia para empatá-los, como pacto também de não-agressão que sempre fora entendida pelos portugueses.
A.C.R.
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Manuel e Raul tiraram daqui outras consequências, mais centradas nos seus próprios interesses.
É que, apesar de tudo, em Angola esses problemas de ocupação administrativa do território não se punham como nas margens do Zaire. Tanto quanto conheciam, de Maquela do Zombo, ou São Salvador, até ao Ambriz e Ambrizete, ele e o irmão não haviam dado por lacunas da ocupação administrativa ou da rede judicial e notarial, no espaço reconhecido como sujeito ao protectorado português.
Uma conclusão honesta mas fruto de excesso de boa vontade e do optimismo patriótico português?
Daí tiraram também outra conclusão para si próprios, que não confessaram logo um ao outro.
Foi só depois dalgum tempo de reflexão que Raul ousou quebrar o silêncio, porque já não aguentava mais.
- Não te parece que, em vez de nos estabelecermos aqui, em Boma, seria melhor irmos para São Salvador ou para o Ambriz?
Manuel sorriu-se por constatar o avanço que o irmão já levava, pois nunca haviam falado de estabelecerem-se definitivamente com negócio próprio. Ou talvez tivesse sido alguma desatenção sua, pensou, preferindo fazer que não entendera, desta feita.
Raul percebeu e pareceu-lhe que corava, coisa que lhe acontecia com frequência quando falava com o irmão. Já fora muito pior. Tempo houvera que o irmão o intimidava muito mais. Agora menos e acontecia muito mais raramente. Ainda assim, também era verdade que a sua timidez se lhe tornara sempre mais insuportável. Estava certo, porém, de que se venceria a si próprio por completo um dia. Mas quando? Sabia que tudo era melhor, e que a timidez quase se lhe sumia, quando amava.
Estranho e contra tudo o que se diz.
Pois não era?
Apaixonado, sim, era invencível.
O amor tornava-o imune às fraquezas mais correntes do seu temperamento.
O sexo com as negras não tinha qualquer efeito, descobrira desde o princípio. Com elas sofria sempre a timidez em força. E não é que pareciam gostar?
Conclusão: tinha, tinham de enriquecer de pressa para de pressa poder apaixonar-se pela mulher da sua vida, quem quer que ela fosse, a branca dos seus sonhos de tantas noites em vigílias.
Seria aquela de Boma, mulher do arrogante colono grego, com o Parténon na barriga?
Poderia ter chegado a ser ela?
Imaginou de súbito que o irmão percebera o perigo e se apressara a sair e fazê-lo sair de Boma, não fosse um dos dois ou os dois a perderem a cabeça, que ela não era para menos.
Sim, porque – Raul não tinha dúvida – também Manuel sofrera o choque, estivera quase a deixar-se fulminar. Mas com o seu habitual auto-domínio, prontamente tomara a decisão de se safarem ambos do perigo, sem perda de tempo. Ainda bem! – regozijou-se Raul intimamente, porque caso se apaixonassem ambos pela grega e fosse “de caixão à cova”, como ela impunha e merecia, era o fim duma bela amizade fraterna, simplesmente o mais provável. Raul saiu a cantarolar de ao pé do irmão, que notou o súbito regozijo do mano, mas sem minimamente fazer ideia dos motivos e pensamentos dele.
E deitaram-se ambos furiosamente ao trabalho.
Raul perguntar-se-ia algumas vezes se a fúria do irmão teria a mesma origem que a sua.
Seria só por ganhar dinheiro pelo dinheiro, ou porque também ele queria amar e ser amado violentamente?
Mas nele aquilo não teria nada a ver com timidez, porque nunca o irmão manifestara o mínimo sintoma da insuportável “doença”, em tantos anos de absoluta transparência entre ambos, sem nada se esconderem um ao outro ou quase nada.
Quando Manuel e Raul chegaram ao Ambriz, passados poucos dias, já o caso deles era muito comentado e, sem o saberem, já gozavam duma aura como não seriam capazes de imaginar: sim, tinham fugido de Boma para não se traírem nem traírem uma muito funda amizade de irmãos, apaixonados ambos por uma grega muito mais bela que a Helena de Tróia e ainda mais tentadora que a Vénus de Milo, com ou sem braços!
Era demais para a pasmaceira habitual do Ambriz!
Idos de Boma por mar, Manuel e Raul acharam logo o Ambriz tão insignificante ou mais que o então mais importante porto do Zaire, que tinham deixado, e com uma actividade comercial que imediatamente se lhes afigurou em franca modorra.
Mas adivinhando talvez a decepção de ambos, também logo alguém houve que quis amenizar-lhes as primeiras impressões, assegurando-lhes que o interior circundante do Ambriz tinha um potencial consumidor que justificava algum empenho de gente nova e ambiciosa. Porque quanto “ao resto”, o comércio de escravos, havia unanimidade, era chão que tinha dado uvas. Os ingleses, segundo aquele primeiro interlocutor, não deixavam nenhum incauto pôr pé em ramo verde.
Como eles o sabiam!
Mas também traziam consigo, bem frescas, as lições da “praça” de Boma, que haviam de conduzi-los e valer-lhes.
Sim, os ingleses eram o grande problema para os negócios, no Ambriz, como já calculavam os irmãos Cruz, que assim viriam a ficar ali conhecidos. Mas, de certo modo, por outras razões, que não tardariam a descobrir.
Os ingleses de há muito acusavam os governos portugueses de não controlarem eficazmente a região do Ambriz, povoação e rio adiante, quer no que respeitava ao hinterland e seus sobas, sempre dispondo, se lhes convinha, de reservas aparentemente inesgotáveis de “peças” para transaccionar; quer quanto a facilidades de embarque da “mercadoria” nos barcos que afluíam sem dificuldades ao porto do Ambriz, completamente desprovido de artilharia de costa ou de quaisquer outros meios impeditivos das incursões dos barcos negreiros e anti-negreiros.
Exigiam, por isso, os governos ingleses que Portugal ocupasse efectivamente o território, como aconteceu no fim do absolutismo e nos começos do liberalismo, para de todo controlar e impedir o comércio de escravos.
Ora os ingleses ameaçavam Portugal, a intervalos regulares.
Se Portugal não ocupava efectivamente o território, desembarcavam eles e assumiam as responsabilidades, para o que os portugueses, pelos vistos, não tinham meios nem disposição – diziam ou mandavam os ingleses dizer.
Era sob esta ameaça que viviam permanentemente os comerciantes e actividades produtivas do Ambriz e da região em redor, desde bons trinta anos antes da chegada dos irmãos Cruz.
Mais dia menos dia, os ingleses apareceriam para executar a velha sentença, fartos talvez de pensar que a Aliança anglo-lusa de mais de quatro séculos só servia para empatá-los, como pacto também de não-agressão que sempre fora entendida pelos portugueses.
A.C.R.
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