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2006/11/21

Memórias das minhas Aldeias
Parte II – N.º 9 

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No dia seguinte os ingleses voltaram.

Tinham deixado os navios ao largo durante a noite e desembarcado, no areal da praia do Ambriz, de três baleeiras a remos, mal a madrugada clareou.

Passados vinte e cinco minutos chegou um reforço do primeiro destacamento, em três outras tantas barcaças bastante maiores que as baleeiras. Tanto assim que ao todo eram já uns cinquenta ingleses em terra, assustadoramente armados, mais uma pequena mas pesada peça de de artilharia desembarcada da última barcaça, apontada para o mar, num pequeno relevo do terreno sobranceiro à praia.

Surpreendidos e atónitos, os da terra nem davam pela insensatez daquilo tudo.

Cerca de uma hora depois, perante o acrescido espanto dos mirones, os ingleses deram meia volta ao canhão que passou a apontar para terra.

Outra hora mais tarde, depois de longas conversas, na língua deles, entre três ingleses “fardados de almirantes”, que pareciam tudo comandar, a peça de artilharia, depois de bem limpa e melhor polida, foi cuidadosamente reembarcada na barcaça que a trouxera, a qual barcaça não tardou a afastar-se em direcção ao navio donde saíra e para cujo convés logo foi prontamente içada.

Os homens restantes do destacamento “ocupante” não tardaram a seguir o mesmo caminho, em direcção aos dois navios ingleses de guerra, perfeitamente visíveis de terra a olho nu, como visível era tudo o que neles se passava na zona da amurada e convés.

Os ingleses não haviam dado explicação alguma, fosse a quem fosse, nem falaram com qualquer português ou indígena. Esperavam os mirones, em terra, embora com algum temor, que os “invasores” agora ao menos ensaiassem alguns disparos de pólvora seca. Mas não. Desfraldaram bandeiras e desapareceram calmamente, sem uma hesitação e quase sem ruído, até mesmo o das máquinas a vapor, com todos os seus cavalos de HP.

Cavalheiros impecáveis, até ao fim, os nobres “bifes”.

A “ocupação” não chegara a durar três horas e meia.

Anos mais tarde, no único livro de História que registou o episódio, falando do desprezo britânico pela “velha Aliança” – aliás injustamente, como já se deu a entender – o autor põe a hipótese de ter-se tratado de mero ensaio para uso diplomático, entre chancelarias, comprovando a total inexistência ali, em terra à beira-mar e no mar à beira-terra, de qualquer autoridade portuguesa efectiva, realmente soberana e actuante, como justificação para um desembarque inglês a sério, um dia, logo que não pudesse deixar de ser… Mesmo que não fosse isso total presunção, lusitana, pois que talvez os ingleses não pudessem adivinhar que já nessa altura começava a germinar em diplomáticas cabecinhas lusas o sonho quixotescamente imperial do “mapa cor de rosa”.

Mas quê! Todos os poderes na África sub-sariana tão vasta eram então tão limitados ou frágeis, que tudo era ou parecia possível, sem quixotismos.

O “comité português de observadores”, reunido essa noite para debater o estranhíssimo caso do dia, inclinou-se para uma explicação tão vaga que não excluía nenhuma outra, incluindo a do futuro livro de História supra-referido, mas que todos os presentes consideraram perfeita, pois não continha nada que pudesse chamar-se uma inverdade ou uma provocação, fosse aos ingleses, fosse ao governo português.

Os irmãos Cruz, convidados para a reunião, evitaram pronunciar-se alegando desconhecimento dos dados todos da questão, mas realmente só porque não queriam comprometer-se antes de conhecerem bem as relações de forças da colónia, para não prejudicarem o seu futuro acesso aos mercados coloniais do… vejam bem!... do capital.

Vinha-lhes à tona todo o calo, é bem de ver, do seu comércio negreiro.

A sua prudência foi muito apreciada, a acrescentar à fama que os precedera da sua fraternidade impecável, e daí ter começado muito cedo a formar-se o extraordinário prestígio que ambos viriam a gozar, entre colonos e indígenas, essas entidades que, para os ingleses, nem existiam, pois chegaram e partiram, aquele famoso dia, sem sequer darem por elas.

No entender de Manuel Cruz, era precisamente isso e só isso que os ingleses tinham querido vir demonstrar e até proclamar.

Sem se cansar de divulgar a sua convicção.

Mas o sucedido deu-lhe uma outra ideia também.

Igualmente baseada nas histórias da guerrilha contra os franceses de Napoleão que o avô e a avó muitas vezes lhes tinham contado, eram os netos ainda pequenitos ou apenas adolescentes.

Lá chegaremos a seu tempo.

Para o que daremos tempo ao tempo, sem exagerar e se a criatividade historicista nos acudir nos tempos e alturas certas, com os recursos certos, para não deixar-nos perder oportunidade alguma, no jogo deste xadrez que nos cabe jogar com os parceiros e adversários a que o destino nos entregou, a nós autor, mas também processadores e revisores de textos, pesquisadores da internet/blogosfera, actores, figurantes e leitores destas memórias.

Vá, não se distraiam.

Quase sempre só muito tarde descobrimos toda a extensão das nossas limitações ou incapacidades.

Para as explorarmos como convém, naturalmente.

Porque, mesmo os prémios Nobel – é só um exemplo – não passam, senão raramente, da glorificação pela incompetência geral e pela vergonhosa audácia de alguns.

Por alguma razão nunca houve nem haverá um prémio Nobel da Filosofia. Aí até o académico José Gil era capaz de fazer figura de filósofo.

Admiram-se? Perceberam?

A.C.R.

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