<$BlogRSDUrl$>

2006/11/23

Memórias das minhas Aldeias
Parte II – N.º 10 

(<--)

Manuel e o irmão, nos dias seguintes, deram voltas pelas sanzalas de cubatas em palha e folhas secas, às vezes adobe, com armações de paus atados, nos arredores do Ambriz.

Queriam ver como viviam os negros.

Não lhes pareceu que tivessem coisa que os distinguisse por aí além dos nativos da margem norte do rio Zaire. A língua, se não era a mesma do baixo Congo, seria da mesma família, tantos eram os termos comuns. Ambos dominavam e praticavam com agilidade e astúcia a língua do Norte, a língua predominante do baixo Congo, desde as cataratas abaixo de Kinshasa até à foz, umas centenas de quilómetros para poente. Tinham-na aprendido e sucessivamente aperfeiçoado enquanto viajavam de soba em soba a adquirir a “mercadoria” para o tráfico de escravos, seguindo à letra as instruções e mapas recebidos em Seia do “fundador”. E depois, já em África, aprendendo no concreto com os operacionais no terreno das incursões esclavagistas, que o “velho” Veiga Santos os mandara procurar, com cartas de apresentação escritas por ele próprio, a explicar a chegada dos portadores, Manuel e Raul Cruz.

Assim acompanhados, e mais tarde sozinhos com as suas próprias “comitivas”, ambos viriam a calcorrear a vastíssima área controlada pela organização do velho negreiro, na Ponta Negra, em Boma, em Matadi, no Moerbeke, em Basankusu, em Kinshasa, no Inkisi, em Santo António do Zaire, foz do Congo, do lado português, se assim podia dizer-se, mas também em Maquela do Zombo, no Ambrizete, no Ambriz e até em Luanda, onde já tinham antes chegado a ir, mas uma vez só.

Nem os Nogueira de São Romão viriam a possuir uma rede comercial assim dispersa, abrangente e poderosa, entre cinquenta e cem anos depois, no apogeu de riqueza e influência da sua casa, famosa então em toda a África a Sul do Sael, como até em Portugal e na Bélgica.

Da sua experiência na margem direita do Congo/Zaire, Manuel e Raul Cruz tinham guardado também a ideia do proveito que sempre poderiam tirar das visitas “de conselho” às missões católicas e, às vezes, também às protestantes. A rede dumas e outras, sobretudo das primeiras, criada a partir das Descobertas de Diogo Cão e Bartolomeu Dias, estava já consolidada e em nova fase de grande desenvolvimento, com bases sólidas, por todo aquele enorme território, a Norte e a Sul do Zaire.

Para o comércio de escravos, não valera a pena contar com a Igreja, sobretudo com os Jesuítas que sempre rejeitaram qualquer mistura ou confusão com os escravocratas. Por isso consistia grande parte do trabalho dos missionários, daqueles e dos demais, em desincentivar a participação dos sobas no negócio “infame”, com ameaças do Inferno na outra vida e dos piores anátemas nesta, uma vez os sobas convertidos ao Cristianismo.

As missões – tinham descoberto ou constatado Manuel e Raul – as missões procuravam completar o seu papel contra o esclavagismo, dando trabalho livre aos nativos das redondezas, nas suas explorações agrícolas. Cada missão católica ou protestante tinha a sua, oferecendo ocupação regular para trabalhadores agrícolas, pedreiros, carpinteiros, caiadores, pintores, ferreiros, ferradores, serralheiros, serventes, empregadas de costura, alfaiates, cozinheiros e seus ajudantes, criados de mesa, de quartos/camaratas e de limpeza, ofícios de que as missões foram as primeiras escolas em todo o território do baixo Congo e norte de Angola, o velho Reino do Congo lato sensu.

Mas não era por aí somente que o êxito da erradicação do esclavagismo podia ser decisivo.

As missões, mesmo antes da partilha política da África no fim do séc. XIX, acordada entre os Estados europeus mais importantes e mais ambiciosos, ou com mais tradições no Continente, caso português, exploraram outro caminho, digamos que o mesmo mas muito alargado e mais ambicioso.

De facto, cedo muitos missionários se foram apercebendo, talvez ainda em princípios do séc. XIX, sobretudo os missionários das congregações novas, não comprometidas com a História dos séc. XVI a XVIII, que o sucesso da luta anti-esclavagista e das sua própria pregação apostólica seria tanto mais rápido e seguro quanto mais rapidamente uma certa nova realidade em marcha fosse percebida. Tinham de percebê-la negros, mulatos, comerciantes europeus e antigos negreiros. A realidade nova era que os lucros do velho tráfico de escravos poderiam ser vantajosamente substituídos e compensados largamente pelos lucros de bugigangas, tecidos, peixe seco, álcool, até estupefacientes… contra os produtos da agricultura indígena ou mesmo do artesanato negro, tudo em troca mais honesta, sem problemas de consciência para nenhuma das três partes envolvidas (brancos, negros e missionários) e troca perfeitamente legal, mesmo aos “olhos” das canhoneiras inglesas.

Manuel e Raul decidiram, por tudo isso, ir pedir conselho e informação aos missionários da missão do Ambriz e, se a recepção encontrada o justificasse, procurar depois outras missões mais afastadas e até protestantes e evangélicas.

Mesmo protestantes e evangélicas?

Isso era para eles problema de consciência.

Longe, muito longe do oportuno ecumenismo de agora, que descobriu as vantagens e possibilidades duma frente única das religiões monoteístas, contra o ateísmo e ignorância religiosa da “cultura” contemporânea.

Apóstolos do mesmo Deus, até há cento e cinquenta anos, ou menos, ainda consideravam que combaterem-se uns aos outros, conforme a estratégia dos tempos das guerras de religião, era maior prioridade que uma guerra de religiões monoteístas unidas contra o assalto do ateísmo militante e da incultura religiosa progressiva e supostamente progressista.

Mas Raul e Manuel foram ainda mais bem recebidos na missão do Ambriz do que quanto poderiam ter esperado.

Os padres e seus auxiliares leigos aperceberam-se, antes de mais, de que os visitantes tinham assistido, na antevéspera, ao episódio a que já toda a gente chamava “a invasão” inglesa e quiseram saber pormenores em primeira mão, porque da missão não se avistara nem sequer o movimento dos navios ao largo, fosse a chegarem, desembarcarem ou partirem.

Pediram muitos pormenores e os manos Cruz não lhos pouparam.

Estrondosas gargalhadas ou sorrisos divertidos provocaram tais pormenores, contados com o traço de humor de Manuel, cujo êxito não era novidade alguma para o irmão, que aliás costumava ajudar à festa, antecipando-se mesmo a sorrir como estímulo aos sorrisos dos outros, quando pressentia os momentos de êxito mais difícil ou incerto.

Se fosse forte a dificuldade de arranque do auditório, Raul não hesitava em gargalhar, em vez de sorrir apenas, tornando mais evidente a pouca inteligência do auditório. Remédio santo.

Também nisso funcionavam com a mais perfeita fraternidade.

Quando perceberam os truques do coro sorridente dos irmãos, os padres ficaram a gostar ainda mais deles.

Foi o início de uma grande amizade que teria consequências fecundas nas vidas de muita gente que já por ali andava e de outros comparsas mais, muitos mais, que viriam nos anos seguintes para o Congo e Angola.

A.C.R.

(-->)

Etiquetas: ,


This page is powered by Blogger. Isn't yours?

  • Página inicial





  • Google
    Web Aliança Nacional