2006/12/07
Memórias das minhas Aldeias
Parte II – N.º 13
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Os irmãos Cruz e o padre superior da missão católica do Ambriz acordaram que quaisquer pormenores relativos ao projecto da fábrica ficariam entre eles exclusivamente, até ver, sem prejuízo das consultas estritamente necessárias para o levar a efeito, casos em que se aconselharia igual reserva aos eventuais consultores.
Isto é, não se esconderia a ninguém, e far-se-ia mesmo largamente constar, que estava em preparação um projecto fabril, mas todos os pormenores ficariam reservados aos três mentores e executivos.
Talvez por isso, nenhum deles deixou de ser abordado por vários curiosos ou interessados, alguns dos quais chegaram a mostrar desejo de subscrever o capital da iniciativa.
Nenhum pensara nisso a não ser Manuel que guardava o pensamento para si, à espera da oportunidade certa. Mas, uma vez que as coisas se precipitavam, decidiu precipitá-las ainda mais. Com o sentido de antecipação que afiara no comércio de escravos, onde era preciso quase sempre antecipar-se a algum concorrente, para chegar antes que este apanhasse o stock especial da “mercadoria” na posse ciosa dum soba ou sobas particularmente ratos.
Ou ainda quando, dum determinado lote, era preciso desembaraço excepcional e olho muito vivo para não deixar “fugir” o exemplar de negro atlético, visivelmente bom líder e bom trabalhador, além de garanhão reprodutor fiável, que outros potenciais clientes já haviam fisgado entre todos. Para não falar do caso frequente de “a peça”, do género feminino, ser a mais linda e apetecível mocetona ultimamente aparecida no mercado e que muitos “patrões” desatavam a ambicionar ao mesmo tempo, com vista aos seus serralhos aos serralhos dos consabidos clientes lá do Brasil, ou dos grandes senhores espanhóis, holandeses e franceses das Antilhas.
Ou para não falar ainda dos aristocratas agrários das colónias inglesas, mas casos esses muito mais raros, que o mercado, aí, estava ferozmente reservado aos próprios traficantes ingleses e era praticamente impossível a outros furá-lo. Salvo a quem conseguisse parceria de um intermediário também inglês, que em geral custava os olhos da cara, o que tornava o preço da “peça”, no fim do seu circuito comercial, quase sempre impraticável.
Teve Manuel, certa ocasião, notícia dum francês de Nova Orleães, na Louisiana, colónia já então vendida pela França à Inglaterra, o qual garantia comprar por qualquer preço toda a “mercadoria” feminina de primeira apanha, e rapazinhos muito novos e dotados, mas o intermediário não quis comprometer-se e Manuel desinteressou-se, que as informações sobre o francês faziam desconfiar da sua probidade comercial.
Parece impossível, hoje, imaginar como funcionava expeditamente um mercado assim complexo, em três ou quatro continentes, activíssimo, densamente cruzado e cheio de intersecções distantes, para mais um mercado de “peças”, isto é, objectos não passivos mas vivos e humanos, num tempo em que não havia telégrafo ou telefone, nem rádio, nem telexes, nem faxes, nem e-mails, nem internet, sendo os barcos inacreditavelmente lentos e incertos e os cavalos mal adaptados à África.
Ao menos os pombos-correios, porque não atravessavam o Atlântico?
Voltando, porém, ao espírito prevenido e empreendedor, cheio de iniciativa de Manuel Cruz.
Pressentiu ele a necessidade de precipitar as coisas quanto a possíveis investidores, quando lhe apareceu um, das figuras portuguesas mais ilustres de Angola, que lhe perguntou um dia se pensava que a ocasião era a melhor para abrir a subscrição de capital destinado ao lançamento da primeira verdadeira fábrica africana ao sul do Congo “ou Zaire”.
Foi mesmo assim, com este preciosismo.
Manuel reagiu imediatamente, porque não queria perder a oportunidade para aprofundar algum tanto a questão.
- E porquê, Senhor Comendador?
- O comendador, que presidira à reunião daquela noite do “comité português de observação”, era inquestionavelmente a figura mais grada da circunscrição do Ambriz, a seguir aos directos representantes do governo de Luanda.
Mas o comendador estava sempre presente no Ambriz e sempre disponível para ouvir e acompanhar os colonos, ao passo que os representantes do governo de Luanda apareciam e desapareciam logo, quase não deixando tempo para que se desse por eles, entre dois barcos da cabotagem, mesmo com a cabotagem a vapor.
O comendador explicou.
- Sabe, meu amigo?... A “visita” dos ingleses o outro dia deixou algum desânimo… Renovou o desânimo, para melhor dizer, porque tinha desaparecido à medida que foi passando o tempo desde a última sortida dos bifes nas nossas praias, vai para três anos. Dificilmente haverá investimento onde a todo o momento se espera o regresso da marinha de guerra inglesa, que tudo pode destruir com alguns tiros de canhão ou de tudo tomar conta também…
Foi Deus que inspirou Manuel?
Terá sido o Demónio que a Manuel soprou subitamente a resposta que lhe saiu surpreendente como um tiro inesperado, mas que em vez de ferir ou matar trouxesse um alerta salvador?
- Porém isso tem solução, caro comendador – exclamou – com a necessária autorização de Lisboa e Luanda… Por que não havemos, os civis do Ambriz e adjacências, de constituir uma milícia armada que se encarregue da resistência, se os ingleses cá voltarem e os há-de apanhar tão de surpresa que nunca mais tenham vontade de cá tornarem?...
Ante os olhos arregalados do outro, Manuel contou-lhe, para o sugestionar, a quente, algumas das histórias tantas vezes ouvidas, em pequeno e adolescente, à avó Ana Emília e ao avô Feliciano – que lá do céu ou da Folgosa, ainda mais longe, lhe pareceu que o inspiravam. Surpreendido e rapidamente conquistado, o comendador foi ouvindo, como se Manuel tivesse participado nelas ao vivo, as histórias das guerrilhas da Beira, rústicas e quase sem armas, que perseguiram o exército francês de Massena, em 1812, fazendo-o pagar caríssimo as maldades e infâmias cometidas na retirada em fuga para Espanha e França, até…
- Até Waterloo! – exagerou Manuel, inconscientemente. Mas poderia ter dito “até à ilha de Elba”, menos metaforicamente, em todo o caso.
- Bem, bem… caríssimo Amigo, é notável! – disse o comendador, como se acordasse estremunhado dum sonho vivido -. Não sei se os casos se assemelham e podem comparar-se. Mas digo-lhe, com todo o meu apreço, fez-me pensar! É verdade, faz-me pensar! E vamos continuar a pensar!
Porque o Senhor é o Demónio!
Feliz, Manuel mal retorquiu. “Mas não se demore Senhor comendador, que as ocasiões não esperam.”
Despediram-se com um caloroso abraço, o primeiro que se davam, e com repetidos protestos de que tinham de voltar a encontrar-se em breve.
A.C.R.
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Os irmãos Cruz e o padre superior da missão católica do Ambriz acordaram que quaisquer pormenores relativos ao projecto da fábrica ficariam entre eles exclusivamente, até ver, sem prejuízo das consultas estritamente necessárias para o levar a efeito, casos em que se aconselharia igual reserva aos eventuais consultores.
Isto é, não se esconderia a ninguém, e far-se-ia mesmo largamente constar, que estava em preparação um projecto fabril, mas todos os pormenores ficariam reservados aos três mentores e executivos.
Talvez por isso, nenhum deles deixou de ser abordado por vários curiosos ou interessados, alguns dos quais chegaram a mostrar desejo de subscrever o capital da iniciativa.
Nenhum pensara nisso a não ser Manuel que guardava o pensamento para si, à espera da oportunidade certa. Mas, uma vez que as coisas se precipitavam, decidiu precipitá-las ainda mais. Com o sentido de antecipação que afiara no comércio de escravos, onde era preciso quase sempre antecipar-se a algum concorrente, para chegar antes que este apanhasse o stock especial da “mercadoria” na posse ciosa dum soba ou sobas particularmente ratos.
Ou ainda quando, dum determinado lote, era preciso desembaraço excepcional e olho muito vivo para não deixar “fugir” o exemplar de negro atlético, visivelmente bom líder e bom trabalhador, além de garanhão reprodutor fiável, que outros potenciais clientes já haviam fisgado entre todos. Para não falar do caso frequente de “a peça”, do género feminino, ser a mais linda e apetecível mocetona ultimamente aparecida no mercado e que muitos “patrões” desatavam a ambicionar ao mesmo tempo, com vista aos seus serralhos aos serralhos dos consabidos clientes lá do Brasil, ou dos grandes senhores espanhóis, holandeses e franceses das Antilhas.
Ou para não falar ainda dos aristocratas agrários das colónias inglesas, mas casos esses muito mais raros, que o mercado, aí, estava ferozmente reservado aos próprios traficantes ingleses e era praticamente impossível a outros furá-lo. Salvo a quem conseguisse parceria de um intermediário também inglês, que em geral custava os olhos da cara, o que tornava o preço da “peça”, no fim do seu circuito comercial, quase sempre impraticável.
Teve Manuel, certa ocasião, notícia dum francês de Nova Orleães, na Louisiana, colónia já então vendida pela França à Inglaterra, o qual garantia comprar por qualquer preço toda a “mercadoria” feminina de primeira apanha, e rapazinhos muito novos e dotados, mas o intermediário não quis comprometer-se e Manuel desinteressou-se, que as informações sobre o francês faziam desconfiar da sua probidade comercial.
Parece impossível, hoje, imaginar como funcionava expeditamente um mercado assim complexo, em três ou quatro continentes, activíssimo, densamente cruzado e cheio de intersecções distantes, para mais um mercado de “peças”, isto é, objectos não passivos mas vivos e humanos, num tempo em que não havia telégrafo ou telefone, nem rádio, nem telexes, nem faxes, nem e-mails, nem internet, sendo os barcos inacreditavelmente lentos e incertos e os cavalos mal adaptados à África.
Ao menos os pombos-correios, porque não atravessavam o Atlântico?
Voltando, porém, ao espírito prevenido e empreendedor, cheio de iniciativa de Manuel Cruz.
Pressentiu ele a necessidade de precipitar as coisas quanto a possíveis investidores, quando lhe apareceu um, das figuras portuguesas mais ilustres de Angola, que lhe perguntou um dia se pensava que a ocasião era a melhor para abrir a subscrição de capital destinado ao lançamento da primeira verdadeira fábrica africana ao sul do Congo “ou Zaire”.
Foi mesmo assim, com este preciosismo.
Manuel reagiu imediatamente, porque não queria perder a oportunidade para aprofundar algum tanto a questão.
- E porquê, Senhor Comendador?
- O comendador, que presidira à reunião daquela noite do “comité português de observação”, era inquestionavelmente a figura mais grada da circunscrição do Ambriz, a seguir aos directos representantes do governo de Luanda.
Mas o comendador estava sempre presente no Ambriz e sempre disponível para ouvir e acompanhar os colonos, ao passo que os representantes do governo de Luanda apareciam e desapareciam logo, quase não deixando tempo para que se desse por eles, entre dois barcos da cabotagem, mesmo com a cabotagem a vapor.
O comendador explicou.
- Sabe, meu amigo?... A “visita” dos ingleses o outro dia deixou algum desânimo… Renovou o desânimo, para melhor dizer, porque tinha desaparecido à medida que foi passando o tempo desde a última sortida dos bifes nas nossas praias, vai para três anos. Dificilmente haverá investimento onde a todo o momento se espera o regresso da marinha de guerra inglesa, que tudo pode destruir com alguns tiros de canhão ou de tudo tomar conta também…
Foi Deus que inspirou Manuel?
Terá sido o Demónio que a Manuel soprou subitamente a resposta que lhe saiu surpreendente como um tiro inesperado, mas que em vez de ferir ou matar trouxesse um alerta salvador?
- Porém isso tem solução, caro comendador – exclamou – com a necessária autorização de Lisboa e Luanda… Por que não havemos, os civis do Ambriz e adjacências, de constituir uma milícia armada que se encarregue da resistência, se os ingleses cá voltarem e os há-de apanhar tão de surpresa que nunca mais tenham vontade de cá tornarem?...
Ante os olhos arregalados do outro, Manuel contou-lhe, para o sugestionar, a quente, algumas das histórias tantas vezes ouvidas, em pequeno e adolescente, à avó Ana Emília e ao avô Feliciano – que lá do céu ou da Folgosa, ainda mais longe, lhe pareceu que o inspiravam. Surpreendido e rapidamente conquistado, o comendador foi ouvindo, como se Manuel tivesse participado nelas ao vivo, as histórias das guerrilhas da Beira, rústicas e quase sem armas, que perseguiram o exército francês de Massena, em 1812, fazendo-o pagar caríssimo as maldades e infâmias cometidas na retirada em fuga para Espanha e França, até…
- Até Waterloo! – exagerou Manuel, inconscientemente. Mas poderia ter dito “até à ilha de Elba”, menos metaforicamente, em todo o caso.
- Bem, bem… caríssimo Amigo, é notável! – disse o comendador, como se acordasse estremunhado dum sonho vivido -. Não sei se os casos se assemelham e podem comparar-se. Mas digo-lhe, com todo o meu apreço, fez-me pensar! É verdade, faz-me pensar! E vamos continuar a pensar!
Porque o Senhor é o Demónio!
Feliz, Manuel mal retorquiu. “Mas não se demore Senhor comendador, que as ocasiões não esperam.”
Despediram-se com um caloroso abraço, o primeiro que se davam, e com repetidos protestos de que tinham de voltar a encontrar-se em breve.
A.C.R.
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