2006/12/19
Memórias das minhas Aldeias
Parte II – N.º 16
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O padre superior, no fim de ouvi-los contar o que se passara, demorou a reagir mas ao fazê-lo foi muito claro.
- É mesmo do governador! – comentou – Parece que estou a vê-lo. Que bem vocês mo descreveram! Podem ficar seguros, são mesmo as últimas palavras dele que representam aquilo que está disposto a arriscar. Porque se há alguém que odeia regulamentos, com regras para tudo e para nada, é o nosso homem! E também não gosta nada que o façam perder tempo com teias burocráticas, onde parece que tudo está previsto e depois se acaba por ninguém saber quem manda.
- Mas… – ia dizer Manuel.
- Pois, mas também eu tenho de apresentar um grande “mas”. A posição da missão do Ambriz vai ter de ser mais discreta.
- Dá-me licença, senhor padre superior?
- Diga, Manuel.
- Não percebo a discrição. Não vamos atacar os ingleses senão em território português e apenas se eles forçarem a entrada e nos atacarem ou que venham armados; também não vamos tomar parte em qualquer luta de facções entre portugueses; nem teremos funções policiais que nos obriguem a meter quem quer que seja na cadeia ou levá-lo a tribunal…
- Continue, continue! – incitou o padre superior.
- Bem… Julgo que disse tudo. Lembra-se de mais algum caso, de outras situações… senhor padre superior?
- Não, respondeu o padre superior, sem hesitar.
Mas passados instantes corrigiu, como se tivesse reflectido melhor. E foi uma destas surpresas!...
- Sim, lembro-me de outra situação que não é assim tão clara como os exemplos que o Manuel apresentou. Sabe-se que o actual domínio português do Congo e de Angola resultou, por um lado, da aliança entre Portugal e o reino do Congo, uma aliança com quase quatro séculos e muitas vicissitudes, a qual se traduziu de facto num protectorado de Portugal sobre o Congo; e, por outro lado, sobre o reino de Angola, que ia muito para sul do rio Cuanza, o nosso domínio resultou de vitórias militares contra o rei Ngola e a rainha Jinga, completadas pela expulsão dos holandeses de Luanda, em 1647, graças a uma expedição militar organizada no Brasil, sob o comando de Salvador Correia de Sá. Sabem porquê?... Porque o Governo e os latifundiários portugueses do Brasil não podiam tolerar que os holandeses controlassem Luanda. É que Luanda tornara-se o principal centro de recrutamento de escravos negros em toda aquela costa e o centro principal também do seu embarque para o Brasil e Antilhas. Mas isto não tem importância saber só pelo que respeita aos holandeses. Também explica a febre do Rei de Portugal pelo controlo e conquista dos reinos do Congo e de Angola. Os seus reis, antes do domínio português, guardariam para si o grosso dos lucros da venda de escravos para as Américas e Antilhas… Compreendem?...
- Desculpe interromper, senhor padre superior, mas eu e o Raul já nos confessámos, bem confessados, e fomos perdoados dos nossos pecados como negreiros também. Quanto ao senhor comendador, nunca andou metido no “infame negócio”, todos o sabem…
- Peço desculpa! Fui demasiado longo – concedeu o padre superior. – Faltou-me o tempo para ser breve, como dizia o P.e António Vieira! Mas era só para chegar a uma conclusão. Se o rei do Congo um dia recuperar todo o seu poder sobre o seu reino, e se a linhagem dos reis de Angola recuperasse o poder no seu antigo, ainda mais antigo reino, que fazia Portugal?...
Raul antecipou-se a responder.
- Não tenha dúvidas: mandar tropas restabelecer a soberania portuguesa!
Os outros acenaram igualmente que sim, com a cabeça.
- Talvez sim – disse o padre superior. - Mas em tal caso, poderíamos ter a milícia metida a combater angolanos, não é verdade?
- Sem dúvida! – responderam prontamente, alto e com grande vibração, os três leigos, em coro.
- Pois bem… Ou pois mal. Na verdade, pois mal… Quero que compreendam, agora, por que não pode a missão ter o que quer que seja a ver com a milícia? É que a missão está aqui pelos angolanos e para os angolanos de Angola e do Congo, para a sua conversão a Cristo, mas não só, não poderia de modo algum ajudar a combatê-los.
Os seus ouvintes olhavam-no siderados.
Pelo que constou muito depois, todos pensaram ao mesmo tempo se o padre superior estaria doido ou a caçoar com eles.
Creio que nem uma coisa nem outra.
A.C.R.
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O padre superior, no fim de ouvi-los contar o que se passara, demorou a reagir mas ao fazê-lo foi muito claro.
- É mesmo do governador! – comentou – Parece que estou a vê-lo. Que bem vocês mo descreveram! Podem ficar seguros, são mesmo as últimas palavras dele que representam aquilo que está disposto a arriscar. Porque se há alguém que odeia regulamentos, com regras para tudo e para nada, é o nosso homem! E também não gosta nada que o façam perder tempo com teias burocráticas, onde parece que tudo está previsto e depois se acaba por ninguém saber quem manda.
- Mas… – ia dizer Manuel.
- Pois, mas também eu tenho de apresentar um grande “mas”. A posição da missão do Ambriz vai ter de ser mais discreta.
- Dá-me licença, senhor padre superior?
- Diga, Manuel.
- Não percebo a discrição. Não vamos atacar os ingleses senão em território português e apenas se eles forçarem a entrada e nos atacarem ou que venham armados; também não vamos tomar parte em qualquer luta de facções entre portugueses; nem teremos funções policiais que nos obriguem a meter quem quer que seja na cadeia ou levá-lo a tribunal…
- Continue, continue! – incitou o padre superior.
- Bem… Julgo que disse tudo. Lembra-se de mais algum caso, de outras situações… senhor padre superior?
- Não, respondeu o padre superior, sem hesitar.
Mas passados instantes corrigiu, como se tivesse reflectido melhor. E foi uma destas surpresas!...
- Sim, lembro-me de outra situação que não é assim tão clara como os exemplos que o Manuel apresentou. Sabe-se que o actual domínio português do Congo e de Angola resultou, por um lado, da aliança entre Portugal e o reino do Congo, uma aliança com quase quatro séculos e muitas vicissitudes, a qual se traduziu de facto num protectorado de Portugal sobre o Congo; e, por outro lado, sobre o reino de Angola, que ia muito para sul do rio Cuanza, o nosso domínio resultou de vitórias militares contra o rei Ngola e a rainha Jinga, completadas pela expulsão dos holandeses de Luanda, em 1647, graças a uma expedição militar organizada no Brasil, sob o comando de Salvador Correia de Sá. Sabem porquê?... Porque o Governo e os latifundiários portugueses do Brasil não podiam tolerar que os holandeses controlassem Luanda. É que Luanda tornara-se o principal centro de recrutamento de escravos negros em toda aquela costa e o centro principal também do seu embarque para o Brasil e Antilhas. Mas isto não tem importância saber só pelo que respeita aos holandeses. Também explica a febre do Rei de Portugal pelo controlo e conquista dos reinos do Congo e de Angola. Os seus reis, antes do domínio português, guardariam para si o grosso dos lucros da venda de escravos para as Américas e Antilhas… Compreendem?...
- Desculpe interromper, senhor padre superior, mas eu e o Raul já nos confessámos, bem confessados, e fomos perdoados dos nossos pecados como negreiros também. Quanto ao senhor comendador, nunca andou metido no “infame negócio”, todos o sabem…
- Peço desculpa! Fui demasiado longo – concedeu o padre superior. – Faltou-me o tempo para ser breve, como dizia o P.e António Vieira! Mas era só para chegar a uma conclusão. Se o rei do Congo um dia recuperar todo o seu poder sobre o seu reino, e se a linhagem dos reis de Angola recuperasse o poder no seu antigo, ainda mais antigo reino, que fazia Portugal?...
Raul antecipou-se a responder.
- Não tenha dúvidas: mandar tropas restabelecer a soberania portuguesa!
Os outros acenaram igualmente que sim, com a cabeça.
- Talvez sim – disse o padre superior. - Mas em tal caso, poderíamos ter a milícia metida a combater angolanos, não é verdade?
- Sem dúvida! – responderam prontamente, alto e com grande vibração, os três leigos, em coro.
- Pois bem… Ou pois mal. Na verdade, pois mal… Quero que compreendam, agora, por que não pode a missão ter o que quer que seja a ver com a milícia? É que a missão está aqui pelos angolanos e para os angolanos de Angola e do Congo, para a sua conversão a Cristo, mas não só, não poderia de modo algum ajudar a combatê-los.
Os seus ouvintes olhavam-no siderados.
Pelo que constou muito depois, todos pensaram ao mesmo tempo se o padre superior estaria doido ou a caçoar com eles.
Creio que nem uma coisa nem outra.
A.C.R.
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